Esticar a corda
Os dias do pianista e compositor Daniel Bernardes (n. 1986, Alcobaça) têm 24 horas, mas convenhamos que não parece. Se o ano findo foi particularmente preenchido, o de 2020 não o será menos. Acaba de lançar o excelente “Liturgy of the Birds – In Memoriam Olivier Messiaen”, com chancela Clean Feed, no qual transpõe para o universo jazzístico os métodos composicionais do mestre francês. Ao seu trio – que se completa com o experimentado contrabaixista António Augusto Aguiar e o baterista Mário Costa, que em 2018 nos ofereceu o superlativo “Oxy Patina” – junta-se o aclamado grupo de percussão Drumming GP. O disco será apresentado em concerto no próximo dia 23 de janeiro, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
No final deste mês e no início do próximo, o Auditório Vianna da Motta da Escola Superior de Música de Lisboa (ESML) recebe a estreia absoluta de uma obra que compôs para trio de piano jazz e orquestra de sopros, encomendada pelo maestro Alberto Roque. O ano que dá agora os seus primeiros passos trará também a estreia de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, novo filme do realizador João Botelho a partir do romance de José Saramago, e a série “A Espia”, a exibir pela RTP, ambos com música de Bernardes. As comemorações dos 250 anos do nascimento de Ludwig van Beethoven, que se assinalam em 2020, são o mote para nova encomenda do Centro Cultural de Belém: um novo espetáculo, cujos moldes, ainda desconhecidos, estão a gerar expetativa.
Daniel Bernardes iniciou estudos de piano aos cinco anos de idade, frequentando aulas particulares e depois a Escola de Música do Orfeão de Leiria, onde teve os primeiros contactos com o jazz e a improvisação. Em 2001, frequentou um seminário com o quinteto de Pedro Moreira, e, no ano seguinte, estreou-se profissionalmente fazendo parte do projeto Hybrid Jazz Machine, liderado pelo saxofonista Mário Marques. Cada vez mais interessado na música erudita contemporânea, participou nos Seminários de Composição da Fundação Calouste Gulbenkian, orientados por Emmanuel Nunes, e nos Stockhausen-Kurse für Musik em Kürten, Alemanha. Em 2004, mudou-se para a capital francesa, onde estudou piano na prestigiada Ecole Normale de Musique. Regressou a Portugal três anos depois para se centrar no jazz e na improvisação, estudando no Hot Clube de Portugal e depois na ESML, onde se viria a licenciar (2011) e a concluir o mestrado (2015). Atualmente é doutorando em Artes Musicais na Universidade Nova de Lisboa.
Arrecadou o 2.º prémio ex-aequo na edição de 2011 do Prémio Jovens Músicos, tendo-se também apresentado, no âmbito deste festival, como solista ao lado da Orquestra de Jazz do Hot Clube de Portugal, dirigida por Pedro Moreira. Integrou o projeto L.A. New Mainstream, do trombonista Lars Arens, juntamente com outros valores emergentes do jazz nacional. Apresentou-se com a Big Band da Nazaré no âmbito do lançamento do disco “Special Guests”, na Festa do Jazz do São Luiz, e foi um dos compositores escolhidos pela cantora Sofia Vitória para musicar a poesia em inglês de Fernando Pessoa, que deu origem ao disco “Echoes” (2016).
A música de Daniel Bernardes mescla a imprevisibilidade do jazz, o rigor da música contemporânea e a genuinidade da música de raiz tradicional portuguesa, o que está espelhado no seu disco de estreia em nome próprio, “Nascem da Terra”, editado em 2013, acompanhado pelo contrabaixista António Quintino e pelo baterista Joel Silva.
Ao longo dos últimos anos, tem recebido encomendas de diversos músicos, como o já mencionado Alberto Roque, António Rosa, Jeffery Davis e Sérgio Carolino, de festivais como o Cistermúsica e de outras instituições (Centro Cultural de Belém, Casa Bernardo Sassetti). Outra vertente do seu trabalho levou-o à exploração das recolhas de Michel Giacometti para o programa da RTP “Povo Que Canta”. Deste trabalho nasceu o projeto Rondó da Carpideira, em parceria com Mário Marques e o artista multimédia Gonçalo Tarquínio, documentado em CD/DVD. Em 2015, venceu a Bolsa Jovens Criadores do Centro Nacional de Cultura com o Crossfade Ensemble, formação que reúne vários nomes de referência do jazz e da música erudita, e que se estreou no encerramento da edição de 2016 do Festival Internacional de Jazz das Caldas da Rainha.
Um rico e diversificado percurso que nutriu a conversa do músico com a jazz.pt...
No próximo dia 23 de janeiro apresenta no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, o seu mais recente trabalho, “Liturgy of the Birds – In Memoriam Olivier Messiaen”, editado pela Clean Feed. Quer apresentar-nos este disco, da génese ao resultado final?
Este disco surge das minhas explorações das técnicas de composição do compositor francês Olivier Messiaen aplicadas a um contexto jazz. Messiaen é uma figura incontornável da música do século XX e a sua obra é amplamente estudada por todo o mundo ao nível dos conservatórios, tal como sucedeu comigo. A sua sinfonia “Turangalîla” é uma das minhas obras favoritas, e ano após ano voltava sempre à leitura de textos do Messiaen, que nos deixou muita coisa escrita, de forma a perceber melhor a sua música. Apesar de Messiaen não ter demonstrado particular interesse pelo jazz, há contudo uma grande proximidade de processos, na medida em que ele, enquanto organista, improvisava imenso nos vários momentos das missas. Também harmonicamente os seus modos de transposição limitada servem como prolongamento possível aos modos gregos utilizados no jazz. No fundo, a paixão pela música de Messiaen e esta proximidade de elementos tornaram este disco um passo inevitável.
De que modo “Liturgy...” se relaciona com o seu percurso musical anterior?
Este disco surge na linha estética que venho a trilhar desde o meu percurso formativo: a da mistura do jazz com a música de tradição europeia, erudita se quisermos. Não se trata de um esforço consciente para unir as duas músicas, é um processo natural, pois é tudo música, as diferenças entre estas duas formas de fazer música são muito dúbias, mais facilmente balizáveis em termos socioculturais e geográficos, porque a verdade é que encontramos provas de improvisação em compositores europeus e encontramos provas de um pensamento composicional muito profundo em compositores de jazz. Dito isto, gosto de música, gosto de muita música, e acho que enquanto criador de música tento fazer a música que gostaria de ouvir. Posso ouvir um disco de Messiaen e em seguida outro de Hampton Hawes, por isso é normal que, na hora de criar, todos estes sons se misturem um pouco. Entre discos e peças que escrevi este universo de sons está sempre presente, e este disco surge naturalmente nessa linha.
O que lhe interessa mais em Messiaen e de que modo se foi desenvolvendo a sua relação com a obra do compositor, organista e ornitólogo francês?
É uma figura tão rica que qualquer músico que tenha interesse na composição de forma mais profunda tem aqui um ponto de passagem obrigatório. Messiaen tem, no universo da música do século XX, um dos estilos mais originais e facilmente identificáveis. O que é maravilhoso é que a sua originalidade é completamente alicerçada e construída como cruzamento e prolongamento de várias tradições musicais diferentes. Messiaen mistura a rítmica indiana com as formas melódicas do canto gregoriano que transformou e adaptou aos seus modos de transposição. Quer isto dizer que temos um compositor europeu que conhece profundamente a tradição musical na qual se insere, à qual junta um elemento etnográfico misturando tudo isto com uma criação intelectual, matemática se quisermos, que são os seus modos. Esta mistura – altamente estruturada e pensada, e muito bem descrita por ele próprio nos seus textos – seria já por si só um universo de possibilidades, mas Messiaen vai mais longe quando se lança na exploração do canto dos pássaros, que dá à sua obra um carácter extremamente livre e orgânico. Ao lermos os seus textos, percebemos que é um homem com interesses infinitos: Ornitologia, Astronomia, Matemática. Em criança citava de cor Shakespeare e esta riqueza da sua vivência é omnipresente na sua obra. A verdadeira pergunta será: como é possível passar ao lado de Messiaen?
Os sons provenientes do mundo animal – e o canto das aves em particular – continuam a ser um manancial importante para a música feita por humanos. O seu disco anterior, “Nascem da Terra”, também alude a um apelo telúrico. O que procura – e o que encontra – nesta ligação aos elementos naturais?
Cresci no campo, não fui feito para as grandes cidades, vivi em Paris, em Lisboa, mas sinto-me bem no campo. A natureza tem uma beleza infinita, gosto de mergulhar e é como estar noutro planeta, gosto de fazer observações astronómicas e não há momento em que não fique pasmado com a beleza indescritível do universo. Acho que o ato de criar é, de certa forma, a recriação da sensação de pasmo perante o mundo num objeto artístico. Aconteceu-me com “Bolero”, talvez a faixa do disco onde o contraste entre uma textura “jazz” é maior e acontece de forma mais inesperada. Quando a ideia me ocorreu foi como ver uma nebulosa pela primeira vez – uma sensação de tocar o impalpável.
Messiaen fez questão de deixar claro: «Ofereço cantos de pássaros àqueles que moram nas cidades e que nunca os ouviram, faço ritmos para quem conhece apenas marchas militares ou jazz, e pinto cores para quem não vê»...
Há algumas entrevistas de Messiaen em áudio e vídeo em que percebemos claramente um homem com uma sensibilidade e uma capacidade extraordinária para ver beleza, nos “canyons” do Utah ou num compasso de Debussy. Há um vídeo de uma das suas míticas aulas no Conservatório de Paris em que ele vai tocando um prelúdio de Debussy, e ouvi-lo a descrever cada evento musical é quase mais interessante do que a própria música a ser tocada. Falamos de alguém que passou a sua vida a transmitir a sua profunda paixão pelo mundo através da música.
Quais foram os principais desafios que encontrou ao transpor as técnicas composicionais de Messiaen para um contexto jazzístico?
Foi muito simples, porque este disco apareceu da música que estava a esboçar, em vez de surgirem esboços para o disco que estava a fazer. O primeiro contacto com as coisas é sempre especial e tem sempre consigo um entusiasmo e uma frescura que são como aquele amor à primeira vista que depois vai desvanecendo. Acredito muito em primeiros contactos e por isso trabalhei muito rapidamente para não perder esse sentimento em relação a esta música. Já me aconteceu ter encomendas com um ano ou dois de antecedência, começar a escrever a peça, aparecer outra coisa no meio e quando volto a pegar nela – meses depois – nada daquilo fazer sentido e ter de recomeçar. O tempo pode criar dúvidas paralisantes num compositor. Quando tinha um ou dois esboços acreditei no rumo que a música estava a tomar e comecei logo a produzir o disco, entrei em contacto com os Drumming e foram dois ou três meses entre o inicio da composição e a gravação do disco.
A um trio “clássico” de piano, contrabaixo e bateria (formato que continua a ser da sua predileção) juntou um grupo de percussão. O que procurou explorar com esta configuração instrumental?
Um dos elementos que quis logo explorar foi a textura dos cantos de pássaro, e claro que um grupo de percussão apresenta logo o maior leque de sonoridades possíveis para esta textura. Um percussionista não toca um instrumento, toca um universo de instrumentos, pelo que quando pensei em riqueza de texturas pensei logo em ter vários instrumentos de percussão sobrepostos, cada um com o seu “canto”. Creio que “Bolero” foi o meu primeiro esboço e é um excelente exemplo do que digo.
Acompanham-no, no trio base, o contrabaixista António Augusto Aguiar e o baterista Mário Costa. Como caracteriza a vossa relação musical e pessoal? E quanto ao Drumming GP, foi a escolha ideal para corporizar neste disco aquele elemento rítmico tão inovador na obra de Messiaen?
Como disse, acredito muito em primeiros contactos. Aconteceu com a música e queria que acontecesse também com os músicos. Dada a natureza da música, que tem uma escrita complexa, de música contemporânea, António Augusto Aguiar pareceu-me logo a primeira escolha. É um virtuoso do contrabaixo, que alia uma técnica monstruosa e uma experiência ímpar na música contemporânea, no improviso e no jazz. Mário Costa é um dos melhores bateristas da Europa. O seu disco “Oxy Patina” é dos melhores discos da história do jazz português e é daqueles músicos com quem gostaria de trabalhar, mais cedo ou mais tarde. Para além de baterista sublime, o Mário tem uma formação clássica fortíssima, pelo que, se fosse preciso pô-lo a tocar marimba ou vibrafone, ele poderia assegurar essa parte também! Isso deu-me muita tranquilidade na hora de lhe dar música complexa, sabendo que não teríamos muitos ensaios. E assim foi, tivemos o primeiro e único ensaio uma semana antes de ir para estúdio. Só com um elenco fantástico é possível tocar música desta complexidade a este nível e manter ainda assim aquela adrenalina do primeiro contacto. Fiquei muito feliz com o disco que construímos!
Os próximos tempos vão continuar a ser férteis em trabalhos seus. Nos dias 31 de janeiro e 1 de fevereiro apresenta, em estreia absoluta, uma nova obra para trio de piano jazz e orquestra de sopros, mais uma encomenda do maestro Alberto Roque. Quer antecipar-nos um pouco do que iremos escutar?
O Alberto é um amigo de longa data e um dos responsáveis pela minha incursão no jazz. Em 2010, estreou a minha “Suíte para Orquestra de Sopros” e lançou-me o convite para escrever uma nova obra a estrear em 2020. Vamos juntar um trio de piano jazz à sua Orquestra de Sopros da Escola Superior de Música de Lisboa, para tocar “Quatro Peças para Trio Jazz e Orquestra de Sopros”.
Mas 2020 trará também a estreia de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, filme de João Botelho a partir do romance de José Saramago, dando continuidade à banda sonora que compôs para “Peregrinação” (2017), do mesmo realizador. É uma parceria consolidada? Pode levantar um pouco do véu relativamente à música que acompanha os passos de Ricardo Reis pela Lisboa de meados dos anos 1930?
Penso que João Botelho me chamou porque sentiu que a minha linha estética era o que fazia sentido para o filme que estava a montar. Nunca me pediu que mudasse o que quer que fosse, pediu-me que lesse o guião, que visse as imagens e que escrevesse música a partir do que sentia. Depois, de forma bastante livre, pintou o seu filme com a minha música, chegando mesmo a tirar uma fala de importância menor para deixar ouvir a música durante mais tempo! O João é um artista livre e trabalhar com ele tem sido dos maiores privilégios da minha carreira. Decidi escrever para cordas, pois 1936 foi um ano pouco colorido e nesse sentido quis manter uma homogeneidade de timbres ao longo do filme. Várias gradações de cinzento, se quisermos. Assim, explorei dentro daquele timbre diferentes combinações – composições para quarteto de cordas, trio de violas e violoncelo, orquestra só com violinos e violas, orquestra só com violas, violoncelos e contrabaixos, e instrumentos a solo. O João deu-me liberdade estética total, pelo que a banda sonora é por vezes mais tradicional e por vezes tem momentos de música dodecafónica. Sentir que um realizador do estatuto do João tem a confiança para – caso o filme o permita – utilizar este leque estético tão variado é uma sensação indiscritível!
Alargou o seu trabalho à composição de música para televisão. A série “A Espia”, a estrear em 2020 na RTP, tem música sua. Em que contexto surgiu o convite para escrever a música para esta série? Gostou do desafio?
Recebi o convite pouco tempo depois de termos terminado o filme de João Botelho e tem sido um desafio enorme. É uma linguagem completamente diferente, é uma série de género e todos os géneros têm a sua própria linguagem. Esse é um desafio que me é muito caro, o de entrar num novo jogo, conhecer as suas novas regras e tentar ter sucesso. Ainda para mais, a televisão representa desafios técnicos que no cinema não se colocam. Não podemos esperar o mesmo tipo de clareza no som de uma televisão, em casa, em relação ao som de cinema: isso condiciona a composição e, como dizia Stravinsky, «quanto mais a composição é condicionada, mais livre se torna o compositor». A série é extraordinária, com uma complexidade muito acima daquilo a que estamos habituados em televisão, e, claro, passando-se em 1941, dirá muito a muita gente, pelo que trabalhar num projeto que chegará a tantas pessoas é uma responsabilidade enorme, mas também um grande estímulo.
Ainda se considera um músico de jazz ou essa definição é redutora face ao trabalho multifacetado que desenvolve hoje em dia?
Bill Evans referia-se ao jazz como um processo e não como um estilo. Quer isto dizer que podemos ter alguém como Miles Davis, no seu último período – a tocar hip-hop – e a fazer jazz, e podemos ter música de elevador – não quero apontar nomes – que tem elementos que associamos ao jazz – “swing”, “walking”, harmonias típicas – e não estar a fazer jazz. O jazz, para mim, é criação no momento, é improvisação, é interação com os músicos com quem se está a tocar. Como dizia Wayne Shorter, «jazz is when you say: I dare you!» [«jazz é quando dizes: desafio-te!»]. O jazz deve ter sempre esse carácter de ultrapassar fronteiras e pisar território desconhecido – foi isso que aconteceu no bebop e em (r)evoluções posteriores e é isso que deve continuar a acontecer. A exploração das fronteiras entre estras tradições musicais tem sido o caminho natural para mim e tenho tentado esticar a corda por aqui.
Sei da sua preferência por Stockhausen (assistiu em Kürten aos célebres cursos de verão do próprio, “Stockhausen-Kurse für Musik”) e que trabalhou com Emmanuel Nunes nos Seminários de Composição da Fundação Calouste Gulbenkian. Em que medida estas experiências foram importantes para moldar o que é hoje enquanto músico?
Muito importantes. A nível técnico falamos de dois colossos daquilo que foi o pensamento pós-serial da segunda metade do século XX. Stockhausen foi um dos maiores revolucionários, e um músico que nos anos 1950, 1960 e 1970 se reinventou de forma profunda e mudou a música de forma radical. Este paradigma de ter a coragem para pôr em causa as fundações do caminho percorrido é algo que admiro muito em Stockhausen. E, claro, a sofisticação técnica dos seus processos que, de certa forma, surgem como prolongamento possível do trabalho de Messiaen. Emmanuel Nunes foi, ele próprio, aluno de Stockhausen e pertence por isso à geração seguinte. Fascina-me o seu ouvido, nota-se uma organização extrema na sua música, enraizada na tradição serial, mas em última instância o ouvido tinha predominância perante o processo de composição. E é muito palpável essa predominância, o primeiro acorde de “Wandlungen” é muito interessante na sua construção, tão bem demonstrado pela análise desta peça feita pelo Prof. [Christopher] Bochmann, mas acredito que foi escolhido pelo ouvido de Nunes. Tal como o primeiro acorde de “Nachtmusik”, que teve um impacto profundo em mim a primeira vez que o ouvi, suspeito que Nunes o terá “encontrado” no piano tal como um pianista de jazz procura combinações de notas que provoquem um estímulo particular e depois ocorre um processo de intelectualização daquilo que foi tocado. Nunca lhe perguntei, é claro, mas sinto essa profunda preocupação harmónica na sua música. Há uma consistência que lhe é inerente, nunca temos um acorde fora do contexto, e quando olhamos para um Herbie Hancock o caso é semelhante, embora noutro idioma completamente diferente.
As obras de fôlego, conceptuais e com um efetivo instrumental alargado, estão no centro dos seus interesses no presente. Receia que estas obras, após estreadas, não voltem a ser tocadas e caiam no esquecimento, um problema para que António Pinho Vargas, entre outros, tem vindo a alertar recorrentemente?
Sim e não. Penso que a crítica muito pertinente de Pinho Vargas tem uma mensagem política que subscrevo. A verdade é que há muito a fazer no que toca a levar a música contemporânea a mais público. É preciso descentralizar e dar a conhecer às pessoas a música que se faz em Portugal. Os meios públicos de comunicação social deviam ter uma ligação maior às instituições de ensino superior. Há músicos emergentes incríveis a tocar e a escrever música incrível e é uma pena que não haja mais divulgação. Temo que este discurso seja pertinente por muitos e bons anos. Criar públicos, sobretudo para a música contemporânea, não é fácil e precisa de consistência, algo que infelizmente nem sempre é compreendido pelo poder político. Este foi o meu sim. O meu não prende-se com a relação com os intérpretes. A nossa música será sempre tocada se houver intérpretes que se revejam nela. Afinal de contas, os compositores do cânone ocidental continuam a ser tocados porque os músicos continuam a encontrar razões para os tocarem. E essa é uma preocupação que tenho enquanto compositor: quando alguém me pede uma obra, tento perceber as suas motivações, por que razão me pediu a mim uma peça, o que é que a pessoa procura musicalmente. No fundo, um intérprete quer a minha música porque gostará de outras obras que ouviu, mas tocará a minha obra ao longo dos anos se sentir que aquela obra lhe permite expressar-se.
A música que escutamos no disco de 2013, “Nascem da Terra”, convoca elementos do jazz, da música erudita e da rica e diversificada tradição musical portuguesa, equilibrados de modo natural e de acordo com um «processo subconsciente», tal como me disse há uns anos. Os seus temas de jazz têm muitas texturas clássicas e as peças clássicas um lado bastante jazzístico. Depreendo que não funcione criativamente com base em fronteiras musicais ou estéticas...
Sim, a noção de fronteira estética ou musical não pode ser um elemento que tolhe. Pode, por vezes, servir como exercício para alcançar uma maior liberdade. Se decidir escrever música minimal isso vai potenciar a minha capacidade para criar objetos interessantes naquele contexto. Se decidir escrever música dodecafónica vou encontrar caminhos que me digam algo. Isto fará de mim um compositor com capacidade de se exprimir em diferentes idiomas. Um dos catalisadores possíveis para a criação é o contacto com novas técnicas, à semelhança do que aconteceu com os pássaros. Não quero estar preso a um discurso musical que me impeça de explorar todo e qualquer caminho. Por vezes, a adesão incondicional a determinado rumo revela uma insegurança ou incapacidade de seguir por outros. Os discursos advêm da expressão humana no seu estado mais puro, e não o contrário.
Desprendido de preconceitos
Esta é uma boa ocasião para voltarmos ao princípio da sua relação com o universo dos sons. Lembra-se de como tudo começou? Alguém tocava lá em casa?
Começou como uma atividade na escola. Eu tinha cinco anos, os meus pais não queriam, pois eu ainda não aprendera a ler. Parecia-lhes precoce que começasse a estudar música, mas tanto insisti que lá me fizeram a vontade.
Optou logo pelo piano como instrumento de expressão?
Era o que havia! (risos)
E consegue precisar em que circunstâncias surgiu o interesse pelo jazz? Como é a sua relação com a tradição do género? Continua a estudá-la ou agora é menos importante e decisiva do que porventura terá sido noutros momentos?
Bill Evans dizia, «those who see further in the past, see further into the future» [«aqueles que veem mais longe no passado, veem mais longe no futuro»]. É algo em que acredito piamente. À semelhança do que fez Messiaen, acredito que a originalidade na música acontece como reação a um conhecimento profundo do que foi feito antes. Há lições a retirar ouvindo um Brad Mehldau ou um Teddy Wilson. No fundo, o mais importante não é a sofisticação do que estava a ser tocado, e isso foi uma lição que me levou algum tempo a aprender, o mais importante é a forma como estes músicos expressam o que dizem através da música e isso é intemporal e desprovido de época. Conhecer o cânone é conhecermos a nossa arte e não acredito que a negação do passado seja o caminho para a originalidade. Também não acredito em chover no molhado, diga-se!
Em 2004 foi estudar para a Ecole Normale de Musique de Paris, cidade que considera obrigatória para um jovem pianista. Porquê?
Porque falamos de um centro do mundo para aquilo que é a tradição daquele instrumento. Paris está para o piano “clássico” como Nova Iorque está para o jazz. Aquela cidade respira piano por todo o lado, há milhões de concertos, e há uma tradição que se transmite de geração em geração. Ouvimos falar do compositor “x” ou “y” e há uma parte da sua história que aconteceu ali. Chopin é o caso mais gritante, mas também temos todos os impressionistas franceses. Ter esse contacto direto é muito importante. Mas, para mim, o lado da música contemporânea também foi muito importante, o IRCAM [Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique] e a Cité de la Musique são centros de produção de música contemporânea ímpar e sem os quais a história da música contemporânea não seria a que conhecemos hoje.
Regressou a Portugal três anos depois e centrou-se no jazz, ingressando na Escola do Hot Clube de Portugal e depois na Escola Superior de Música de Lisboa, onde se licenciou e mais tarde se tornou mestre em Jazz Performance. Estes estudos formais foram decisivos para consolidar conhecimentos e estabelecer contactos com outros músicos?
Absolutamente. Vinha de uma linha de estudos de música clássica na qual, para um pianista, a realidade musical se resume a acumular repertório de solista, ou seja, é uma vivência muito solitária e a relação com a música resume-se ao contacto com o piano. O jazz tende a ser uma música de interação e diálogo e por isso, embora já tocasse profissionalmente, estar em contacto constante com os músicos de topo do país foi e é superimportante.
Em todo este processo, quer destacar alguns episódios de que guarde particular memória pelas marcas que deixaram?
É difícil, tenho vários momentos marcantes. O Prémio de Solista na Festa do Jazz do São Luiz é um momento especial, mas diria que o contacto com João Paulo Esteves da Silva me transformou de forma profunda. O João Paulo é das pessoas mais livres que eu conheço e essa liberdade de pensamento traduz-se numa liberdade de leitura do mundo à nossa volta. Quando tomamos contacto com uma pessoa que nos transforma a esse ponto é sempre marcante.
Bem expressa também no disco “Nascem da Terra”, de que já falámos, mas a que gostaria de regressar, está uma dimensão do seu trabalho que o liga à música tradicional portuguesa. Nesse âmbito, merece menção especial o projeto multimédia Rondó da Carpideira, no qual trabalhou a partir das recolhas efetuadas pelo país fora por Michel Giacometti, etnomusicólogo corso que repousa no cemitério baixo-alentejano de Peroguarda. Interessa-lhe continuar a explorar esta “portugalidade” sonora?
Artisticamente interessa-me tudo, o meu problema é, por vezes, focar-me e construir uma linha condutora coerente. Não posso dizer que o que tenho no horizonte esteja marcado pela música popular portuguesa, o que não quer dizer que isso não mude de um dia para o outro. Há que guardar sempre um espaço para os planos que a vida tem para nós.
Na sua música está sempre patente um equilíbrio entre a componente escrita e a improvisação. Concorda com a expressão “composição em tempo real?” Qual é, no seu caso particular, o papel da improvisação no processo de transposição de uma ideia para a prática instrumental?
Gosto de dar à nota escrita a espontaneidade da nota improvisada, e à nota improvisada o cuidado da nota escrita.
Interessa-lhe a chamada “improvisação livre”, entendida como aquela que não parte de uma base pré-estabelecida?
Claro! A improvisação livre torna melhor a improvisação condicionada, e vice-versa. Keith Jarrett será, talvez, aquele que mais se aproxima do músico total. Ao longo do seu percurso temos improvisação em diferentes idiomas, coisas mais tonais, mais rock, mais barrocas, mas atonais. Esse é o caminho que quero para mim, desprendido de preconceitos.
Os últimos anos têm sido para si bastante ricos em convites e encomendas, de músicos, instituições e festivais. A lista impressiona... Quer falar-nos um pouco do seu método de trabalho, de como conjuga as atividades nas várias frentes?
É muito fácil! Quando preciso de tocar piano procrastino a escrever, e quando preciso de escrever procrastino a tocar piano. Nunca fui bom a fazer a mesma coisa durante muito tempo, gosto daquela frescura inicial. No fundo, procuro fazer música mantendo essa busca pela novidade. Nada me entusiasma mais do que um novo desafio, escrever para um instrumento que desconheço, ter de o aprender, é estimulante.
O Crossfade Ensemble, constituído por solistas das áreas do jazz e da música erudita, foi um projeto efémero ou pensa dar-lhe sequência?
O Crossfade foi criado para tocar várias composições minhas que me tinham sido encomendadas por diferentes solistas e “ensembles”, e que foram sendo tocadas pelo país de forma pontual. Queria reunir essa música num concerto apenas e por isso juntei um “ensemble” com referências absolutas nos universos do jazz e do clássico em Portugal. João Barradas no acordeão, Jeff Davis no vibrafone e Ricardo Toscano no saxofone representam uma vertente mais jazz, digamos assim, e Hugo Assunção no trombone, Sérgio Carolino na tuba e Mário Marques no saxofone têm referências no campo da música erudita. O disco já está pronto, apesar de não termos ainda editora, mas a verdade é que, neste momento, tenho muita coisa a acontecer que não permite fazer um lançamento com a devida pompa e circunstância que um projeto desta natureza exige. Talvez no segundo semestre de 2020 ou em 2021, veremos.
Como olha para o estado atual da música em Portugal nos vários domínios? De entre os músicos mais jovens, há alguém que o cative especialmente?
Vejo o futuro com muita esperança, sinto que as novas gerações têm um interesse crescente pelo jazz e penso que há mais gente a aprender a tocar. Isso levará a um aumento do público e à emergência de novos talentos. Posso referir o saxofonista Manuel Teles e o seu companheiro Paulo Amendoeira, que venceram o Prémio Jovens Músicos este ano. São dois solistas com um potencial gigante e uma expressão muito madura para a sua tenra idade. Fiquei muito surpreendido também com o Quarteto Tejo, um quarteto de cordas que trabalhou comigo na música para “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e de quem, estou certo, muito ouviremos falar.
Com um 2020 tão preenchido, já pensa em 2021?
Confesso que nos dias que correm penso mais numa noite bem dormida!