Nuvens ao vento
João Camões (Coimbra, 1983) acrescentou recentemente um novo título a uma já assinalável discografia: “Selon le Vent” (uma edição da JACC Records), com o grupo que partilha com o saxofonista e clarinetista Gabriel Lemaire e o pianista Yves Arques, Pareidolia (com o acrescento, num tema, de Alvaro Rosso), constitui o resultado de uma residência artística que teve lugar em Coimbra, em 2016. Com formação clássica em viola no Conservatório de Música de Coimbra, onde foi orientado por João Ventura, Camões tem vindo a erguer um interessantíssimo corpo de trabalho, para o qual confluem elementos musicais distintos, que vão do jazz criativo à música erudita contemporânea, passando pelas tradições étnicas e por explorações eletroacústicas. Também licenciado em Engenharia Civil, mudou-se para Lisboa, onde rapidamente se integrou na cena da música improvisada e do jazz mais aventuroso, tendo vindo a desenvolver uma abordagem muito própria ao instrumento e à música, combinando técnicas convencionais com abordagens extensivas e evidenciando um permanente gosto pelo risco.
Após uma proveitosa temporada em Paris, onde deixou sementes em múltiplas colaborações (em particular a que deu origem ao grupo Pareidolia e a que estabeleceu com o manipulador de eletrónicas Jean-Marc Foussat, bem documentada em disco), regressou a Portugal para dar continuidade a uma jornada que tem surpreendido os melómanos mais atentos e exigentes. Entre os vários projetos em que está atualmente envolvido, salientam-se a Nuova Camerata, com Carlos “Zíngaro” (violino), Ulrich Mitzlaff (violoncelo), Miguel Leiria Pereira (contrabaixo) e Pedro Carneiro (marimba); Open Field String Trio, com Marcelo dos Reis (guitarra) e José Miguel Pereira (contrabaixo); Earnear, com Rodrigo Pinheiro (piano) e Miguel Mira (violoncelo); Bien Mental com Jean-Marc Foussat (eletrónica) e Claude Parle (acordeão); Autres Paysages, com Jean-Luc Cappozzo (trompete) e o mesmo Foussat; Gelber Flieder, com Luise Volkmann (saxofone) e Yves Arques (eletrónica). Tem também de pé um duo “intermedia” com a artista visual Kátia Sá e está a compor e a tocar para poesia e teatro.
Para além destes projetos regulares, tem trabalhado – em concerto ou “workshops” – com um extenso e heterogéneo rol de músicos, que inclui nomes importantes como Evan Parker, Elliott Sharp, Daunik Lazro, Burton Greene, Bertrand Denzler, João Paulo Esteves da Silva e Ernesto Rodrigues, só para citar alguns. Quisemos saber mais acerca do seu notável percurso e sobre quais são os seus intentos para o futuro.
Lançaste “Selon le Vent” com o teu grupo Pareidolia e, numa das peças, com Alvaro Rosso, contrabaixista uruguaio residente em Lisboa. Como posicionas este registo no contexto da tua discografia?
É um disco que resulta de uma das parcerias que estabeleci durante a minha estadia em Paris e, possivelmente, um dos últimos que decorrem da atividade que ali tive entre 2014 e 2016. Musicalmente falando, o confronto com a cena parisiense enriqueceu a minha linguagem. Há lá um número considerável de músicos que trabalha sobre paisagens, reducionismo e exploração da matéria sonora. São correntes que, não estando no cerne das minhas propostas musicais, me vieram contaminar o discurso. Creio que este será o meu grupo que mais se aproxima de algumas dessas propostas.
Podemos definir Pareidolia como a associação de um estímulo aleatório e vago com uma imagem ou um som de determinado significado. A música é para os ouvidos ou para o cérebro?
...ou para o coração? Os órgãos são de cada um, acho que cada pessoa pode distribuir a música pelo corpo como quiser.
No interior da capa de “Selon le Vent” pode ler-se um “haiku” do poeta José Tolentino Mendonça: «As nuvens hoje parecem / monges que tomam o chá / em silêncio.» É uma excelente imagem para ilustrar o poder imagético da música que fizeram...
Sim, estamos muito agradecidos a José Tolentino Mendonça pela cedência do “haiku”. Quando estávamos na fase de atribuir nomes ao grupo, ao disco e às faixas tudo começou a convergir. Aí lembrei-me de alguns “haikus” do livro “A Papoila e o Monge” (Assírio & Alvim, 2015), de que muito gosto, que se enquadravam perfeitamente na imagética a que estávamos a chegar. Depois, e compreendendo já o espírito da proposta artística, Inês Cóias fez as belíssimas linogravuras que ilustram a capa e o interior do disco. A coerência final do objeto deixou-me muito contente.
Apresenta-nos a génese de “Selon le Vent”. Depois de uma residência artística que aconteceu em 2016, em Coimbra, tocaram na igreja do Convento de São Francisco. Em que contexto te cruzaste com estes dois músicos franceses?
Em 2015, o Jazz ao Centro Clube (JACC) endereçou-me uma carta branca para editar na sua editora JACC Records. Há que agradecer ao JACC a confiança e o apoio ao meu trabalho. E de forma mais ampla, há que agradecer também por todo o seu apoio e contributo ao jazz em Portugal, bem como pela importantíssima ação cultural que desenvolve em Coimbra. O JACC propôs-me escolher ou criar um grupo para trabalhar em contexto de residência artística. O resultado da residência seria apresentado em dois concertos no Salão Brazil e na edição de um disco. A minha decisão sobre que grupo gravar foi quase imediata. Os Pareidolia existiam desde 2014 e, após muitos ensaios, tinham uma linguagem mais ou menos estabelecida e merecedora deste investimento. Conheci o Gabriel em 2014, no seio do Tricollectif, aproveitando sinergias existentes entre o coletivo e músicos portugueses amigos. À data o Yves tinha um ótimo duo com o Gabriel (registado no disco “De l'Eau la Nuit”) e partilhava casa com ele. Assim, começámos a tocar os três e a coisa foi ganhando forma.
Ouço neste disco uma abordagem reducionista à improvisação, afim de um certo “near silence”, conjugada com traços de alguma música erudita contemporânea. Como geres a tensão entre composição e improvisação?
É curioso o que dizes, porque tenho outra visão da música deste disco. Não acho que haja verdadeiramente uma proposta reducionista ou “near silence”. Há, sobretudo, uma utilização extrema de dinâmicas, conjugada com uma exploração exaustiva de certos motivos musicais, além de uma adoção recorrente de técnicas não convencionais. Quanto à dualidade composição / improvisação, isso depende dos projetos. Normalmente, procuro partir da improvisação livre para, de forma orgânica, chegar a algo. Esse algo pode ser um ambiente sonoro, uma forma de abordagem ou então uma composição (devo esclarecer que uso aqui a palavra composição de forma lata, compreendendo tanto as situações em que todas as notas estão escritas num papel como aquelas em que uma narrativa mais ou menos livre é pré-estabelecida). Regra geral, nos meus projetos puramente musicais toco música completamente improvisada, enquanto em projetos transdisciplinares desenvolvo uma estrutura.
“Selon le Vent” é consideravelmente diferente do disco anterior, “Autres Paysages”, com o trompetista Jean-Luc Cappozzo e o manipulador de eletrónica e engenheiro de som Jean-Marc Foussat (com quem, aliás, tens desenvolvido um trabalho muito interessante). Significa que este é um processo de busca, de evolução dos teus próprios interesses e métodos?
O Jean-Marc é um parceiro importantíssimo para mim. Entendemo-nos bem, encontrámos motivos e vontades comuns e acabámos por trabalhar bastante em duo. Formámos trios com convidados que nos interessavam. O Autres Paysages é um trio que nasce dessa dinâmica. O Jean-Luc é um trompetista fabuloso, um dos meus preferidos na verdade, que ajudou a levar a nossa música para um espaço poético muito interessante. Todos os meus discos são diferentes uns dos outros, por causa do processo de busca e da minha constante adaptação aos contextos. Como improvisador interessa-me, no contexto do grupo, procurar de forma orgânica a identidade e a proposta desse grupo. Por isso, e para isso, acabo sempre por adaptar o meu discurso ao que sinto ser necessário.
Formaste um trio com Foussat e o acordeonista Claude Parle, que resultou no excelente “Bien Mental”, disco em que reina uma intensidade controlada, com sucessivas camadas sónicas a aparecerem e desaparecerem, num caleidoscópio de atmosferas. O que te interessa mais na exploração eletroacústica: explorar o tal poder imagético, o paisagismo sonoro?
O meu trabalho com o Jean-Marc surge, não porque ele toque um dispositivo eletroacústico, mas sim porque é um músico muito consistente, com ideias musicais que eu admiro. Sublinho que, como improvisador, interessam-me mais as pessoas do que os instrumentos que elas tocam. Nesta música feita em tempo real trabalhamos, sobretudo, com as ideias que cada um põe em jogo. Há liberdade total e é melhor tocar com quem sabe usufruir dessa liberdade. Creio que a questão tímbrica começa a ser relevante quando compões, quando estabeleces “a priori” que a frase tal deve surgir com determinado timbre. Com isto quero dizer que não tenho ideias pré-estabelecidas sobre a exploração eletroacústica. Com o Jean-Marc resulta assim, com outro músico seria possivelmente diferente. Aproveito e apresento Claude Parle: acordeonista septuagenário francês, com estudos de acordeão clássico. Apaixonou-se pelo jazz e pela música experimental, tocou com Jac Berrocal e com Don Cherry. Praticou boxe. Após uma interrupção da prática musical, retomou-a no contexto do Butô, que também dançava. “Bien Mental” foi a primeira gravação que quis editar. Bien Mental é o meu grupo mais musculado: a energia e a intensidade musical estão quase sempre no limite e nos concertos já estamos todos terrivelmente transpirados logo após a primeira música.
Pode-se então dizer que consideras a eletrónica como uma ferramenta musical em pé de igualdade com os instrumentos “orgânicos” clássicos, de corda, por exemplo? O que pretendes com esse “input” eletrónico que não encontras nesses instrumentos? Qual é o teu pensamento sobre esta matéria?
Como já disse, mais do que os instrumentos, interessam-me os músicos. Todos os instrumentos têm as suas particularidades, vantagens e desvantagens. Por exemplo, com um piano posso facilmente tocar 10 notas ao mesmo tempo, mas com a viola consigo suster uma nota quanto tempo quiser. Em Portugal há músicos que utilizam a eletrónica como base de trabalho (como João Pedro Delgado, violetista que gravou o muito bom disco “Portuguese Contemporary Music for Viola and Electronics”) ou como forma de alargar as capacidades de discurso (como Carlos “Zíngaro”, que usa a eletrónica complementarmente ao violino). Mas tal não é o meu caso...
O efeito imagético de que falámos há pouco parece-me ser exponenciado quando estamos perante música completamente improvisada, composta em tempo real, sem qualquer tipo de preparação ou combinação... Quais são as premissas da tua abordagem enquanto improvisador?
Não sei se concordo... Acho que o efeito imagético da música é independente do processo construtivo. Aliás, penso que conseguimos emular imagens, de forma mais consistente, se a música for escrita previamente (e isso tem acompanhado a história da música, por exemplo com “As Quatro Estações” de Vivaldi, o “Peer Gynt” de Grieg ou “Different Trains” de Steve Reich). Como improvisador procuro ouvir o máximo e moldar-me ao espírito do grupo. É assim que gosto de contribuir. Tive o privilégio de participar há uns anos na residência XJazz com Evan Parker, onde ele disse algo que ressoou em mim, e que tento aplicar o melhor possível: «Make others sound good.»
Para a música dos projetos em que estás envolvido confluem elementos de diversas proveniências, do jazz à erudita contemporânea, da étnica à eletroacústica. O que há de tão desafiador neste baralhar de referências? Atração pelo risco?
Não penso muito nisso. As referências estão dentro de mim e dos outros músicos. Vêm da nossa vivência e da nossa aprendizagem. E entram em jogo quando têm de entrar. A arte é um espaço de liberdade!
Músico analógico
Consegues precisar quando e em que circunstâncias se deram os teus primeiros contactos com o universo dos sons? Cresceste com música? Tiveste algum impulso familiar ou aconteceu tudo por tua conta e risco?
Comecei a aprender música aos seis anos, por influência da minha mãe, com o pedagogo Virgílio Caseiro, que foi responsável pelo início da formação musical de imensas crianças conimbricenses desde os anos 1980 até hoje. Aos 11 anos entrei no Conservatório para começar a estudar violino. Não havia tradição musical na minha família, embora tanto eu como a minha irmã nos tenhamos tornado músicos.
Como despertou e se desenvolveu o teu interesse pelas músicas improvisadas?
O meu pai ouvia e mostrou-me a bossa nova. Partindo daí fiz uma ponte para o jazz, que comecei a ouvir com 14/15 anos. Era o fim da década de 1990 e o jazz estava um pouco na moda (acho eu). Em Portugal havia uma geração muito consistente (Maria João, Mário Laginha, Carlos Bica, João Paulo Esteves da Silva, Carlos Barretto) que estava num ótimo momento e tinha alguma visibilidade pública. Embora eu estivesse a fazer um percurso formal na música erudita, ouvia sobretudo jazz. Quando acabei o meu curso de Engenharia Civil mudei-me para Lisboa e apercebi-me da fervilhante cena local. Comecei a frequentar concertos, participei na Variable Geometry Orchestra, aí conhecendo os primeiros músicos, e passado pouco tempo fui convidado para integrar os Woods, que foi o meu primeiro grupo de música improvisada.
E porquê a viola, instrumento profundamente inserido na tradição musical europeia e já com um histórico importante de ligações às músicas exploratórias e de vanguarda?
Comecei por estudar violino, com 11 anos. Não sou muito grande, mas tenho dedos compridos que se encavalitavam no violino. Aos 15 anos propuseram-me experimentar a viola, por poder ser mais confortável. Quando experimentei, mais que o conforto, foi o timbre e a tessitura que me conquistaram. Até ao século XX, a viola foi um instrumento desconsiderado, saindo sempre a perder perante a concorrência do violino e do violoncelo. A tessitura de alto fez com que fosse frequentemente utilizada para apenas preencher harmonias. No século XX começam a surgir obras muito interessantes devido ao interesse de alguns compositores que se interessaram pelo timbre e pela tessitura e, seguramente, devido a alguns violetistas virtuosos (Hindemith, Primrose, Bashmet ou Kashkashian) que ajudaram a ampliar o seu universo.
De que forma os ensinamentos e referenciais clássicos estão presentes na música que fazes hoje?
A formação clássica que tive (primeiro no Conservatório com o Prof. João Ventura e posteriormente quando estudei com Samuel Barsegian) transmitiu-me a técnica que possuo. No meu entender, para criar música (e talvez para criar qualquer objeto artístico) há dois aspetos fundamentais: é necessário descobrir o seu som e descobrir a sua música. A técnica permitiu-me descobrir o meu som.
Queres apontar as figuras e os discos que consideras mais decisivos e que mais te influenciaram em todo o processo evolutivo de formação da tua própria identidade musical?
Para me simplificar a vida, vou cingir-me a seis discos que apresento na ordem em que os encontrei. “Focus”, de Stan Getz: estava habituado a ouvi-lo tocar bossa nova quando descobri este disco. É constituído por peças para saxofone solista, orquestra de cordas e bateria. Surpreendeu-me porque os arranjos estão muito bem feitos, as cordas fazem muito mais do que preencher harmonias. “Charms of the Night Sky”, de Dave Douglas: é um grupo de geometria improvável e os músicos são todos muito bons. As composições de Dave Douglas vão beber a diversas influências e são nitidamente pensadas para aquele quarteto. “Pretextos para Dizer”, de Mário Viegas: um disco de poesia que o meu pai tinha em cassete. Todo o trabalho de sonoplastia é de Luís Cília e está muito bem conseguido, amplificando a declamação do texto. O Cília é um músico muito interessante. Engajado politicamente, fez música de intervenção, além de um extenso trabalho sobre poesia portuguesa.
“Invenções Livres”, de Carlos Paredes e António Victorino d’Almeida: talvez o primeiro disco de improvisação livre que ouvi! Ainda hoje tenho um enorme prazer a escutar estes dois músicos tão inteligentes a coser e a cozer ideias. Este disco tem ainda um texto de Victorino d’Almeida que me marcou e em que ele fala sobre a generosidade dos sons. “The Codona Trilogy”, de Collin Walcott, Don Cherry e Nana Vasconcelos: era um trio constituído por três músicos muito criativos. Faziam uma música muito livre, com influências de música étnica de diversos sítios. “Coin Coin Chapter One: Gens de Couleur Libres”, de Matana Roberts: novamente um disco de diversas misturas, herdeiro da tradição AACM, engajado pela condição e pela história dos negros nos EUA. Por causa do domínio da técnica musical e do ativismo, considero que Matana é um dos músicos de jazz mais interessantes da nova geração.
És também, como disseste, licenciado em Engenharia Civil. Como foi, e é, equilibrar música e engenharia, mundos aparentemente distantes? Haverá alguma espécie de compensação ou, se quiseres, de contrapeso entre as duas atividades? Incorporas de alguma forma os conhecimentos fundamentais de matemática e de física no teu trabalho enquanto compositor e improvisador?
Tenho repartido a minha carreira profissional entre a engenharia e a música, duas atividades que, dentro de mim, se alimentam mutuamente. Como engenheiro, sou projetista e investigador, atividades em que tenho de ser criativo para desenvolver soluções que sirvam os constrangimentos. Vejo aí alguma analogia com a música que faço. Por outro lado, os processos musicais lucram com o pensamento analítico que a engenharia me deu. Não vejo, portanto, as duas atividades em oposição. Mas como o meu trabalho musical é sobretudo orgânico, não vai buscar nada à matemática nem à física.
A tua abordagem, que diria muito “física” ao instrumento, combina técnicas clássicas e outras menos convencionais...
A viola é um instrumento físico, tens de ativar certos músculos para gerar determinado som. Não é como um instrumento de sopro, em tens de soprar algures, ou um piano, no qual há um mecanismo mecânico entre o teu dedo e a corda. E eu gosto de sentir essa fisicalidade. Não trabalho com efeitos eletrónicos, sou um músico completamente analógico. Toda a paleta de sons é gerada recorrendo a técnicas da tradição clássica ou extensivas, que uso para alargar essa paleta. Tenho feito também alguma pesquisa sobre técnicas de preparação do instrumento, embora ache que, para isso, a viola é um pouco limitada (é uma caixa de madeira curva e frágil, com quatro cordas, o que não abre muitas possibilidades).
Quais são as tuas principais referências no que diz respeito a violetistas? E no jazz, Leroy Jenkins, Mat Maneri? Ou serão músicos não violetistas?
Sigo de perto o percurso de duas violetistas: Kim Kashkashian e Ana Bela Chaves. A Kashkashian é uma força da natureza! Tem um som fabuloso e uma inteligência a tocar que reconheço em poucos músicos. Coloca no mesmo plano repertório clássico (por exemplo, no ano passado gravou uma versão fabulosa das suítes de Bach para violoncelo), tal como tem trabalhado com compositores contemporâneos que lhe entregam peças novas. Personifica um certo contínuo na história da música em que me revejo, além de ativamente contribuir para a expansão desta. Ana Bela Chaves é uma referência da viola em Portugal. Integrou o Opus Ensemble, um dos grupos de câmara portugueses mais importantes do século XX, e que me marcou muito nos meus 20 anos. No jazz sigo com atenção o trabalho de Mat Maneri. Ele tem desenvolvido um trabalho muito interessante. No meu entender, sobretudo nos últimos anos, em que parece ter chegado a uma linguagem muito própria, misturando tonalismo e atonalismo com um timbre muito particular.
Assumes-te como um herdeiro do trabalho de vanguarda desenvolvido ao longo de décadas por Carlos “Zíngaro” enquanto experimentador e instigador sonoro?
Admiro muito o Carlos e a sua música. Na minha opinião, toda a minha geração é, direta ou indiretamente, devedora ao Carlos por tudo o que ele contribuiu e contribui para a música em Portugal. É um músico que alargou as nossas possibilidades e isso é notável. Conheci-o em 2003, num “workshop” para instrumentistas de cordas organizado pelo JACC no Conservatório de Coimbra. Lembro-me que, na altura, este “workshop” foi impactante para todos os participantes. Nos últimos anos tenho tido o privilégio de tocar com ele em diferentes contextos, o que me dá sempre muito prazer.
Pareces dar preferência a formações de pequena dimensão, que potenciem a atenção ao detalhe, algo que me parece ser caracterizador de muita da música que fazes. É algo que efetivamente procuras?
Gosto de grupos pequenos porque assim consigo ouvir bem o que toda a gente está a fazer. Assim cria-se uma música mais íntima.
E o formato solo? Atrai-te?
Como executante não particularmente. Fiz pouquíssimos concertos a solo até hoje. O primeiro que fiz surgiu de um convite do poeta Miguel Martins. Na verdade, esse concerto foi importante porque desbloqueou em mim algumas dúvidas sobre ideias e processos musicais (e até sobre a minha capacidade de me aguentar à bronca). Hoje sei que foi esse concerto que me abriu o caminho para todos os projetos extra-musicais em que tenho estado envolvido, como o duo com a Kátia ou música para teatro e poesia. Como ouvinte, atrai-me sim. Aqui em Portugal temos tido ótimos discos a solo, como o “Solo” de Carlos “Zíngaro”, o “Memórias de Quem” de João Paulo ou o “All the Rivers” de Susana Santos Silva.
Mais do que os formatos, as pessoas à tua volta influenciam o teu “modus operandi”?
Exato! Cada grupo ou projeto é uma entidade própria e única, que eu tenho de alimentar da melhor forma que conseguir. Essa alimentação depende das propostas dos restantes intervenientes, além de, por sua vez, os influenciar também. Para mim, essa dinâmica é muito mais poderosa do que o facto de estar inserido num quarteto de cordas, num grande ensemble ou com um poeta à frente.
Como é o teu processo de criação? És prolífico?
Não controlo muito o meu processo de criação, deixo as ideias fluir e amadurecerem dentro de mim.
Espaço de subversão
Integras a Nuova Camerata, com “Zíngaro”, o violoncelista Ulrich Mitzlaff, o contrabaixista Miguel Leiria Pereira e o percussionista Pedro Carneiro. Em que pé está este grupo?
São quatro músicos fabulosos com os quais tive o prazer de me cruzar. O grupo nasceu em 2011, no seio da associação Granular, a partir de uma proposta de Carlos “Zingaro”. Tocámos em 2012 no festival Jazz em Agosto e em 2016 lançámos na editora Improvising Beings o disco “Chant”. O álbum foi muito bem aceite pela crítica e, inclusivamente, foi considerado “Disco do Ano” pela jazz.pt. Todos nós temos agendas pessoais mais ou menos preenchidas, mas este é um grupo que tem vontade de tocar e que está pronto a tal, caso novas oportunidades surjam.
Outro dos projetos em que estás envolvido é o Open Field, um trio de cordofones. Continuam a trabalhar em conjunto? Há planos para o futuro?
É um grupo que hiberna neste momento. Todos tivemos outros projetos a meterem-se pelo caminho, o que abrandou e pausou a nossa atividade como grupo. Mas, tanto pela localização geográfica, como pela amizade que temos, é natural que brevemente retomemos o caminho.
E o projeto Earnear?
Esta resposta é parecida com a anterior (eu sou em parte responsável por isso, uma vez que tive de reduzir drasticamente a atividade musical por estar a terminar um doutoramento). Com o Rodrigo [Pinheiro, pianista] tenho uma grande afinidade musical, devida a percursos e interesses que se intersectam, e o Miguel [Mira, violoncelista] é o parceiro musical com quem toco há mais tempo («desde os tempos em que eu tocava Vivaldi», segundo ele). O grupo tocou há dois anos no Jazz im Goethe-Garten e temos gravações interessantes no bolso. Vamos ver o que se segue...
Também tens trabalhado com a artista visual Kátia Sá, sob o mote “diálogos improvisados entre música e imagem”. Queres explanar?
Como músico, há cerca de oito anos comecei a interessar-me por contextos transdisciplinares, nomeadamente na relação música / imagem, música / palavra dita ou música para teatro. O trabalho com Kátia Sá tem sido um dos mais profundos e compensadores da minha carreira. Admiro e respeito muito a visão artística dela. Conheci-a no grupo AJM Collective, com o qual colaborei algumas vezes em 2010. Algum tempo depois de a banda se extinguir, decidimos trabalhar juntos. Durante o processo de pesquisa e criação as ideias começaram a convergir para uma ideia mais robusta que trabalha a poética da mão e do gesto, a que chamámos projeto Mãos Largas. A proposta pretende ser um retorno ao gesto simples, despretensioso, que investiga a tactilidade das coisas através do prazer de “ver” ao tocar. A Kátia captura e processa o vídeo em tempo real, utilizando a mão que interage com objetos dentro de uma “caixa negra” que serve de pequeno palco. Embora a narrativa esteja estabelecida, durante a performance podemos abusar ambos da plasticidade própria da improvisação. Se tiverem curiosidade podem conhecer o projeto em http://stitulo3.blogspot.com/
Tens também relacionado música e poesia. Interessa-te esse lado “intermedia”, de articulação entre diferentes formas de arte?
A relação com a poesia tem por base uma questão difícil: como gerar som que promova e não afogue o texto? Claro que também me coloco questões parecidas quando toco com outros músicos, mas considero que o texto poético tem uma fragilidade maior que o discurso musical (por ter palavras e por haver pouca margem para improvisação). Comecei a fazer isto com o poeta Miguel Martins, que muito prezo, em sessões de poesia que ele organizava no bar do Teatro A Barraca. Posteriormente, conheci a poeta Cristina Lopes. Falei-lhe do meu interesse por poesia e marcámos um ensaio. Ela trouxe uma série de poemas curtos que começou a cortar e colar enquanto eu procurava propostas musicais. Desaguou numa performance que apresentámos em Paris, na Maison du Portugal, e em Coimbra no Salão Brazil.
E com o teatro?
Música para teatro é outra disciplina que me interessa. E aqui tenho o prazer de trabalhar em família. A Joana, minha esposa, tem uma sensibilidade e uma cultura artística como reconheço em pouca gente, e aprendo sempre que trabalhamos em conjunto. Colaboramos com Júlio Gomes, meu sogro, que é encenador. A proximidade física e afetiva permite que as diferentes componentes (movimento, texto e música) da peça evoluam em paralelo, obtendo uma coerência final que de outra forma dificilmente se atinge.
A lista de músicos com quem já colaboraste de forma mais ou menos pontual é bastante extensa e diversificada, incluindo muitas luminárias da música improvisada. Se te fosse dada essa possibilidade, com quem escolherias trabalhar (e ainda não o tenhas feito), nos planos nacional e internacional?
Não é uma pergunta muito fácil. Entre os músicos portugueses com quem ainda não trabalhei, interessam-me muito a música e o pensamento musical de Sei Miguel. Acho que ele tem um universo muito interessante e a música é incrível. No plano internacional, em vez de escolher músicos novos, preferia amadurecer encontros que tive, mas não consegui desenvolver ainda. Falo particularmente do violoncelista Hugues Vincent e da saxofonista Audrey Lauro.
Peço-te um exercício de distanciamento e, enquanto observador, partilhares o que pensas sobre o atual panorama do jazz e da música improvisada em Portugal.
Tenho a ideia de que aqui em Portugal a cena jazz tem uma energia muito boa. Talvez porque o meio é pequeno, as pessoas conhecem-se e misturam-se em diferentes projetos. As diferentes famílias musicais não são estanques, há um saudável circular de ideias que enriquece as propostas. Acho também que a qualidade dos músicos tem melhorado, possivelmente pelo progresso das escolas. Não é por acaso que temos assistido a um aumento do interesse da imprensa e dos agentes estrangeiros sobre o que se anda cá a fazer. No entanto, acho que há ainda deficiências nas estruturas em torno da música: não há muitos sítios onde tocar, não há dinheiro e os meios de comunicação são parcos.
Ouves muita música? Como é a tua forma de escutar o mundo?
Sim, ouço muita música. Tenho um núcleo de discos de que gosto muito e que vou revisitando regularmente. Procuro estar atento ao que se vai fazendo de novo, mas nem sempre consigo. Por isso elegi alguns músicos que me interessam particularmente para seguir de forma mais atenta.
O novo disco acabou de sair, mas já podes dar alguma pista em relação ao que poderemos esperar de ti nos próximos tempos?
Sairá ainda em 2019 o primeiro disco do trio Gelber Flieder, com a saxofonista Luise Volkmann e Yves Arques na eletrónica. Além de editarmos este disco, estamos a procurar dar seguimento a um projeto muito giro que montámos e apresentámos na Alemanha em 2018: concertos de música improvisada para bebés de 0 a 3 anos e de 3 a 6 anos. Seria ótimo se o conseguíssemos apresentar também em Portugal!
O que buscas, afinal, com a tua música?
Criar um espaço de subversão e partilhá-lo com a comunidade.
Discografia
Pareidolia: “Selon le Vent” (JACC Records, 2018)
João Camões / Jean-Luc Cappozzo / Jean-Marc Foussat “Autres Paysages” (Clean Feed, 2017)
Nuova Camerata: “Chant” (Improvising Beings, 2016)
Le Grand Fou Band: “Au 7ème Ciel” (Petit Label, 2016)
João Camões / Jean-Marc Foussat: “À La Face du Ciel!” (Shhpuma, 2016)
João Camões / Jean-Marc Foussat / Claude Parle: “Bien Mental” (Fou Records, 2015)
Earnear: “Earnear” (Tour de Bras, 2015)
Open Field & Burton Greene: “Flower Stalk” (Cipsela, 2015)