Tinha de ser assim
"The Wake of an Artist - Tribute to Bernardo Sassetti" contém três interpretações de temas deste e uma série de originais de Alberto Conde e Pablo Beltrán inspirados no homenageado, para além de um do violetista José Valente, com a sua participação solística, e o "ex-libris" de Sassetti, "Musica Callada" de Mompou. É a primeira vez que uma figura do jazz de outro país revisita a música do malogrado pianista e compositor, com o galego a fazer-se acompanhar por quem partilhou com o português tão boa música, Carlos Barretto e Alexandre Frazão. O disco chega como uma surpresa e é aqui apresentado na primeira pessoa...
Qual a sua ligação à música de Bernardo Sassetti? Como a conheceu e o que o atraiu na sua música?
Tive a oportunidade de ouvir Bernardo Sassetti duas vezes ao vivo nos anos 2004 e 2005, nos festivais Jazz ao Centro, em Coimbra, e no Iberojazz, em Pontevedra. Fiquei cativado pelo que transmitiu no piano, tocando sozinho. Então comecei a escutar vários CDs dele com o seu trio e também em piano solo. As suas obras originais têm uma enorme gama de nuances no campo da subtileza rítmica, harmónica e de timbre, e ele sabia também como criar espaços sonoros com texturas incomuns, quase diria que raras ou quase inexistentes em pianistas profissionais eaté celebridades do jazz. Além disso, era um excelente pianista do género que sabia interpretar músicos como Thelonious Monk, os “standards” americanos, música popular como o fado, o bolero e mesmo latin jazz e estilos próprios do flamenco, com um classicismo pianístico precioso. Era igualmente um maravilhoso compositor para cinema, com um refinamento cativante, e um óptimo improvisador. Tudo isto ajuda um músico a criar o seu próprio som. Acho que é necessário ter em mente o legado que deixou.
Como nasceu a ideia de gravar um disco em sua homenagem?
Depois de um tempo dedicado a outros projectos e quase cinco anos após o seu desaparecimento, escutei de novo os discos do Bernardo e percebi que estava a ter uma abordagem muito especial à sua música. Pude finalmente entender o que estava acontecendo musicalmente na sua cabeça quando compunha. Gostei ainda mais do que estava a perceber do que nas primeiras escutas, uns anos antes. Isso reforçou o meu interesse e foi então que decidi discutir isso com o escritor e crítico Rui Eduardo Paes. Se bem me lembro, foi numa conversa durante a penúltima edição do festival Imaxinasons de Vigo, em 2016. Depois de contar ao Rui os meus sentimentos, ele respondeu-me: «Acho que faz sentido. Tens mais coisas em comum com a música de Bernardo Sassetti do que diferenças.» Isso foi decisivo para começar a transcrever algumas das composições dele que mais me chamaram a atenção.
E como surgiu o trio Iberian Roots, com Carlos Barretto e Alexandre Frazão? Porque escolheu tocar com estes músicos que tocavam com Bernardo Sassetti?
Conheci Carlos Barretto em 2004, durante a celebração da primeira edição do Imaxinasons. Cada um tocava com o seu grupo no festival e, durante um jantar, lembro-me de termos comentado que tínhamos de fazer algo juntos algum dia. Avatares da vida, nunca pensei que seria para esta produção. Passado um tempo, com as circunstâncias imprevisíveis que este traz, o Rui e eu concordámos que era hora de conversar com o Barretto para encarar este projecto. Ele aceitou com total prontidão e falou com Alexandre Frazão, que eu ainda não conhecia pessoalmente, e que imediatamente também aceitou. Sendo eu pianista e compositor, não imaginei fazer este disco de homenagem sem os músicos que criaram com Bernardo o som do seu trio. Sabia que era um desafio difícil, mas tinha de ser assim.
No disco também toca o violetista português José Valente, participando como convidado num tema que o próprio compôs, "Embalo para Bernardo". Porquê a ideia de também o envolver?
Por causa do que percebi nas composições de Bernardo Sassetti. Além do trio e do piano a solo, era um amante de instrumentos como o vibrafone, a marimba, a percussão, os instrumentos de sopro e, muito especialmente, o violoncelo. Eu e José Valente somos amigos e tocámos em duo de piano e viola a sua composição "Embalo para Bernardo", dedicada ao nosso homenageado. "O jantar foi servido"... Foi fácil decidir que o Valente tinha de colocar essa nota de cor como o bom compositor e o excelente violetista que é, lembrando a beleza com que Sassetti usava o violoncelo e dentro de um contexto imaginário, do qual ele tanto gostava.
O alinhamento do disco é muito diversificado: tem temas originais seus, temas de Bernardo Sassetti, a peça de José Valente e ainda uma composição de Federico Mompou (que Sassetti tocou). Porquê estas escolhas?
Desde o primeiro momento, ficou claro para a equipa de produção e criação do álbum que este não poderia ser uma interpretação exclusiva da música de Bernardo Sassetti; se assim fosse, obteríamos uma interpretação clássica do trabalho do músico e o que queríamos era prestar-lhe tributo, propondo uma música que contasse diferentes situações do mundo do compositor em “jazz key”. Situações reminiscentes dos diferentes mundos musicais de Bernardo Sassetti e das suas paixões pessoais, como a fotografia, o cinema, o seu encanto por Lisboa ou o seu gosto pelas músicas de Federico Mompou e Thelonius Monk.
O disco é lançado pela Clean Feed. Como surgiu a ligação com a editora portuguesa?
Conheci Pedro Costa em 2005 no Jazz ao Centro em Coimbra, coincidindo com a apresentação do meu álbum “Entremares”, com o Alberto Conde Trio. Ele gostou do nosso trabalho e tivemos tempo de conversar sobre Bernardo Sassetti, que era editado pela Clean Feed. Nessa altura não falámos sobre a possibilidade de também eu gravar para a editora. Naquela época eu estava ligado à gravadora Karonte, de Madrid. Após a conversa no Verão de 2016 com Rui Eduardo Paes e graças à mediação dele com o Pedro, viajei para Lisboa a fim de fazer a proposta e pareceu-lhe óptimo realizar este projecto.
Tem ideia de explorar outras composições do universo de Sassetti?
Na gravação estão registadas três composições de Sassetti, “Sonho dos Outros", "Reflexos" e "Noite-Alice”, entre quatro transcrições que incluem "Ascent" e duas composições minhas inspiradas em "De Um Instante a Outro", uma intitulada "Num Instante” e outra de corte flamenco a que dei o nome de “Iberian Roots”. "Ascent" e "Iberian Roots" foram testados ao vivo, mas ao pensarmos no alinhamento do disco pensámos que faltavam temas que completassem o universo de Sassetti. Carlos Barretto sugeriu "Musica Callada" de Mompou, registado no disco “Nocturno”, que ele próprio transcreveu em minha casa. Não sei ainda o que poderá seguir-se.
Além deste novo álbum, já tocou com José Valente no Human Evolution Music Project. Conhece outros músicos portugueses? Tem vontade de colaborar com outros músicos de Portugal?
Escutei músicos portugueses de grande qualidade artística e interpretativa como Mário Laginha, Maria João, Carlos Bica, Carlos “Zíngaro” e outros mais jovens como Hugo Carvalhais e Mário Costa, entre outros. Partilhei os cartazes de certos festivais com alguns, mas nunca tive a oportunidade de colaborar com eles. Moro em Vigo, "Portugália" como dizem, e para mim o entendimento com músicos portugueses é algo de natural. Estou sempre ligado a isso e, claro, espero que surjam mais projectos.
Em que outros projectos está actualmente envolvido?
Temos um projecto audiovisual entre Galiza e Cuba com músicos galegos, cubanos e venezuelanos, no qual também participa José Valente sob o nome “Corrente do Golfo”, que está em processo avançado, mas com financiamento pendente para finalizar. Nasceu da minha colaboração com uma cantora cubana residente na Galiza, Diana Tarín, no Jazz Plaza 2015 de Havana. Gravámos no último mês de Agosto o que será o segundo álbum da Atlantic Bridge Band, um sexteto hispano-americano formado pelo guitarrista Steve Brown e o trompetista Walter White do lado norte-americano, e pelo flautista e saxofonista Jorge Pardo, o contrabaixista Kin García, o baterista Miguel Cabana e eu mesmo ao piano do lado hispano-galego.
Quais são os seus planos para o futuro?
O futuro imediato será dar a conhecer o álbum “The Wake of an Artist – Tribute to Bernardo Sassetti” e o artista que propiciou este maravilhoso projecto. Por outro lado, estamos a retomar as pontes com o jazz italiano que começaram em 2010-11 por meio de uma colaboração de intercâmbio com o Saint Louis College de Roma e o Conservatório de Música da Corunha, onde dou aulas. Em 2018 iniciámos uma gravação e fizemos vários concertos na região de Nápoles com excelentes músicos italianos. No próximo mês de Abril tocarei a solo no festival Pianocity de Nápoles e alguma composição de Bernardo Sassetti certamente soará. Em relação ao futuro distante, não faço planos.