Um inglês em Portugal
Com uma já longa carreira durante a qual tocou com meio mundo nos domínios do jazz e da música improvisada, dela constando uma reincidente colaboração com Carla Bley, Andy Sheppard vive desde Setembro do ano passado em Portugal, entre Mafra e a Ericeira. Trouxe-o uma história de amor e o divórcio entre a Inglaterra e a Europa resultante do Brexit e por cá tem tocado com músicos portugueses e ganho vontade de alargar essas parcerias. Na Festa do Jazz deste ano apresenta uma “masterclass” que, decerto, mais aprofundará a sua ligação com a cena nacional. A jazz.pt esteve à conversa com ele.
Como começou a tocar? E porque escolheu o saxofone?
Comecei a tocar relativamente tarde. Cheguei ao mundo do jazz através de um amigo músico. Nunca estudei música, sou completamente autodidacta, em miúdo estive num coro, mas foi a única ligação. Este meu amigo - que era Geoff Williams, com quem toquei na banda Sphere - percebeu que eu tinha um talento natural para a música e mostrou-me vários discos. Disse-me: «Tens de fumar isto e ouvir isto» e deu-me um montão de discos. Eu tinha 18 anos e foi então que ouvi pela primeira vez John Coltrane e Charles Mingus. Foi um momento de revelação, descobri essa música que nunca tinha ouvido. A partir daí o meu destino, aquilo que eu queria fazer acima de tudo, era tocar aquela música, tocar saxofone.
E essa aprendizagem do saxofone aos 18 anos foi um processo fácil?
Não, muito difícil! Eu já tinha tocado um pouco de guitarra, mas foi muito difícil. Praticava umas oito horas por dia. Durante dois ou três anos não fiz mais nada além de tocar saxofone. Não tinha dinheiro, estava com problemas… Na altura havia uma ajuda do Estado a quem estivesse desempregado, o que dava para me dedicar ao saxofone, mas tinha de ir a entrevistas de emprego. Como já tinha trabalhado por uns tempos numa loja de música, meteram-me como vendedor e arranjavam-me entrevistas de emprego como vendedor. Mas eu arranjei uma técnica para evitar ser contratado, para poder continuar a dedicar-me ao saxofone, que era chegar à entrevista e começar a gaguejar, o que funcionou por uns tempos. Chegou uma altura em que não foi possível continuar a receber o subsídio e então recebi um telefonema de uma banda de blues que estava à procura de um saxofonista. Foi assim que arranjei o meu primeiro trabalho como músico. Acho que o mais importante é ter um sonho. Depois, é só seguir esse sonho. A maioria das pessoas não tem estes momentos de revelação como me aconteceu. Tive sorte de ter esse momento, de perceber que aquilo que eu queria fazer na vida era tocar saxofone. E é isso que tenho feito desde então!
E desde então tem tocado com muita gente. Tocou com músicos históricos como Gil Evans, George Russell ou Carla Bley. O que aprendeu ao tocar com estes músicos?
Estamos sempre a aprender em todas as situações musicais. Não precisa de ser alguém muito famoso que nos ensine algo de especial, mas quando estamos ao pé de gigantes como Gil Evans, George Russell ou Carla Bley percebemos a seriedade e a paixão com que trabalham a sua música. O Gil estava sempre a pensar em música, a falar de música, 24/7. E continuo ainda a aprender muito com a Carla! Ainda agora ela me enviou uma nova partitura. Cada uma das suas composições é sempre um novo “puzzle” que tenho de decifrar. Ela está sempre a procurar novos caminhos harmónicos, novas linguagens… O que posso dizer? Ela é fantástica! Fico muito honrado por poder tocar com pessoas assim, é uma inspiração contínua.
Sopramos por um tubo e movemos os dedos
Ao longo do seu percurso também tocou música livremente improvisada. Foi importante ter essa experiência?
A certa altura, quando estava em Londres, estive muito activo na cena free, toquei com muitos músicos, como Kenny Wheeler, Elton Dean, Evan Parker… Também fiz um disco com Keith Tippett e tocámos muito. Com ele nunca falávamos de música; de facto, era proibido falar sobre música! Entrávamos em palco com uma assistência de duas mil pessoas e não se podia dizer «vamos começar em ré menor», apenas tocávamos! É uma música que acontece no momento, é muito libertadora e eu adorava tocar essa música. Mas também comecei a achar que era estranhamente restritiva. Tocar com toda a liberdade é uma coisa bela, mas também é bom ser livre dentro de uma estrutura, e pessoalmente acho isso mais interessante. Adoro tocar essa música, já a toquei muito e toco-a sempre com prazer, mas adoro a melodia, adoro a harmonia, adoro o tempo... Acho mais interessante improvisar dentro de uma estrutura. Mas para mim não há diferença entre aquilo que faço e aquilo que Evan Parker faz. Sopramos ambos por um tubo e movemos os dedos e com isso transmitimos emoções.
Já colaborou com músicos muito diferentes, em estilos musicais distintos. Um dos músicos com quem o fez foi o guitarrista John Martyn. Como era tocar com ele?
Era lindo! Costumava ouvi-lo muito quando tinha 16 anos. É magnífico quando se começa a trabalhar com alguém que já se admirava. John Martyn era um dos maiores “songwriters” do mundo e isso é uma coisa do caraças, conseguir escrever canções que toquem as pessoas. Ele tinha um toque especial e uma visão, aquilo que ele fazia era novo e era diferente. Trabalhar com ele era fantástico, mas também muito perigoso! Na primeira vez que toquei com ele bebeu uma garrafa inteira de rum antes de subir ao palco. E isso era apenas o começo, pois ele gostava de viver a vida intensamente.
Tem tocado com um quarteto com Eivind Aarset (guitarra), Michel Benita (contrabaixo) e Sebastian Rochford (bateria). Porque escolheu formar um grupo com estes músicos?
Foram músicos com quem me cruzei ao longo do meu percurso. Conheci o Michel quando vivi em Paris, aos 20 anos. Vivia num apartamento partilhado com um grupo de refugiados da Polónia, e nessa altura chegámos a tocar juntos. Mais tarde, toquei num disco dele e quando comecei a pensar num contrabaixista lembrei-me logo do Michel, pois já tínhamos uma história juntos e ele é um músico muito lírico. Conheci o Eivind porque tocámos juntos no grupo do pianista Ketil Bjornstad e percebi que ele era muito especial. Nunca tinha ouvido ninguém a tocar guitarra daquela maneira, com aquela sensibilidade. Ele é um feiticeiro! Quando ao Seb, uma vez fui ao Ronnie Scott’s ver um concerto e percebi que só estava a prestar atenção ao baterista. Ele tinha um carisma e uma forma de tocar muito particular. Fui procurá-lo e fiquei a saber que ele foi a um espectáculo meu quando tinha 12 anos. Foi com a mãe ver um concerto meu em Aberdeen e contou-me que esse foi um momento decisivo na sua vida, quando ouviu essa música diferente. Foi como que dar a volta.
O facto de que todos os músicos do quarteto são oriundos de países diferentes, com diferentes “backgrounds”, afecta a forma de trabalhar?
É verdade que envolve muita logística juntar o grupo todo na mesma sala, mas como estes músicos são fantásticos não precisamos de ensaiar muito para que eles percebam e entrem no espírito da música. Conheço estes músicos e sei que eles percebem aquilo que quero deles. Existe muita química, e por isso é um processo rápido.
Acaba de editar um novo disco, “Romaria”, pela ECM. O título vem de um tema da música popular brasileira. Porque escolheu trabalhar esta música?
Foi por causa da minha mulher, que tem um ouvido fantástico e recomendou-me que ouvisse a canção. Nós habitualmente tocamos músicas diferentes, especialmente no “encore”, e uma vez experimentámos esta. As pessoas gostaram tanto e nós gostámos tanto que encontrámos um “hit”! Quando gravei o álbum não sabia se Manfred Eicher ia gostar ou não, porque ele é que decide, é o patrão, mas adorou! Gravámos ao primeiro “take” e ficou feito. E gostou tanto que foi ele quem teve a ideia de dar esse título ao disco, que deveria ser a terceira faixa no alinhamento… Longe de mim discordar do Manfred, se ele propõe eu digo que sim. É uma canção belíssima, a letra é muito bonita também e tenho uma ligação especial com o Brasil, porque toquei durante muito tempo com Naná Vasconcelos. O meu primeiro contacto com a música brasileira foi com a bossa nova, com Stan Getz, etc., mas o Brasil é enorme e tem uma música muito vasta e riquíssima!
Com sol e número de contribuinte
Este disco tem também muitos temas originais e é, sobretudo, marcado por uma toada atmosférica. Quais foram as principais ideias que levaram a esta música?
Para fazer a música do Trio Libero [2012] fui para uma sala e grávamos improvisação livre durante três dias. Gravámos umas 30 horas de música. Depois fiz uma selecção dos melhores momentos dessas gravações, transcrevi e começámos a trabalhar a partir daí (com a excepção do primeiro tema, “Libertino”, que escrevi). Esta música nova surge na sequência, conheço a forma de trabalhar destes músicos e escrevi os temas especificamente a pensar neles. Acho que não iriam soar tão bem se fossem interpretados por outros músicos. Eles fazem-me soar bem! É assim que se deve fazer uma banda: escolher músicos que nos façam soar bem.
Está actualmente a viver em Portugal. Como veio parar aqui?
Sim, tenho uma casa a meio caminho entre Mafra e a Ericeira. Estou a viver “oficialmente” em Portugal desde Setembro do ano passado. Já tenho número de contribuinte, estou dentro do sistema! Casei-me em Portugal. A minha mulher, Sara, é portuguesa, e casámos em 2013. Já tinha vindo a Portugal várias vezes, sobretudo para tocar em Lisboa e no Porto, e também de férias. Adoro o país. E adoro a minha mulher, adoro a minha casa e o meu cão. Coincidiu com a minha vontade de viver num sítio onde houvesse mais sol. Também fiquei muito desiludido com o Brexit. No dia a seguir às eleições disse à Sara: «Vamos embora daqui.» Vejo-me mais como europeu do que como inglês, e mais do que isso, vejo-me como uma pessoa.
Tem vontade de colaborar com músicos portugueses?
Já montei uma pequena banda e temos tocado no Barzinho de Ribamar. Estou a tocar com Joel Silva, o baterista, e com Bruce Henri, um contrabaixista americano que vive em Portugal… Há alguns anos toquei com Bernardo Sassetti e com António Pinho Vargas. Mais recentemente, toquei com Mário Franco, com a Orquestra Jazz de Matosinhos e com Susana Santos Silva, que é uma trompetista fantástica! Estou pronto para tocar com músicos portugueses! Estou a descobrir muita música portuguesa, não só jazz, e estou pronto para me envolver mais com músicos portugueses, porque afinal de contas estou a viver aqui.
Quais são os seus planos para os próximos tempos?
Tenho agora uma nova “tour” com Carla Bley e Steve Swallow, e possivelmente um novo disco também. Estou envolvido num projecto em França, com Guillaume de Chassy e Christophe Marguet. Também gravei recentemente um disco com um pianista norueguês fantástico, Espen Eriksen, que é como John Martyn, compõe canções fantásticas. Vi-o uma vez ao vivo, a tocar em trio, e adorei, fiquei com vontade de tocar com ele. O Espen ligou-me para me convidar a tocar com o trio e adorei a ideia. Já toquei com eles em Londres e na Coreia do Sul. Estávamos na Coreia do Sul quando houve um teste da bomba de hidrogénio. Mas é assim a vida de um músico, vais para o concerto independentemente daquilo que acontece à volta. O que o mundo precisa é de mais música. Menos Donald Trump, mais música!