Bicho de sete cabeças
Saxofonista multifacetado, Gonçalo Prazeres estudou no Berklee College of Music (Boston) e na Escola Superior de Música de Lisboa. É um dos vértices do trio TRiSoNTe, grupo que mantém com Ricardo Barriga e Luís Candeias, que se prepara para editar um segundo disco. Estreou-se como líder e compositor com “Depois de Alguma Coisa” (2010) e recentemente editou “Snapshot” (2016), liderando um verdadeiro grupo “all star”: Albert Cirera (saxofone tenor), Nuno Costa (guitarra eléctrica), João Hasselberg (contrabaixo) e Rui Pereira (bateria). Antecipando o concerto que tem agendado para o Centro Cultural de Belém, a 9 de Setembro, Prazeres apresenta-se.
Como começaste a tocar? E porquê o saxofone?
Desde que me lembro, sempre quis aprender a tocar um instrumento musical, principalmente o saxofone, embora não saiba bem o porquê dessa preferência. Contudo, o meu primeiro instrumento foi a guitarra, que comecei a tocar quando tinha 13 ou 14 anos. Em 1999, dei aulas de guitarra numa filarmónica em Almada, e tive sorte, porque me deixavam tocar um pouco de saxofone quando um aluno faltava. Assim, confirmei a minha paixão por este instrumento. Consegui ter um saxofone em 2000, na altura em que estudava no Hot Clube enquanto guitarrista. Decidi mudar definitivamente para o saxofone quando tive a oportunidade de ver Jesus Santandreu ao vivo em Tavira, durante uma semana de “workshops” organizada por Zé Eduardo em 2001.
Em que momento te apaixonaste pelo jazz? Quais foram os discos mais marcantes que ouviste nessa altura?
Em 1997, Zé Eduardo dinamizava uma “masterclass” semanal em Almada. Antes disso já tinha descoberto uns discos de jazz lá por casa, mas foi ao longo desses meses que comecei a aprofundar e a conhecer melhor a multiplicidade de caminhos dentro do jazz. Creio que passado pouco tempo estava rendido a este universo musical. Era, e ainda sou, um fã de John Scofield e um dos primeiros discos que ouvi com mais atenção foi o “The New Standard” de Herbie Hancock, onde toca o Scofield. Outros discos marcantes dessa altura foram: “A Go Go” de John Scofield, “Azul” de Carlos Bica, “Suite de Terra” de Carlos Barretto, “Monk and Powell” de Paul Motian e “Something Else” de Cannonball Adderley, entre outros. Muitos destes ainda fazem parte dos meus discos preferidos.
Podes indicar alguns momentos mais importantes do teu percurso académico/de aprendizagem?
Houve vários momentos marcantes na minha aprendizagem e continuam a existir. Um dos mais importantes terá sido a oportunidade de participar na tal “masterclass” que Zé Eduardo dinamizou em Almada em 1997. Decidi, então, ser músico. O Zé foi um grande professor para mim e influenciou imenso a minha forma de encarar a música e, mais especificamente, o jazz. Lembro-me de uma situação específica na Escola do Barreiro, em 2000 ou 2001, que me marcou especialmente. Entrei nessa escola como guitarrista e tive a sorte de ficar no combo mais avançado. No primeiro período tocámos principalmente temas de Ornette Coleman e de Miles Davis, época modal e funk. No início do segundo período, quando já estava finalmente a começar a tocar aquele género, Zé Eduardo disse que íamos só tocar bebop e que o primeiro período tinha sido para nos “abrir os ouvidos e a cabeça”. Sei que esta estratégia cumpriu o seu propósito, pelo menos comigo.
A oportunidade que tive de estudar no Berklee, em Boston, foi obviamente fundamental para a minha formação. Não só pelos excelentes professores que tive, como Ed Tomassi, Hal Crook, Dave Santoro e George Garzone, entre muitos outros, mas também pelo ambiente dinâmico existente entre os alunos. Olhando para trás, reconheço que também aprendi imenso nas inúmeras conversas sobre música que mantive com os meus colegas portugueses que estudaram no Berklee College ao mesmo tempo que eu, principalmente Gonçalo Marques, com quem dividi casa durante quase três anos. O Gonçalo exerceu uma grande influência em mim, contagiante, principalmente no modo como se concentra e se dedica ao estudo do instrumento e à música. Outro momento marcante foi ter participado num “workshop” da School for Improvisational Music, em 2009. Nessa semana em Nova Iorque tive aulas e “masterclasses” com muitos músicos, nomeadamente Ralph Alessi, Tony Malaby, Gerald Cleaver, Steve Lehman, Ben Street, Ralph Milne. A minha principal preocupação, quando falo ou tenho uma aula com um músico que admiro, é perceber como funciona o seu processo criativo, como é que ele ouve, imagina e cria música. Assim, o contacto com estes músicos altamente criativos e prolíferos motivou-me a encontrar e a seguir o meu caminho.
Som de grupo
Quem foram os saxofonistas que mais te marcaram?
Alguns dos saxofonistas com quem tive aulas foram muito importantes na forma como vejo a música. Estou a falar principalmente de Jorge Reis, Ed Tomassi, George Garzone, Steve Lehman, Tony Malaby e Ohad Talmor. Outros saxofonistas que me marcaram, e ainda o fazem, enquanto influências, foram Lee Konitz, Steve Coleman, Chris Cheek, Cannonball Adderley, John Coltrane, Joe Lovano e Andrew D’Angelo, entre muitos outros.
Participaste no grupo GRIP 5, também designado A Condição de Equilíbrio em Queda Livre. O que aprendeste com este projecto?
Os GRIP 5 eram um projecto liderado por Ricardo Freitas, que era também o compositor do repertório. Tocavam também Francisco Andrade, Ricardo Barriga e João Lencastre. Olhando para trás, apercebo-me que a instrumentação é muito semelhante à do meu quinteto. A música de Ricardo Freitas para este grupo era intensa e exigente, com vários momentos de improvisação livre. Penso que a maior aprendizagem se baseou na experiência de desenvolver em conjunto um repertório totalmente novo e criar uma linguagem de grupo, mantendo os mesmos elementos. Tenho pena que este projecto esteja parado desde 2013.
“Depois de Alguma Coisa” foi o teu disco de estreia. Essa edição contribuiu para a tua afirmação como líder?
Decidi gravar o disco após o “workshop” na School for Improvisational Music, em 2009. Voltei muito motivado para desenvolver a minha voz, o meu som de grupo, e penso que marquei a gravação na semana seguinte a voltar para Lisboa. Procurei compor o quarteto com músicos que tivessem personalidades musicais bem vincadas e que pudessem trazer algo de si para o som do grupo. Foi um grande desafio para mim ter de me assumir como líder de um grupo e gravar um disco.
Os TRiSoNTe são um projecto diferente. O que define a música do trio?
Em 2002, Ricardo Barriga mostrou-me discos dos Human Feel e dos Tyft, e decidimos criar um grupo naquela onda, meio rock/free e sem baixista: gostámos da música, do conceito e do desafio. Fizemos o primeiro concerto em Dezembro de 2005, mas o grupo só começou mais a sério quando o Ricardo voltou de Haia e eu de Boston. Luís Candeias entrou em 2008. As peças que escrevemos para TRiSoNTe são cada vez menos acabadas, porque fazemos sempre o arranjo em grupo, tornando-se quase numa composição colectiva dado o elevado “input” de cada um. Penso que o que nos define é não haver nenhuma preocupação estilística e procurarmos constantemente um som de banda.
Estamos mais virados, actualmente, para o rock experimental, independente, com muito noise e improvisação livre à mistura. Mas tenho a certeza que tanto o Ricardo como o Luís têm outra visão sobre este assunto. O novo disco já está gravado. Neste temos um baixo eléctrico em quase todos os temas, tocado por Luís Candeias. Ao vivo vamos passar a ser quatro, contando com António Quintino no baixo. A inclusão de um baixista foi uma discussão amigável e regular que mantivemos depois do “Monster’s Lullaby”, o nosso primeiro álbum. Essa troca de ideias e os novos temas levaram-nos nessa direcção. Contamos editar o disco no início de 2018.
Apesar de não ser
"Snapshot" foi gravado num formato atípico, com dois saxofones. Que ideias quiseste trazer com esta música nova?
Alguns dos meus discos preferidos são com dois saxofones e sempre quis tocar com essa formação. Gosto muito da fusão tímbrica de dois saxofones com guitarra eléctrica. A minha ideia principal para este quinteto é que a música soe fluída e, de certa forma, simples, apesar de não ser. Para isso, foi fundamental a escolha dos músicos do grupo, pois procurei pessoas que possuíssem abertura para dar o seu cunho à música, contribuindo para o desenvolvimento de uma sonoridade de grupo. Pode trocar-se um instrumentista por outro, mas é a personalidade musical da cada um, misturada com os restantes elementos, que marca o som de qualquer banda. Penso que, com estes músicos, a paleta de sons e de ideias musicais torna-se muito vasta, levando a minha música na direcção que eu queria.
Vais tocar no CCB no início de Setembro. O que podemos esperar deste concerto?
Vai ser um concerto intenso, pois já não tocamos juntos há vários meses. Quando apresentámos o disco no Hot Clube também já não tocávamos em conjunto desde a gravação, vários meses antes, e em cada noite de concerto no Hot a música foi num sentido diferente. É muito interessante voltar a tocar a mesma música com as mesmas pessoas com intervalos tão grandes. Todos vivemos várias experiências pessoais e musicais nesses intervalos, que nos modificam; quando voltamos a tocar juntos, a música soa diferente e renovada. Gosto muito desta sensação e acredito que isso é transmitido ao público.
Em que outros grupos estás envolvido?
Toco com vários projectos fora do universo jazzístico, nomeadamente com o cantor de reggae Freddy Locks e com a banda de afrobeat Cacique 97, entre outras. Para mim é fulcral tocar outros géneros musicais, que também me influenciam, e que me trazem outras perspectivas sobre a música e outros modos de a viver.
Quais são os teus projectos para os próximos tempos?
Estou a preparar repertório para um grupo novo, mais direccionado para a improvisação livre, chamado Bicho de Sete Cabeças, que vai ter a sua estreia dia 29 de Setembro na Guilherme Cossoul, em Santos, integrado na programação do Festival Silêncio. E o disco novo de TRiSoNTe deve ser editado no início do próximo ano, como já disse, e isso requer concentração da minha parte.