Tem sido bom
Cantora originalíssima, a portuguesa Sara Serpa tem conquistado a atenção internacional. Desde que se estreou com o disco “Praia” (2008, com a participação de Greg Osby), Serpa vem alimentando um percurso sólido e versátil, no qual se destacam as parcerias com o veterano pianista Ran Blake e com o guitarrista André Matos (“All the Dreams” é o disco mais recente da dupla). Residente em Nova Iorque, a cantora está agora a trabalhar num trio inédito, com Ingrid Laubrock (saxofone tenor) e Erik Friedlander (violoncelo) – há promessa de disco para breve. Em Setembro, a convite de John Zorn, apresentará um outro trio, também atípico e promissor: Recognition, com Zeena Parkins e Mark Turner. Aproveitando a sua passagem por Lisboa, e antecipando três noites no histórico Hot Clube (27, 28 e 29 de Julho), a jazz.pt esteve à conversa com Sara Serpa, olhando o passado, o presente e o futuro.
Como começaste a cantar?
Acho que todos começamos a cantar quando somos crianças. Mas mais oficialmente foi num coro, que eram os Pequenos Cantores do Grémio Literário, a que pertenci durante 10 anos. Olhando para trás, vejo que era uma coisa bastante séria, ensaiávamos todos os sábados (umas três ou quatro horas) e houve até uma altura em que fomos a festivais (dentro e fora do País). Era um coro que se focava essencialmente em música antiga e foi assim que comecei a cantar. Ao mesmo tempo estava no Conservatório a estudar piano. Depois chegou uma altura, ali pelos 18 anos, em que tive de decidir o que ia fazer e nessa altura não havia grandes opções em termos musicais, não havia cursos superiores… Estava bastante distante do meu radar pensar na música como profissão. Por isso continuei a cantar e fiz o curso de Belas Artes, estive lá dois anos, fiz a licenciatura em Reabilitação e Inserção Social e foi no fim dessa licenciatura que entrei no Hot Clube. Foi aí que o mundo do jazz e da improvisação se abriu para mim e foi então que percebi que ia seguir por esta via.
O que foi que te cativou no jazz?
Não tinha grandes referências no jazz, além de um disco de Ella Fitzgerald com Louis Armstrong. Tentei ver o que dava. E aquilo que me fascinou foi esta forma tão sofisticada de fazer música que era desconhecida para mim. Descobri que podia usar a minha bagagem musical, que adquiri durante tantos anos, mas de uma maneira mais contemporânea e mais criativa, que é também mais intelectual, em que tinha de aprender harmonia e tinha de aprender improvisação… E também a questão de pode tocar com uma banda, de fazer parte de um grupo, uma vez que no conservatório o trabalho musical era bastante solitário.
Em que momento percebeste que era aquilo que querias mesmo fazer?
O que me apercebi foi que para aquilo que queria fazer precisava de passar muito tempo a fazê-lo, por isso estava constantemente a marcar sessões com o mesmo grupo de pessoas que estavam comigo, que nessa altura eram do Hot Clube. Criou-se um grupo que começou a fazer “gigs”, que não eram assim muito importantes, mas íamos fazendo aqui e ali, tínhamos um repertório… A minha vida mudou completamente a partir do momento em que me apercebi que era isto que queria fazer. A partir daí toda a minha energia foi focada a marcar sessões, a tocar com cada vez mais gente, etc. Lembro-me que no Hot cheguei a um combo e deram-me uma partitura que, para alguém que já tinha estudado coisas complexas de piano, me parecia relativamente simples, e disseram-me para cantar a melodia. Eu lembro-me de não gostar disso, pensei: isto é super fácil para mim, porque não posso aprender o resto? Não queria esse papel de destaque de ser a cantora, queria fazer como os outros.
O som da voz
Quais foram as influências iniciais?
Nessa altura ouvia muito Chet Baker, que tinha solos muito claros e articulados. E também Ella Fitzgerald. Depois fiquei fascinada com o quinteto do Miles Davis. Como era possível aquele nível de interacção? Ouvia também muita música brasileira e também alguns temas do Hermeto Pascoal que tinham músicas sem palavras.
És sobretudo conhecida por cantar sem palavras. Como chegaste a esse estilo particular, como se deu essa especialização?
O que eu queria era que não me pusessem de parte, quando todos os outros se estavam a divertir a tocar! Cantar uma melodia não é fácil, mas a arte de cantar um “standard” tem muito a ver com a cultura americana e eu não tinha uma expressão emocional através do Inglês. Para mim não era uma coisa que fosse natural e o natural para mim foi cantar sem palavras. O Inglês não era a minha forma de expressão natural naquela altura. Gostava do som da voz, sem palavras. Foi uma combinação de vários factores. E também o facto de eu querer o desafio de saber como era feito o processo da improvisação, queria saber como é que os músicos improvisavam, queria fazer parte desse processo!
Editaste em 2008 o álbum “Praia”, o teu disco de estreia, com a participação de Greg Osby. Foi um passo importante para a tua afirmação?
Acho que resultou de uma combinação de factores. Estava a estudar no Berklee College of Music, recebi uma mensagem de Greg Osby, a dizer que tinha ouvido a minha música e tinha gostado bastante, e convidou-me para fazer dois “gigs” com o grupo que estava a montar. Ele estava a preparar o lançamento da sua editora nova e tinha a ideia ambiciosa de lançar vários discos ao mesmo tempo. Foram editados vários discos de novos artistas e o meu fez parte dessa situação, coincidindo com o lançamento do disco dele, com a actuação no Village Vanguard e com a minha mudança para Nova Iorque. Isto aconteceu tudo em simultâneo, e foi naturalmente que trouxe essa projecção. Foi uma sorte e foi bom, mas foi daquelas coisas de que só te dás conta depois de tudo acontecer, daquela rara coincidência de tantos acontecimentos ao mesmo tempo.
Foste viver para Nova Iorque e já lá estás há vários anos. Como tem sido viver e trabalhar na “Meca” do jazz?
Tem sido bom. Nova Iorque é uma cidade que uma pessoa tanto adora como odeia. É possível ter os dois sentimentos em relação à cidade. Puxa muito por nós e é essencialmente focada no trabalho, por isso todo o trabalho que fizeres é valorizado. És empurrado para trabalhar e tem sido bom. Mas é um desafio constante!
Tens uma parceria musical com o guitarrista André Matos, que é também teu companheiro. Em duo, editaram no ano passado o disco “All the Dreams”. Como tem sido essa parceria?
Desde logo, apoiámo-nos mutuamente aquando da mudança para Nova Iorque, até porque não há muitos músicos portugueses por lá, não há uma comunidade estabelecida. Não havia outros músicos portugueses para serem os nossos mentores e nós fomos um bocado pioneiros. Há um choque com a mudança da cultura. A cultura americana é muito forte e diferente. Não só há esse apoio, como ele tem sido o meu parceiro musical desde sempre. Há muitas coisas que já extravasam o que possamos falar: tocamos e a música acontece assim. O trabalho do duo tem sido um esforço em desenvolvimento há muito tempo, mas só recentemente é que assumiu esta identidade, em que cada um escreve temas específicos e trabalhamos a sonoridade.
Estou a descobrir
Um dos teus projectos mais celebrados é o duo que tens com o pianista Ran Blake. Como nasceu essa parceria – oriundos de gerações e culturas tão diferentes - e como tem sido trabalhar com ele?
O Ran foi meu professor e as nossas aulas foram sempre práticas. Basicamente, o que nós fazíamos era tocar canções e acho que foi através deste trabalho com ele que me consegui ligar mais ao Inglês e àquilo que cada canção dizia. É uma pessoa que vem de uma geração completamente diferente – o Ran conheceu Thelonious Monk, entre tantos músicos da história do jazz – e é uma experiência incomparável poderes estar com uma pessoa que viveu tudo isso e tocar com ele. Respeito o trabalho dele e tento encaixar-me nas coisas que faz. É um pianista muito idiossincrático. Não tem uma abordagem convencional e toca coisas inesperadas. O trabalho com ele requer muita atenção, muita concentração.
Mais recentemente tens estado a trabalhar com o Sara Serpa Trio, com Ingrid Laubrock e Erik Friedlander. Há planos para a edição de um disco?
Fizemos alguns concertos desde Janeiro e gravámos em Junho. Comecei a trabalhar primeiro com o Erik. Conheci-o numa daquelas Masada Marathons organizadas por John Zorn. Tenho um ensemble, City Fragments, e a certa altura decidi experimentar o acrescento de um violoncelo. Chamei-o e acho que daí resultou uma boa dinâmica. No princípio deste ano comecei a escrever música e queria fazer algo de diferente, com um grupo novo. Convidei o Erik de novo e também a Ingrid. Para mim é um desafio, pois nunca escrevi para violoncelo e saxofone. Há muita coisa que não sei e estou a descobrir, a entender os registos de cada um e de que forma podemos combinar e fazer som juntos. Foi um dos meus projectos que aconteceram mais rapidamente: houve o ímpeto para escrever a música e agora já gravámos o disco. Deverá sair no início de 2018…
Vais estrear em breve o projecto Recognition, um trio com Zeena Parkins e Mark Turner. Como surgiu este grupo?
O Stone vai mudar de sítio e durante este processo de mudança John Zorn tem convidado vários músicos para actuações. Ele convidou-me para apresentar qualquer coisa no Drawing Center, no Soho, e eu vou lá apresentar um concerto com a Zeena e o Mark. Esse será o meu trabalho de Verão, escrever música para este concerto, e depois pensar em apresentar o trio mais vezes.
Além destes, em que outros projectos estás envolvida actualmente?
Vou tocando com muitos projectos diferentes. Tive recentemente um projecto completamente fora do jazz. Trabalhei com três cantoras e foi uma experiência diferente, com o repertório de Monteverdi e Béla Bartók. A coisa boa de estar em Nova Iorque é que tenho a oportunidade de colaborar com muitas pessoas diferentes. Uma coisa de que me apercebi é que a performance é muito importante, é um trabalho que eu gosto de fazer e por isso qualquer oportunidade deve ser aproveitada.
Este ano voltaste a estar incluída na Critics Poll da Downbeat como “Rising Female Vocalist”…
É bom ver o meu trabalho reconhecido. Fico sempre grata de ver o meu nome na lista.
Apesar de viveres fora, como vês o actual momento da cena do jazz portuguesa?
Já não estou em Portugal há bastante tempo, e ao princípio acho que estava mais ligada do que neste momento. Há sempre músicos novos, devido ao surgimento de novas escolas e de cursos superiores, há mais formação e há mais diversidade, o que é óptimo. Acho que falta o envolvimento de mais mulheres, seria uma das coisas que gostaria de ver. Há cantoras, e há cantoras muito boas, mas não há muitas mulheres instrumentistas. Acho que está em crescimento e disso só podem vir coisas boas.