Liberdade em construção
Gabriel Ferrandini é um baterista enérgico que vem desenvolvendo um sólido percurso que ultrapassa fronteiras - geográficas e de estilo. É o esteio dos dois grupos mais representativos da improvisação nacional, Red Trio e Rodrigo Amado Motion Trio, ambs de reputação internacional. Figura omnipresente da cena improvisada lisboeta, o baterista também explora projetos de rock mais livre e já tocou e gravou com Thurston Moore (Sonic Youth) e Alex Zhang Hungtai (Dirty Beaches). Numa conversa em que olha para o passado, Ferrandini recorda os ensinamentos de Evan Parker, analisa a residência artística “Volúpia das Cinzas”, que o levou a trabalhar afincadamente na composição e que resultará na edição de um disco, e lança projetos para o futuro.
Como começaste a interessar-te pela música e pela bateria?
O meu pai ouve muita música. Acho que fui educado sempre com muita música. Não tinha muito a ver com jazz ou coisas mais experimentais, mas sempre estive rodeado por muita música. Daí até chegar à bateria foi um instante. Tinha e tenho um enorme fascínio pela bateria. Nunca ponderei tocar outro instrumento, é um “first love”. Foi tudo muito cliché: comprei uma bateria, comecei a tocar com os amigos… Depois segui um percurso académico e fui estudar para o Hot Clube.
Quando é que se deu o “clique”. Quando percebeste que tinhas mesmo interesse em estudar música a sério?
Estudava no Hot e ao mesmo tempo estava a estudar “design” gráfico. O clique aconteceu quando compreendi que não queria passar tanto tempo ao computador. E há aquela coisa primária da bateria. É uma coisa antiga, tem muito a ver com o próprio objecto.
Como se deu a tua passagem para o jazz e para a música improvisada?
Tive um percurso estranho. Quando era puto não ouvia as bandas que os outros ouviam. O jazz apareceu muito cedo e acho que foi o som do jazz que me chamou a atenção. Quando decidi começar a tocar bateria, e fui estudar para o Hot, achei que essa era a forma mais completa. Achei que o mais lógico seria começar a aprender a tocar com essa linguagem. Nunca foi uma decisão “vou tocar jazz” ou “vou tocar free”, foi uma coisa orgânica. Passo a passo, cheguei a isto, mas nunca tomei uma decisão… Dás por ti e estás no Hot Clube, estás a estudar jazz porque faz sentido, depois aquilo já faz parte da tua linguagem, das tuas ferramentas de trabalho e das tuas opções estéticas. Aprendes a mexer com isso…
Consegues indicar alguns dos discos que mais te marcaram ao longo desse percurso?
O “A Love Supreme” foi bué importante! E desde logo tem Elvin Jones em topo de forma… Houve discos de Chet Baker que me bateram bué… Alguns do segundo quinteto de Miles Davis foram muito importantes também… O “E.S.P.”! As primeiras vezes que ouves aquilo parece perfeito. Há um disco que também é muito importante, não tanto numa fase inicial, mas já no meu caminho para o free jazz, que é o “Touchin’ On Trane” de Charles Gayle. Esse disco é mesmo importante, a cena de Rashied Ali. Aquilo é brutal...
Make the others sound better
E quem foram os professores e bateristas que foram influências mais importantes?
Alexandre Frazão foi importantíssimo! Foi um professor que desbloqueou muitas coisas e na altura ele tinha um método descontraído. Ele via que eu era um puto mais doido, que procurava outras coisas e ele puxava por mim, por isso foi muito importante. Tive uma aula com Paal Nilssen-Love, quando era mais novo, que também foi muito importante.
Em 2012 participaste numa residência artística do X-Jazz e passaste uma semana com Evan Parker. O que retiraste dessa experiência?
Evan Parker é um mestre, é um herói vivo. Apreendi bastante, coisas muito simples, como opções técnicas dentro dos ensembles e frases simples… Houve uma que ficou comigo: «You have to make the others sound better.» Lembro-me que ele olhou para os bateristas e disse que isto para nós era ainda mais importante, nós conseguimos fazer os solistas soarem melhor. Isto hoje parece uma coisa muito básica, mas na altura aquilo mexeu comigo, para compreender a importância de apoiar e acentuar outro músico, quem está a dar uma ideia lírica, de condução ou de solo. O Evan foi mesmo muito importante. Grande “boss”!
O teu projecto mais antigo é o Red Trio, que está agora a fazer 10 anos. Como tem sido o percurso deste projeto?
O Red Trio começou na Trem Azul. Eu tinha lá a minha bateria, e Hernâni Faustino, que trabalhava na loja, é que nos juntou. O Hernâni chamou-me. Ele já conhecia Rodrigo Pinheiro e a ideia foi criar um trio clássico de piano. Claro que as intenções eram as melhores, mas nunca pensámos que fosse uma banda que durasse tanto tempo. Eles são dois músicos excecionais. O piano é um instrumento fortíssimo, e ao longo destes anos com certeza que a música mudou. No início era mais fria e mais dura. Agora talvez a coisa tenha ficado um bocado mais lírica, menos aquela “improv” crua e dura… Claro que estamos sempre a trabalhar em moldes bastante livres e abertos, mas, como tudo na vida, a banda já é mais importante do que as nossas ideias individuais. O Red Trio é que nos diz o que devemos tocar. É muito tempo de crescimento, de partilha (de coisas boas e coisas más). Foi um percurso muito longo. As colaborações com John Butcher foram importantíssimas, talvez dos pontos mais altos a nível de aventura e de aprendizagem. Já tocámos com muita gente e vamos continuar a tocar. Colaborar é muito fixe, chamar alguém de fora abana um bocado as coisas e aprendemos muito com isso.
Outro grupo com quem tocas há muito tempo é o Motion Trio de Rodrigo Amado. Como tem sido a evolução deste grupo?
Em termos operacionais o Motion Trio não é assim tão diferente do Red Trio… O Motion é democrático na sua essência e o Rodrigo quer que nós demos o nosso “input”, mas enquanto o Red Trio é um colectivo, o Motion Trio é um trio de saxofone. O Rodrigo tem uma direcção muito clara e, por mais livre e democrática que seja (e eu posso fazer o que me apetecer), há uma condução muito clara por parte do saxofone. É um bocado mais clássico, é mais “saxophone music”. O que no final não quer dizer nada, pois fomos nós próprios que inventámos isso. Nunca impusemos regras e o Rodrigo nunca impôs qualquer “modus operandi” que não seja a liberdade.
O Motion Trio tocou também com outros músicos convidados. Que parcerias destacas?
Gosto sempre muito quando Rodrigo Pinheiro vem tocar connosco. Mas é preciso destacar a parceria com Peter Evans, que foi estranha. Quando toquei com o Butcher, foi como se ele nos convidasse a entrar numa sala; com o Peter, foi como se ele agarrasse em nós e nos atirasse para dentro dessa sala! Foi uma coisa de confronto, uma coisa muito atlética, de adrenalina. Estamos a tocar, aquilo está muito bem, de repente ele dá-te uma rasteira, e como é que lidas com isso? E será que consegues lidar com isso o mais rapidamente possível? O Butcher, também sendo um virtuoso, não tem a ver com esse aspecto de desporto radical. Nessa medida é muito inspirador tocar com John Butcher. Eleva-te, és obrigado a lidar com coisas maiores. Tocar com Peter Evans é mesmo um desporto. O gajo não te dá hipóteses e é um bocado assustador, porque ele é tecnicamente tão infinito… Mas Peter Evans é um “patrón” e a parceria com ele foi mesmo um dos momentos maiores deste percurso!
Um lugar mais perigoso
Gravaste o disco “Âncora” num trio com David Maranha e Alex Zhang Hungtai (ex-Dirty Beaches). Como surgiu este projecto?
Eu e o David estamos muito tempo juntos e trabalhamos muito, em ambientes diferentes, e isso traz solidez, dá confiança e cria laços. O Alex veio viver para Lisboa, quando ainda tocava como Dirty Beaches, e nós não o conhecíamos. Um dia o David organiza um concerto na Cave e chama André Gonçalves, que era amigo do Alex. Ele foi lá à Cave e partilhámos essa noite, com um “double bill”. O Alex viu o concerto e ficou doido: «Quem são vocês? Eu quero tocar convosco!» Na altura eu não fazia ideia quem era o Alex nem nunca tinha ouvido falar de Dirty Beaches. Depois fomos criando uma relação e surgiu o convite da Blogotéque para uma homenagem à Blue Note. Juntámo-nos e fizemos um tributo ao “Blue Train”. Correu tão bem que vimos que tínhamos de continuar. Pedro Santos chamou-nos para darmos um concerto no Teatro Maria Matos. O Alex acabou com os Dirty Beaches e, como já tinha um concerto agendado no Café Oto, em Londres, convidou-nos para irmos lá tocar em trio. Foi o nosso segundo concerto, mas o pessoal foi muito boa onda. Gostaram muito e fizeram questão que editássemos o disco. Agora a banda está com uma base muito forte, criámos uma amizade. O Alex adora Lisboa e sempre que pode vem para aqui.
Ao longo do ano passado trabalhaste numa residência artística promovida pela Galeria ZDB chamada “Volúpia das Cinzas”. Tens estado a compor e o objetivo final será editar um disco. Como correu este processo?
Já há algum tempo que me queria envolver na música desta maneira, queria escrever, não estar só a tocar bateria, queria tomar decisões e compor os meus próprios temas. Não por egocentrismo, mas por me querer desafiar. Queria colocar-me num lugar mais perigoso e com mais responsabilidade. É muito fácil ser o baterista, estás ali atrás, é um instrumento de suporte. Queria passar por essa responsabilidade. Quando percebi que estava pronto para começar a escrever, percebi que na verdade não estava nada pronto! Percebi que não tinha a capacidade para compor um disco inteiro de uma só vez. A residência na ZDB acontece a partir da minha vontade de escrever, mas também de trabalhar com muita calma, de tomar uma decisão de cada vez e ver o que resultava… Foram seis concertos e o centro foi sempre com Hernâni Faustino e Pedro Sousa. Eu tinha ideias na cabeça que só agora é que se estão a materializar. Estivemos durante um ano a trabalhar, mas só agora é que chegámos lá! O disco vai ser um “best of” do trabalho da residência e a proposta do disco é uma espécie de free jazz de temas curtos. Vamos ter músicas de dois, três, cinco minutos, não de uma hora…
Há dias disseste, numa entrevista na rádio, que tinhas um objetivo: «To bring free jazz back to the people.» Esses temas mais curtos podem ser uma forma mais fácil de levar a improvisação até às pessoas?
No free jazz há um problema que muitas vezes é negligenciado: um óptimo “gig” de “improv” ou free não é obrigatoriamente um bom disco! Muitas vezes os discos acabam apenas por ser registos de concertos e às vezes isso tem problemas funcionais, porque a música também pode existir noutros contextos. Por exemplo, um solo de saxofone de 48 minutos pode ser não só egoísta como muito pouco funcional… Num concerto ao vivo esse solo é incrível, mas noutro contexto não funciona. Comecei a perceber que os fins acabam por influenciar os inícios e mal sabia que esta questão ia ser o centro da problemática. Pensei: temos de começar a fazer temas curtos! E agora, depois de estruturarmos a coisa, depois de termos tocado 10, 20, 50, mil vezes dessa maneira, isto já está a mexer connosco. A forma como tocamos já é diferente! Como lidar com a duração, os arcos, as estruturas, as formas dos temas… O modo de lidar com tudo isso já está a mexer comigo como baterista e como músico. No final é simples: é a cena do free, é a cena da “improv”, mas encurtada! O disco vai ter 12 ou 13 temas, todos muito curtos.
A cena do free e da “improv” tem um certo estigma. As pessoas dizem «ai, isso é muito doido». As pessoas não têm um problema com a música, mas às vezes acham que não estão preparadas ou que à partida é muito difícil… Há coisas que afastam as pessoas desta música. Acho que há espaço para procurar coisas que aproximem as pessoas e temos visto que resulta bem. Tocamos uma melodia, depois improvisamos durante cinco minutos e parece que, assim, as pessoas assimilam melhor. É mais fácil do que se estarmos a tocar durante uma hora e meia… Acho que cresci muito com este processo. Este último ano foi muito importante para mim.
Tens tocado também com projetos de rock e free rock, tocas com os Caveira e chegaste a gravar um disco em trio com Thurston Moore (ex-Sonic Youth) e Pedro Sousa… Como é que isso aconteceu?
A cena com o Thurston foi muito simples. Ele queria tocar com músicos locais, daqui de Lisboa, e Sérgio Hydalgo, da ZDB, achou que fazia sentido ele tocar connosco. Claro que aceitámos logo tocar com o “Capitão América”. Ele é um “patrón” e foi tudo muito fácil. Claro que tem todo aquele peso histórico dos Sonic Youth, mas também muita coisa feita na “improv”. Por mais respeito e admiração que tínhamos por ele, estávamos a tocar e a partilhar o mesmo universo, por isso foi muito natural, foi muito mais fácil do que imaginava. Já foi há uns tempos, éramos mais putos. Quem me dera repetir, pois estou agora mais preparado para tocar com ele! É um gajo muito fixe e foi muito inspirador.
Melhor do que alguma vez
Tens uma relação especial com Pedro Sousa. Como tem sido tocar com ele em diferentes projectos ao longo de todos estes anos?
O Pedro é das pessoas mais antigas com quem toco. Já o conheço há 15 anos. Vi o Pedro mudar de instrumento. Toquei com ele quando era guitarrista, vi-o a mudar para o saxofone, a voltar para a estaca zero e a voltar a crescer. O Pedro está em pico de forma, acho que ele nunca tocou tão bem como agora, ele está a fazer coisas incríveis e ainda mal arrancou! Começou a tocar saxofone há seis ou sete anos e é um bocado absurdo o nível que já atingiu. O duo que tenho com ele - PeterGabriel - é uma cena “ongoing”, é uma coisa do dia-a-dia, de ensaio, e quase nos esquecemos de editar discos. É uma banda que é também uma escola, pois é ali que tentamos desbloquear imensas coisas. Talvez este ano haja um disco do duo. Quando as Damas, na Graça, fecharam para férias no início do ano, deixaram-nos ir lá para o espaço gravar. Estivemos lá a gravar durante três ou quatro dias e acho que já temos material, estamos muito empolgados. Mesmo que toquemos juntos também nas “Volúpias” (essa música está a ficar muito refinada), o duo é diferente, é um espaço de liberdade total e absoluta. É importante teres esse espaço onde um continua a surpreender o outro.
Vais apresentar um concerto especial a solo no Teatro Maria Matos (28 de Junho) com o título “Tudo Bumbo”. Porquê este nome e o que podemos esperar deste concerto raro?
O nome tem a ver com a minha avó. Ela sempre que me ligava para saber de novidades dizia «bate o bumbo, Gabriel!». Ou, se soubesse que vinha um concerto a caminho, ela dizia «bota o bumbo pa quebrá!». É uma referência brasileira à percussão e a uma maneira energética de a tocar. Ela sempre puxou muito por mim, é uma grande influência e uma fonte de inspiração. Muita da minha educação vem dela, principalmente neste pensamento musical e artístico. É uma referência à minha avó. E eu passo a vida a dizer “tudo mundo”... Juntei os dois! Quanto à música que vou apresentar: além da bateria, vou usar pedais e amplificadores e o som vai estar muito alto!
Que projectos tens planeados para os próximos tempos?
Há dois músicos com quem adorava fazer qualquer coisa este ano. Um deles é Sei Miguel. É difícil, o Sei é uma pessoa muito especial, com um universo muito específico, e é preciso que ele queira tocar comigo! Adorava fazer qualquer coisa com ele. Até com as outras bandas estamos a ver se arranjamos maneira de tocar com o Sei. A outra pessoa com quem adorava fazer alguma coisa é Ricardo Toscano. O gajo é brutal e tenho o “feeling” marado de que pode sair dali alguma coisa. O tipo era puto e já tocava pra caraças! Temos estado a falar e acho que vamos tentar fazer qualquer coisa. Agora, o que vai sair, não faço ideia! Somos de espaços diferentes, mas acho que a energia vai colar tudo. Ele também tem muito “power” e isso pode ser um bom princípio.
Tens sido um espectador atento e activo da cena da música improvisada em Lisboa. Como vês o actual momento?
Isto nunca esteve tão fixe! Dantes ouvia-se aquela treta dos velhos do Restelo, do pessoal ressabiado... Acho que agora o ambiente está mais “chill”. As interacções entre as pessoas estão muito saudáveis e acho que a música nunca foi tão rica! Quando penso em certas pessoas desta cena, vejo que a grande maioria (que não são assim tantas, mas já são algumas) está em pico de forma. Os músicos estão a tocar melhor do que tocaram alguma vez na vida. É por isso que a Wire publicou o artigo “Lisbon's New Jazz Vanguard”, na edição de Fevereiro de 2017. Os músicos de fora vêm cá para conhecer o pessoal e tocar. A música está brutal. Foi preciso que muitas coisas tivessem acontecido, mas neste momento acho que está muito sólida. As bandas estão mais sólidas, as vozes dos músicos estão mais claras, as pessoas estão a evoluir não só em termos humanos como em termos técnicos…
E há uma questão importante. que é a liberdade. Se estarmos afastados da Europa, estarmos afastados do circuito, parecia triste, hoje vejo que isso nos deu a liberdade de não estarmos presos a um certo género ou estilo… Isso acabou por funcionar da melhor maneira possível! Aquilo que parecia muito vago e estranho, era na verdade a nossa tentativa de fazer algo que fosse diferente. Não queríamos perpetuar a escola de Berlim, não queríamos perpetuar o free do Brötzmann, não queríamos perpetuar a cena inglesa… queríamos isso tudo e queríamos a nossa coisa! Acho que agora está muito bom, há bué pessoal a tocar, há muitos concertos, há cada vez mais sítios… Para o tamanho da cidade e do País acho que é brutal!