Guimarães Jazz e os equilíbrios do universo
O Guimarães Jazz é um dos mais importantes festivais do País, mas o seu director artístico, Ivo Martins, não é uma figura suficientemente conhecida por parte dos amantes portugueses do jazz. E isso apesar dos textos que reflexão que publica em cada edição desta iniciativa apadrinhada pela Câmara Municipal de Guimarães, e que ligam a música a uma realidade mais vasta. A jazz.pt conversou com ele, colocando-o na posição em que deve estar, a de um protagonista.
Quando é que entraste no Guimarães Jazz como programador?
Entrei na quarta edição do festival, em1996. O Guimarães Jazz começou por ser feito sem um lugar definido ou central: no café Milenário, no Paço dos Duques e em outros sítios. O festival estava a pesquisar, a aglomerar ideias e a criar substância e conteúdo. Era um festival de concertos. Depois, o seu perfil alterou-se e hoje é completamente diferente. Tem espessura, trabalha a vários níveis, não são só concertos.
Tem lastro…
Sim, ganhou alguma espessura, sedimentou. O festival no início era diferente e só foi possível iniciá-lo porque Guimarães tem grandes tradições na cultura local e nacional, pessoas interessadas pela cultura e que têm feito um trabalho importante.
Entras numa altura de fixação. Porquê?
Fazia um programa de rádio, comecei em 1988 e ainda hoje o faço. Gosto imenso de fazer rádio. O programa tinha duas horas semanais e eu escrevia todos os textos e fazia a locução. E foi assim: as pessoas da Associação Convívio sabiam disso, vieram ter comigo e perguntaram-me se queria fazer a direcção artística. António Ferro, o primeiro director artístico do Guimarães Jazz, tinha saído e eu aceitei, embora esclarecesse que não me sentia bem a dirigir sozinho, porque nunca tinha feito nada de parecido. Coloquei como condição não ser eu o director artístico exclusivo e unipessoal, aceitando integrar o grupo organizador que já trabalhava com o anterior director do festival. Sabia alguma coisa de jazz, informava-me, estava ao corrente do que se passava, comprava discos, fazia rádio desde os tempos em que estive numa estação pirata do Porto...
Toda a gente que gostava de música andava nas rádios piratas...
Na altura estava na Rádio Universidade do Minho, que me permitia mais liberdade e era mais independente, sem uma conotação comercial tão evidente... Foi aí que as pessoas do Convívio vieram ter comigo e propuseram a ideia.
O festival no início tinha umas propostas arrojadas, não era? Era aberto e pouco limitado a correntes.
Sim, o festival teve sempre propostas, em certo sentido, arrojadas. Agora olho para trás e posso tirar algumas conclusões. Na altura não tinha uma ideia precisa sobre o que era o Guimarães Jazz. A construção que se fez foi sempre muito intuitiva. Como tenho uma visão geral da arte, ligações às artes plásticas e a várias áreas de cultura, para além de um interesse por filosofia, sociologia e estética, conhecia a natureza e as lógicas de funcionamento da produção cultural. No entanto, ainda hoje não tenho uma visão muito clara do jazz, até porque o jazz escapa um pouco ao modo de funcionamento da arte. Tem só 100 anos, é tudo muito comprimido, o desenvolvimento do jazz é muito acelerado e não há vanguardas tal como havia no passado. Antes sabíamos que havia um grupo de artistas que estava à frente, que abria caminhos novos, e nesse tempo, nos anos 1990, o que eu via e lia era que o jazz se tinha tornado num eterno presente. Não há verdadeiramente vanguardas ou linhas orientadoras para que possamos dizer que há alguém a fazer um processo de ruptura contra qualquer coisa. Isso deixou de haver desde Maio de 68. O que existe desde a década de 90 é muita coisa a acontecer ao mesmo tempo. O free jazz fecha-se e encerra o ciclo com os músicos ingleses e holandeses que o levam ao limite...
A chamada improvisação livre europeia…
Free music, como se diz, aquela elaboração europeia do free que levou a improvisação ao limite, e a partir daí isto entra num processo em que começam a aparecer músicos muito cultos, que saem das escolas com conhecimento, dotados tecnicamente, que conhecem os processos de execução... conhecem música, não só jazz, tudo. A partir dos anos 1990 observamos que, num único tema, numa única improvisação, existem elementos de proveniências completamente distintas que se cruzam e influenciam mutuamente. O que se vê é o tipo de abertura que possibilitou o aparecimento do Guimarães Jazz. Um pouco de forma intuitiva, o festival consegue trabalhar esta ideia: reúne coisas, vai buscar elementos aparentemente dispersos, que supostamente estavam atomizados, não tinham unidade, e configura-os no seu programa. Pode-se chamar “conexões equivalentes” a essas ligações, o que corresponde a um princípio, um meio e um fim; hoje as coisas têm um princípio e um fim – não há meio. Então acho que o Guimarães Jazz tem essa característica. Comecei a trabalhar num grupo que me deu espaço para existir – é preciso dizer isto, eu entrei porque me deixaram ser eu próprio, e aos poucos o festival foi-se autonomizando das próprias pessoas que o vêm fazendo. Conseguimos que o público viesse aos concertos e a todas as actividades nele contidas, e isso deu bastante força ao acontecimento. Se o festival não tivesse público teria desaparecido.
Há que admitir
Não é um festival radical porque isso seria...
Já não há jazz radical...
Isso é verdade...
Já não há nada de verdadeiramente radical: alguém fica chocado com a arte? Há algum escândalo? Algo que se possa dizer que é radical?
Só as licenciaturas dos ministros…
É a corrupção, a miséria, a estupidez, a ignorância...
Retira a palavra radical. Podes programar uma música mais agreste, mais difícil, e outra que é mais fácil, mais simpática. Não quero com isto dizer que uma é necessariamente melhor que a outra, mas normalmente a facilidade em ser consumida significa uma maior pobreza...
Percebo.
É esse equilíbrio que conseguiste aqui, encher 600 lugares...
800.
Encher 800 lugares, em Guimarães, com jazz, é uma coisa notável.
É difícil. Há que admitir que é difícil. Os festivais que conseguiram sobreviver durante todos estes anos foram raríssimos. Há o da Gulbenkian e pouco mais. Muitos deles acabaram.
Como é que hoje vês o lugar de programador?
A minha sensação é que a função de programador é sempre baseada numa missão que é, por definição, inacabada, incompleta. Pessoalmente, sinto-me impotente perante a realidade porque não é possível absorver tudo o que está a acontecer – há muitos horizontes possíveis – e é necessário andar a descobrir meia dúzia de pontas soltas e fazer conexões com elas.
E o público, os tais 800 lugares?
Tem de se gerir a subjectividade, tem de se saber fazer essas conexões entre o festival e o pensamento do “outro”. Mas o outro não é um problema para o festival, e sim um estímulo. Nós, os programadores, temos de criar processos de empatia, isto é, temos de nos colocar no lugar do outro, de nos descobrirmos no outro. E isto é estranho, porque não dominamos alguém que se assume como um desconhecido. O outro tem uma enorme aleatoriedade: é um ser, como eu, que toma as suas decisões, influenciado por factores endógenos e exógenos, por factores subjectivos e objectivos, conjunturais. O outro é alguém incontrolável.
Um dos grandes choques que tive com o “outro” foi quando sugeri, nuns treinos que fazia de tiro com arco, que colocássemos música. Acederam relutantemente porque poderia perturbar se não fosse a música certa. Então, escolhi o “Koln Concert” de Keith Jarrett, pois achei que seria certamente uma coisa consensual, que toda a gente ouve sem problemas e é pacificadora. Foi uma revolta passados poucos minutos: disseram que a música era inaudível, que não tinha ritmo nem melodia, que desconcentrava. O “outro” não aguentou aquilo, que me parecia de uma enorme simpatia. Mesmo o “Koln Concert” é de uma agressividade enorme para algumas pessoas.
Pois, a música e o jazz exigem muito às pessoas. Vou dar um exemplo. Marco Barroso, do LUME, veio aqui fazer os primeiros ensaios com o coro e com a filarmónica para o concerto desta edição e nessa altura estava, naturalmente, um pouco apreensivo. O festival teve a experiência de uma “big band” residente durante alguns anos. Por Guimarães passaram Maria Schneider, Kenny Wheeler, Bob Mintzer, Gianluigi Trovesi e outros. Este contacto com a concepção de um espectáculo permitiu perceber muita coisa, e esse histórico foi importante, creio, para apoiar o Marco. Quando acompanhei o trabalho dele, observava e pensava: isto vai funcionar. Achei curioso como os músicos da Banda de Pevidém e os elementos do coro conseguiram resolver os problemas que este projecto lhes colocou. São músicos jovens, no caso da filarmónica com uma média de idades de 20 anos, e estavam a lidar com uma música complexa. O Marco usa estruturas rítmicas repetitivas e com “groove” que, apesar dos contratempos do baterista, das acentuações fora do tempo, das associações entre tempos fracos e fortes, apesar de tudo isso, há ali uma regularidade de cadência que toda a gente acha que é fácil mas que, na verdade, é dificílimo, porque existe uma subtileza nas acentuações que é complicada de atingir. É evidente que nós, que ouvimos muito, não sentimos isso, mas para os miúdos não. Isto para dizer que, de facto, o “outro”, mesmo sendo um músico que conhece, lê e toca música, face a situações que ele não domina, tem dificuldades. Portanto, o que fará a pessoa que não lê música, que não pratica música?
E que só consome música distraidamente, da rádio…
Porque hoje tu ouves música em qualquer local, o que é a destruição completa da música, prejudicando-a muito.
Hoje em dia não se concebe a ideia de praia só a ouvir o mar. Tens de ter lá uma batida.
Não há silêncio. Vais na rua e não podes ouvir só os sons da rua. Ligas a televisão e a rádio e tens música efémera de fundo, sem finalidade objectiva.
Tenho esperança que, com o tempo, isto melhore. Por enquanto, a possibilidade de ter música em todo o lado e a ideia que certas músicas criam ambientes sofisticados, faz com que eu esteja na praia e seja incomodado por um bar que acha que está a fazer um serviço público ao ter um DJ para dar música ao “sunset”. Não é visto como uma violação, como uma coisa obscena. Tenho esperança que esta falta de cultura, com o tempo, melhore.
Não sei, está tudo individualizado. Qualquer pessoa vai na rua, mete os auscultadores e alheia-se do som da cidade. O som da cidade pode ser interessante, é um som humano.
Quando morava no Chiado, Santana Lopes, que era então presidente da Câmara de Lisboa, teve a ideia de espalhar colunas pelos prédios para dar música ambiente e acordarmos com Rui Veloso. Mesmo com os lojistas e os moradores a queixarem-se, e a explicarem que a solução para o comércio no centro da cidade não pode ser o da reprodução de um Centro Comercial, ele ignorou os protestos. Uma falta de respeito total pela privacidade e pela individualidade. Voltando atrás... Vês a tua tarefa hoje de forma muito diferente de há 20 anos?
Sim, claro. Vemos, ouvimos, vivemos, sentimos. O que acho é que, em 20 anos, isto mudou imenso. Há 20 anos, quando cheguei ao festival, apresentei uma ideia de trabalho e percebi que o mais importante era conceber uma estratégia clara e viável para um festival de jazz. Sugeri um procedimento táctico, que consistia em eu comprar discos que achava, segundo a informação que lia, serem interessantes e, como antigamente os LPs tinham os telefones e os faxes dos agentes na parte de trás, enviávamos um fax ao agente.
Autonomia necessária
…Risos… Era tudo tão mais difícil na altura!
Mas foi assim. Porque desse modo nós temos autonomia. Naquela altura o jazz em Portugal era um meio ainda mais pequeno, havia muito pouca gente a trabalhar no terreno (poucos músicos, poucos concertos, pouco acesso à música) e, naturalmente, a maioria dos projectos que nos chegavam vinha dessas pessoas. Alguns eram excelentes: Betty Carter, Mal Waldron, Art Farmer. Mas também havia algumas coisas discutíveis e, sobretudo, inadequadas face ao perfil de festival que idealizámos. Senti que tínhamos de sair desse meio pequeno, de nos afastarmos e autonomizarmos.
Pois, de facto não parece fazer muito sentido ser um tipo de Lisboa a dizer o que é que as pessoas que gostam e conhecem jazz em Guimarães devem ouvir. Faz lembrar o Guimarães Capital da Cultura...
Foi preciso um certo grau de desprendimento e adoptar uma atitude um pouco fora da norma. Enviámos os faxes e estivemos até Setembro sem respostas. E perguntámo-nos: será que vai haver festival? Entretanto, começaram a aparecer faxes de resposta... Django Bates veio por fax! É incrível. Chano Dominguez veio por fax! O Rubalcaba foi o único que não veio por fax. Foi um amigo meu, que era do Instituto Francês, quem possibilitou o contacto. Tentei sair do circuito e autonomizar-me, isto é, criar a minha própria rede de contactos. Se não a criasse não tinha hipóteses.
Porque na altura pré-Internet era muito difícil ter “contactos”…
Totalmente. E as pessoas acomodavam-se. Não iam para o terreno. Tivemos a sorte de atravessar uma mudança brutal de conjectura (sobretudo ao nível da tecnologia) que nos foi favorável a todos os níveis. Passados quatro ou cinco anos apareceu a Internet, o que nos deu a possibilidade de enviar “e-mails” e estabelecer contactos muito mais directos.
É verdade, esse fenómeno do início da Internet foi extraordinário. Arranjavam-se os “e-mails” dos músicos mais incríveis e eles respondiam. Aquilo era tão novo que parecia a todos um privilégio a ideia de poder enviar e responder a um “e-mail”.
Quando trouxe Ken Vandermark a Portugal, telefonei para Chicago, para casa dele. É surreal. Liguei para a AACM e pedi o número dele. E eles deram-me o número de casa.
...Risos...
Liguei para o Vandermark e ele atendeu: «Sou eu.» Disse-lhe que gostava que viesse tocar a Guimarães, e ele disse que sim. Veio cá o Vandermak desta maneira. Hoje isso era absolutamente impensável. E há outro elemento muito importante, que é a revolução dos transportes. Multiplicaram-se as ofertas de transporte, os custos dos voos baixaram imenso, a quantidade de músicos em digressão é enorme. Antes tinhas de perceber se te poderias encaixar numa digressão. Eles hoje vão e vêm para fazer um concerto apenas em Guimarães. Isso já não é um problema. Vêm cá, fazem o concerto, vão para o avião e regressam. Tudo isto criou condições para potenciar o festival.
Mais ou menos lentamente conseguirias sempre fazer isto, mas a Internet deu um impulso.
Sim... Foi assim que descobri Jon Jang, que é um músico de origem chinesa.
Fazes uns telefonemas...
Não, o disco tinha a morada! Hoje parece incrível, mas foi isto que me autonomizou, que viabilizou o festival.
Fazes esse trabalho ao longo do ano? Já estás a preparar a edição de 2017 do Guimarães Jazz?
Não, não... O programa desta edição fechou em Janeiro. Rudresh Mahanthappa não deu uma resposta, mas insisti e disse que queria que ele viesse este ano, nem que fosse preciso pagar mais para ele vir à Europa a fim de só fazer este espectáculo. Claro que os “managers” querem sempre ver se encaixam isto em alguma “tournée” e só dão uma resposta se houver mais concertos, para ser mais rentável para eles, mas o Guimarães Jazz já tem esta capacidade de persuasão, que vem da sua credibilidade. Disse-lhes que o festival precisava do músico, houvesse ou não mais concertos. Theo Bleckmann veio cá fazer só um projecto. Veio e foi. Isto hoje já não é um drama.
Sentes que o festival já é mais reconhecido pelos músicos? Que já se vai sabendo o que é o Guimarães jazz no mundo jazzístico?
Não tem comparação! Passaram por aqui, durante todos estes anos, mil cento e tal músicos. Com estes a falarem, pelo mundo fora, sobre o festival, é natural que a coisa se propague.
Acho que o Guimarães Jazz contribui muitíssimo para a imagem e para a personalidade da cidade. Mesmo que algumas pessoas de Guimarães nunca tenham vindo ao festival e não tenham nada a ver com isto ou nem gostem de música, este festival, parece-me, contribui para a criação de uma imagem internacional da cidade. A cidade é-o, mas o festival, para quem está de fora e poderá até nunca cá ter vindo, lê a cidade de outra maneira, como outros eventos culturais – por exemplo o FMM de Sines – contribuem decisivamente para a construção de uma imagem interna e externa dos locais e para a sua identidade. O que é que te parece?
Esta cidade é um grande local para um festival.
É magnífica esta cidade para mim. A esta escala, em Portugal, Guimarães equipara-se a Évora...
Seria criminoso fazer um festival e não saber integrar o festival neste cenário magnífico. E foi o que nós fizemos. Começámos por uns concertos, depois fizemos “jam sessions” para poder penetrar na cidade, como uma raiz. Os miúdos da ESMAE, com a qual fizemos um acordo, vêm para cá e vão tocando por toda a cidade – cafés, restaurantes, centros comerciais.
No Verão?
Não. Em pleno festival. Estou numa reunião e dizem-me: «Temos de resolver isto porque há uma lista de espera enorme... Há aqui um conjunto de restaurantes, pastelarias, cafés que querem concertos e não temos gente para estes sítios todos.» Repara: há gente a pedir músicos e não há músicos suficientes para dar resposta. Já viste ao que isto chegou? É incrível.
Em qualquer lugar
Mas não te parece que isso também é um processo cultural? O jazz hoje considerado mais convencional era, há 30 anos, uma coisa inaudível, violenta para os ouvidos...
É evidente que era uma música menos conhecida e, por isso, as pessoas estavam menos familiarizadas.
Hoje o jazz mais convencional ouve-se com simpatia, já não choca ninguém. É até usado como sinónimo de requinte...
São processos de assimilação, lentos, que se vão fazendo com o tempo. Por isso é que eu digo sempre que isto precisa de tempo. Tenho de dizer que, em teoria, é possível fazer isto em qualquer lugar. Não fui eu que construí esta realidade...
Não concordo nada. O festival tem muitas características que só existem aqui. Vão do pormenor ao “pormaior”. Quando chego tenho uma carta de boas-vindas, muito bem paginada, que me recebe com umas palavras simpáticas. Isto é só um exemplo. É único!
Não...
Olha, começando por dentro. Vocês têm uma equipa de produção extraordinária. Aliás, devo dizer-te que me choca não ver nas comemorações dos 25 anos uma referência às pessoas da produção que estão – contacto mais com Bruno Barreto – ou as que já não estão, como Ricardo Freitas. Os do som, os das luzes, os que acompanham os músicos. É uma equipa incrível. As coisas correm com ligeireza. Isto não se consegue reproduzir noutras cidades com essa facilidade...
Sim, é gente do mais alto nível.
E isso faz com que os músicos apareçam aqui a tocar felizes, descansados. Nem imagino o que está por trás para as coisas acontecerem assim tão bem. Falas de um cenário e, em parte, é um cenário, mas Guimarães é uma cidade muito especial, com uma beleza só comparável a Évora. Isto não é replicável noutras cidades.
Então vamos pôr as coisas assim: o festival não é replicável, mas é possível fazer-se um festival em qualquer sítio, no sentido em que o “outro” existe em todo o lado. Não se pode pensar que isto é impossível de ser feito noutro lugar, ou que só nós é que o podemos fazer.
Sim, mas não era isso o que eu estava a dizer. Há vários factores em conjugação. Claro que, se me arranjares 20 000 euros e um auditório, eu faço um festival. Mas há uma continuidade, da qual fazes parte, que faz com que hoje, para o município, seja muito difícil dizer que este ano não damos dinheiro e não se faz o festival. Podemos discutir se poderias ter feito mais e melhor ou mesmo menos e pior, mas o facto é que fazes parte de uma equipa que criou uma entidade muito sólida. O festival já criou um lastro...
Uma campanha de “marketing” para promover uma cidade é muito menos interessante e, no limite, muito mais cara do que fazer-se um festival digno e sério.
E a Câmara de Guimarães teve a qualidade de perceber que isso é verdade. De perceber que mesmo que as pessoas não venham cá e não gostem de jazz, isto contribui para a imagem da cidade, tal como ter ruas arranjadas. O festival cria orgulho...
Há fenómenos curiosíssimos. Um exemplo: no outro dia fui a um excelente restaurante com uma entrada invulgar, porque temos de passar por uma garagem e depois há uma porta e só lá no fundo é que está o restaurante. Uma coisa estranha. Não é um restaurante que dá para a rua. Nem há um letreiro a dizer “restaurante”. Não! Passas por uma garagem e no fundo, no “basfond”, tens um corredorzito e só depois entramos na sala de refeições... E há fotografias do Guimarães Jazz afixadas na parede! Num restaurante. As pessoas apropriam-se da coisa, sentem-na como “coisa sua”.
Este conjunto programação / produção / cidade acontece porque há um equilíbrio entre uma música que, não sendo fácil e evidente, não é excessivamente espinhosa, e isso fez com que as coisas funcionassem. No final, o que fica, passa pelo público.
Só que não é uma fórmula, e sim o fruto de um trabalho de aperfeiçoamento e de adaptação às mudanças que dura já há 25 anos. Não pode ser feito a correr. Hoje em dia, há uma cultura do “evento”...
…Risos… Pois é, estamos na era do eventos…
Os “eventos” são fugazes e querem resultados imediatos. São como relâmpagos, têm um grande brilho, mas depois... é preciso esperar pela próxima trovoada.
Os festivais não têm esta dimensão de cidade, de projecto cultural para uma cidade; estão associados à venda de produtos, são patrocinados por marcas de bebidas alcoólicas, por empresas, e são negócios de toma lá, traz cá. Os Cool Jazzes são pretextos para vender. Não há a ideia de criar um projecto de identidade.
Pois, há muita programação que se diz de jazz algo estranha e incoerente, misturando coisas muito mais próximas da pop ou do soft jazz, o que é um desrespeito para com todos aqueles homens brutais que inventaram o cool... O Guimarães Jazz também foi muito discutido, muito conversado, durante muito tempo, de modo a descobrirmos soluções para os desafios. Por exemplo, a introdução dos miúdos da ESMAE foi uma componente que desenvolveu este festival e o exponenciou, o transformou e lhe deu um sentido comunitário. Ver James Carter tocar com um miúdo de 18 anos e a incentivá-lo, a dar-lhe espaço, é notável!
Deixa-me pegar noutro assunto: a reflexão. Em cada edição do Guimarães Jazz tens editado um texto de reflexão teu sobre assuntos que consideras importantes. Versas sobre diversos aspectos relacionados com o jazz. Isto é uma coisa única. No fundo, aproveitas o festival para lançar alguma reflexão. As pessoas se querem lêem, se não querem não lêem, mas percebe-se que há alguém a pensar coisas e de que isto é mais do que uma série de concertos. Essa ideia surgiu como?
Era necessário documentar. Por mais que faças as coisas, por mais que consigas ter boas ideias para levar até ao palco, se não as explicas de alguma maneira, se não deres consistência àquilo através de um texto... A palavra fixa as coisas.
Ainda que esteja inflacionada. Tudo é maravilhoso ou tudo é catástrofe: as palavras são sempre usadas no seu sentido mais extremo.
E o texto é qualquer coisa que fica. E pode ser lido em qualquer altura. Não foge, não desaparece. Tens um texto, está lá. Ao mesmo tempo, justifica o que faço.
Tens tido reacções aos textos. Já ouvi várias, positivas e negativas…
Bem... creio que o do ano passado terá suscitado uma reacção um pouco mais efusiva do que o habitual. Foi lido por pessoas de fora do jazz, pessoas das artes plásticas. Era um texto muito aberto, dava para tudo. Aliás, a maior parte dos textos que escrevo nada têm a ver com o jazz, são sobre a arte em geral, sobre o conceito artístico, sobre a criação. Uso o jazz como veículo, mas em termos de pensamento está para lá da coisa. E esses textos também comentam.
Alguma coisa passa
O jazz é uma linguagem usada, mas no fundo…
Sim, há músicos que passam aqui e que se referem aos textos. David Liebman chamou-me a uma mesa e disse: «Então você é o rapaz que escreve aqueles textos.» É porque alguma coisa passa. E isto é importante para o festival. Pode não ser importante num ano, mas em 20 anos deixa lastro. É como um icebergue, não vemos a parte submersa, só a parte do palco. É um texto que enquadra o projecto, que o explica e dá as razões. Define o projecto. E não é fugaz, o texto fica para sempre. Isso para mim é importante, constitui história também. E há outro aspecto: quando escrevemos sobre aquilo que fazemos não damos margem para que venham outros deformar, destruir, distorcer. Assim, não damos hipóteses a que outros façam discursos paralelos. Aquilo está lá. E das duas uma: ou essas pessoas têm de facto força para desconstruir aquilo – e podem desconstruir – ou não poderão partir do zero porque há qualquer coisa escrita. Desta forma defines e defendes o festival. Claro que os textos são parte intrínseca do projecto.
Como é que vês isto daqui para a frente? Vês-te ligado ao festival no futuro? Pode ser passado para mais alguém? Este é um projecto sólido que contribui de forma decisiva para posicionar a cidade numa oferta cultural – e até turística –, e portanto vejo que o festival tem solidez.
Isto é tudo muito volúvel...
Pode aparecer um fax?
Hoje o público é muito volúvel. Não há um público fixo como havia no passado, em que era tudo muito estratificado: os da clássica, os do rock, os do jazz... Aliás, nos anos 1950, muita juventude revia-se no jazz e hoje existe uma mutação. Mais, o jazz arriscou imenso, porque logo a seguir à entrada do rock apareceu o free e o jazz endureceu ainda mais o discurso, arriscou. Podia ter-se extinguido ou podia ter estagnado. O jazz aguentou-se, manteve-se pertinente.
E o jazz branqueado, lavado com lixívia e desinfectado? Não vês isso também como uma ameaça? A gente que o ouve depois acha que isto não é jazz, sente-se enganado. Numa conversa que tivemos há uns anos usaste uma expressão engraçada: «Não estou preocupado em saber se isto é jazz, meio jazz ou um quarto de jazz.»
Pois, isto é complicado. A única coisa que resta é manteres o teu caminho, manteres a tua coerência. Dar uma imagem de integridade e esperar que as pessoas reajam e acreditem nos anjos bons do homem. Temos de pensar que a nossa integridade gera coisas boas. Eu acredito nisso. É um bocado romântico, é sempre uma batalha perdida, há sempre um sentimento de perda. Requer persistência. Se não tens persistência... E mais: o êxito não me dá gozo, não é esse o meu propósito. Se estou numa sala e tenho 15 pessoas de acordo comigo o melhor é duvidar de mim.
Estamos numa altura em que, em termos de comunicação social, todos os concertos são excelentes. Não é uma questão do jazz: rock, pop, é tudo fantástico, não há nenhum concerto mau em Portugal. Vivemos num rectângulo privilegiado em que os jornalistas reportam que tudo o que toca cá tem um sucesso estrondoso e é muito bom. O que é que se faz com esta percepção completamente alterada que se está a criar na população sobre o que é o jazz, que faz com que, por exemplo, tenha havido pessoas num concerto recente no Seixal Jazz, de Mette Henriette, chateadas porque aquilo não era jazz? Falavam alto, estavam incomodadas a dizer que aquilo não é jazz. O Jazz em Agosto da Gulbenkian achou que tem de usar a expressão “o outro lado do jazz” para dar a entender que aquilo que programa não é o mesmo que as pessoas ouvem na Smooth FM e acham que é jazz. Houve pessoas a reclamar o bilhete na Gulbenkian porque aquilo não era jazz. O que é que se faz com estes avaliadores? Com estes medidores-orçamentistas do jazz? Começas a ter uma luta, que não pediste, com a ignorância, em que ela te vem incomodar. Não vou ao EDP Cool Jazz reclamar o bilhete a dizer que aquilo não é jazz. Simplesmente, conheço a música e não vou lá. Mas estes não. Vêm a tua casa e dizem que a tua carne estufada no forno é uma porcaria, porque estão habituados a comer hambúrgueres no McDonalds e não sabem assim... Este é um problema que o jazz não tinha.
Isso não me diz respeito, porque essas coisas são mais os sintomas do que as causas do mal-estar. Enquanto o sistema for este, o do capitalismo brutal, isto vai ser assim. Há um mercado que tem dinheiro, que define regras e que passa por cima dos estados-nação. O conceito de estado-nação hoje está em crise. Enquanto for este o sistema, isto vai continuar. O que dizes é verdade, mas acho que as soluções para isto não fazem parte do sistema actual. Tem de haver uma solução vinda de fora do sistema. Porque o capitalismo tem uma capacidade incrível de adaptação ao meio. É uma máquina infernal de jogo permanente e é autofágico: mata os banqueiros e produz novos banqueiros. Isto é assim. E isto é difícil porque cada vez está mais abstracto. Os níveis de energia permitem graus de abstracção cada vez maiores: não conheces ninguém. Trabalhas com fluxos. Fluxos... metes na Internet fluxos para ali, fluxos para acolá, o dinheiro entra e sai sem aparecerem notas. Antigamente, tinhas uns gajos no Oeste americano atrás de uma caixa com notas. Hoje não há notas... O que se joga hoje é a criação de pontos culminantes, novidades. As pessoas valorizam sobretudo a novidade. Quais são as novidades? Pontos atomizados, dispersos, que não permitem a construção de uma narrativa. Queres construir uma narrativa, dar uma direcção a essa narrativa, um sentido: há um sentido, um meio – cheio de conexões equivalentes, de possibilidades, de pontas atadas – e tu constróis e chegas a um fim. Chegas a esse fim, olhas para trás e vês trajecto, vês percurso. Hoje isto é dificílimo. É por isso que as pessoas estão em alto sofrimento, deprimem... Isto hoje é estímulo-resposta. É uma sociedade reactiva. As pessoas reagem ao estímulo. Não há tempo para contemplar, para pensar. Para olhar e ver o que é que estou aqui a fazer. Vou para ali... muito bem... mas onde é que isto me leva? Para o que é que isto me leva?
Esse silêncio, necessário para a tal introspecção, foi subtraído. Como falávamos há pouco, há um esforço enorme para preencher os vazios, para acabar com os silêncios. Tem de haver sempre “animação” em todo o lado... eventos e animação.
O Guimarães Jazz é como um surfista: aproveita a onda. Tem de se manter em cima da prancha e aproveitar a onda. A onda vai crescendo e o festival tem de se aguentar em cima da onda.
Vocês também têm tido algum cuidado em não deixar criar as ondas gigantes da Nazaré. Por exemplo, no Guimarães Capital da Cultura, ou mesmo agora na comemoração dos 25 anos, não fizeram um festival de estadão, com uma onda gigante que depois cai, ou não concordas?
Porque há lastro. Nós não trabalhamos na perspectiva do evento, na perspectiva da exposição fugaz. Nós trabalhamos na perspectiva do lastro, da densidade, da espessura. Uma coisa muito importante é não negar o passado. Mesmo no jazz. Negar o passado como forma de fazer o futuro. O jazz precisa das referências todas para poder ser. Prescindir disso é isolar-se num labirinto. É ir para um gueto, entrar num beco sem saída, entrincheirar-se.
Um acto cultural
E mesmo em outras músicas... Acho que foi um erro brutal de algum jazz, e se calhar mais visível até nalguma escrita sobre jazz, fechar-se no jazz, como se o jazz não comunicasse com outros mundos musicais. Não se pode ser crítico de jazz, conhecendo Dexter Gordon, sem saber quem é Salvatore Sciarrino ou a Jon Spencer Blues Explosion.
Totalmente de acordo. É como se o ouvinte de jazz ouvisse unicamente jazz.
Sinto que isto tem a ver com a crítica de uma certa geração que se fechou no jazz e em algum rock, na melhor das hipóteses. Viviam num mundo próprio, emclausurado, que não se conectava com os outros mundos.
E ainda há uma coisa muito importante: a programação é um acto cultural. É um acto civilizacional, no sentido em que é preciso estabelecer relações, ligações entre pessoas, improváveis. Encontros improváveis entre muitas pessoas que, aparentemente, pela natureza da sua personalidade, jamais confluiriam. E podem estar juntas, fazer coisas juntas, terem ideias diferentes, mas fazerem-no. O nosso papel de programadores é o de juntar pessoas. Não é dispersar pessoas. Não é «tu não, este sim, tu não»...
E a ti interessa-te, enquanto programador, juntar pessoas que nunca se encontraram? Juntar grupos que não existem ainda?
Evidentemente!
Uma das poucas pessoas que parecem ter essa capacidade neste momento em Portugal é Pedro Costa. Tu tens explorado essa possibilidade? Consegues fazer isso?
Dentro do possível. Isso é civilizacional. São níveis de interacção entre coisas. A cultura tem um estrato relativamente baixo. Estamos a trabalhar entre pessoas conhecidas. Civilizacional é isso: coisas improváveis; pouco prováveis, de certa maneira. Pouco previsíveis. É assim que se adianta. Se analisarmos as leis da termodinâmica, verificamos que tudo tende para o equilíbrio: se tens um copo de água fria e outro de água quente, eles vão tender, o copo de água fria por aquecimento e o de água quente por arrefecimento, a confluir na mesma temperatura ambiente. Um dá e outro recebe calor. Aparentemente, se alargarmos esta ideia, tudo tende para uma posição de equilíbrio. De passividade. As forças em equilíbrio. O homem que faz civilização é o que se adianta na procura de novos equilíbrios. Sai do caos, do jogo de forças universais que está aqui e nem percebemos que está (as pessoas, o mundo, a terra, o cosmos, tudo isto faz parte de uma coisa enorme que nem percebemos o que é). Quem faz civilização é quem anda um passo à frente no sentido da busca desse equilíbrio.
E esse equilíbrio não é também acabar connosco? Quando os meus filhos eram pequenos, a frase que lhes ensinaram na escola era que deviam reciclar porque «o planeta agradece». Ora, o planeta não agradece. Vai aquecer, aquecer, aquecer, até acabar connosco e depois retomará o seu curso. O planeta está bem com isto. Nós é que não.
Sim, nós temos um prazo enquanto vivermos num ambiente hostil. A criação deu-nos um prazo: o senhor tem um certo tempo para criar uma maneira de viver no espaço, que é um ambiente extremamente hostil, senão não se safa... Você nasceu na Terra, mas tem aqui um espaço e tempo para se autonomizar. Se conseguir esse espaço você vai por aí fora. Se não conseguir, falha no exame, tem zero e acabou. Podemos pensar a coisa desta maneira?
…Risos… Sim, é um pensamento muito alegre. Se calhar é melhor acabarmos a entrevista aqui, depois de termos enfiado a nossa espécie neste buraco de extermínio.
Aceito a tecnologia nessa perspectiva. Se isto levar à autonomia, temos de aceitar, dado que estamos aqui a prazo.
A autonomia, como dizias há pouco, deixou-te fazer este festival, contactar e trazer os músicos. Agora será para sair da Terra.
Carl Sagan dizia isso. Se não sairmos daqui morreremos. Estamos todos em exame e parece-me que estamos a fazer muitas asneiras. Mas o exame ainda não acabou. Percebes a ideia de equilíbrio... é a termodinâmica.
Reconheces que o festival introduziu uma energia incrível em Guimarães.
É evidente. Se fizermos um inquérito em Guimarães sobre se as pessoas já viram a palavra Jazz, 99% dirão que sim. Se perguntarmos quantas pessoas da cidade já ouviram jazz? Teremos um número significativo. O festival começou por ser uma coisa pequena dentro de um círculo que a cidade maternalmente protegeu e deixou fazer e, depois, o Guimarães Jazz percebeu que a cidade era muito mais do que isso. Que tinha singularidades. E o festival explode. O festival usa a cidade e a cidade usa o festival e isso é óptimo!