Vegetal sempre fresco
A primeira vez que ouvi Marc Ribot foi em Lisboa, nos anos 1990; talvez 94 ou 95, num festival que mostrava o que na altura se chamava de NY Underground: tocou com os seus Roothless Cosmopolitans, John Zorn, Elliott Sharp, etc. Na altura, todo o som que vinha de Nova Iorque era diferente e novo. Hoje já não ficamos com a mesma ideia quando ouvimos o jazz norte-americano: toda a frescura parece apagada. Começo a minha conversa com o guitarrista que vem ao Jazz em Agosto para dois concertos, a 4 e a 5 do próximo mês, tratando precisamente essa difícil questão – com o verdadeiro significado de “frescura” lost in translation…
O jazz criativo americano perdeu algum fulgor e está a digerir as inovações do passado ou são as novidades que não conseguem sair de lá?
Se eu estivesse a comprar vegetais não me comprava a mim, porque tenho 62 anos. Um vegetal com 62 anos não é muito bom de comer. Mas tenho estado a trabalhar desde o tempo em que me ouviste pela primeira vez, e acho que estou a tocar melhor. Se a questão é “frescura”, o melhor é ir ao jardim infantil e ouvir o que eles estão a tocar, mas se a questão é música, os músicos que introduziram coisas novas na década de 90 ainda estão vivos e a tocar e, por isso, se as pessoas gostam, óptimo, se não, como disse, comprem um vegetal “fresco”.
Os Roothless Cosmopolitans pareciam, na altura, misturar vários tipos de música e não apenas aquilo que se chama jazz. Incorporavam várias linguagens. Esta transição entre música popular e jazz é importante na tua carreira. Vês-te como um músico de jazz ou como um músico que não se importa muito com o facto de ser jazz ou não?
A improvisação é muito importante para mim. E de certa forma fui educado como um músico de jazz. Mas tento evitar a tua pergunta e saber se o que eu faço é mesmo jazz. Deixo essa resposta para outras pessoas. Tenho uma grande paixão por alguns tipos do jazz: por Albert Ayler, por Ornette Coleman, pelo órgão “funky” de Brother Jack McDuff, de Jimmy McGriff... esse e muitos outros tipos de jazz. Mas tento evitar essa questão. Toco o que toco. Quando me ouviste pela primeira vez, estava a misturar géneros. Suponho que, na altura, a minha influência era a música pastiche, pós-moderna. Agora faço-o muito menos, apesar de a banda que irá tocar em Lisboa, The Young Philadelphians, seguir por aí. Não toca propriamente uma mistura de géneros, mas realiza um trabalho ao nível das linguagens. Fomos buscar a linguagem da soul de Philadelphia e usamo-la como base para a improvisação.
E também vais tocar a solo…
Sim.
Consideras-te um músico trabalhador, que gosta de estudar... Por vezes o jazz é muito individualista: a “minha” música, o “meu” “songbook”, o “meu” estilo. No teu caso gostas de tocar música dos outros, gostas de estudar e de ser executante.
Sim, eu trabalho como “sidemusician” e como “bandleader” e gosto das duas abordagens. Mas é muito mais relaxante trabalhar como “sidemusician” (risos)…
Mas há a parte do estudo, da disciplina de grupo. É algo que te parece agradar.
Sim, tens razão. Creio no poder da leitura. Ler para mim não é um acto passivo, mas sim activo. Ao ler, tens a tua própria leitura. Eu tenha a minha leitura de diferentes músicas.
Ao copiar introduzimo-nos na cópia? Não é possível só reproduzir...
Os erros que fazemos ao copiar dizem-nos muito; esses erros tornam-se naquilo que somos. Para mim isso é que é a originalidade. São os erros que fazemos ao copiar a música dos outros. Talvez seja uma ideia freudiana, mas quando tentamos ler, por vezes lemos mal, percebemos mal. E essa forma errada mostra-nos quem somos. Por exemplo, Tom Waits é um leitor de Howlin’ Wolf. Talvez o Tom sinta que está a tocar no estilo de Howlin’ Wolf, mas eu consigo ouvir grandes diferenças. Ao ler Howlin’ Wolf, o Tom tornou-se nele próprio através dos erros que faz: se fosse apenas igualzinho ao Howling Wolf era desinteressante, mas é o facto de não ser igual, apesar de estar a “ler”, que o torna interessante.
Então a diferença está entre aqueles que querem copiar com detalhe todos os pormenores, o som, e aqueles que querem copiar, mas não se dão ao trabalho fastidioso de chegar à réplica e encher os vazios com os seus próprios elementos?
Sim, mas esse processo pode até ser inconsciente. Nem sempre acertamos nos alvos a que apontamos. Acertamos noutra coisa.
É uma ideia interessante...
Não é minha (risos).
Vindos do punk
O teu disco a solo “Don’t Blame Me” é um dos meus favoritos, porque apareceu numa altura em que o digital fazia com que toda a gente quisesse soar limpo e cristalino e o som da tua guitarra nesse disco está “sujo”, cheio de elementos exteriores, que fazem parte da música.
Muita da responsabilidade do som desse álbum vai para o produtor, J.D. Foster. Ele produziu esse disco e os dois dos Cubanos Postizos e também o “Scelsi Morning”. Ele ajudou a construir o som da guitarra naquele disco. Foi gravado com uma guitarra eléctrica de jazz, uma Gibson ES-175, que foi “micada” acusticamente e electrificada de formas diferentes. Acho que essa forma de amplificar a guitarra é boa, pois após a gravação podes experimentar a melhor mistura. Adoro o som acústico da guitarra eléctrica.
O som da guitarra nesse disco é realmente bom e os temas soam naturais. Parece que são muito conhecidos por ti e que os cantas de cor. Se a palavra “fresco” que utilizei há pouco não foi boa, espero que “desmazelado” não te irrite. Mas o som parece desmazelado, sem preocupações excessivas quanto à sua pureza ou quanto à reprodução exacta de todas as notas da música dos outros.
Acho que estás a falar do facto de muitos de nós virem do punk e de uma crítica deste movimento ao “profissionalismo”. É certamente esse o caso de Elliott Sharp, do trabalho de John Zorn com os Naked City e do meu próprio trabalho. Havia um equilíbrio entre o “contemporary downtown”, ou o que se chamava à cena “downtown”, com o minimalismo e outras ideias, como o free jazz e o punk rock. Era também o caso dos DNA de Arto Lindsay. E posso dizer que James “Blood” Ulmer foi influenciado por este movimento. Era uma coisa que estava no ar.
És muito meticuloso com as guitarras e com o equipamento, amplificadores, pedais, ou gostas de experimentar?
Adoro experimentar guitarras, mas quando ando em digressão, nos últimos oito anos, uso sempre uma Fender Jaguar. Uma velha Fender Jaguar pela qual me afeiçoei. É curioso, porque no passado, a meio dos anos 90, quando muito do material era digital, experimentei todas as guitarras e comprei imenso material; mas o digital é todo igual. Todos os “samples” são iguais. É só uma questão de processo para os disparar, e os teclados são melhores para isso. Há uma certa latência com as guitarras, demoram mais tempo. E eu fartei-me de ler manuais de instruções, pelo que voltei ao som básico da guitarra. Tenho um pedal de volume, vá. Com os Young Philadelphians uso ainda um wah-wah, talvez um echo e distorção. Fora isso, utilizo apenas o que está no amp.
Cheira mal
Gostaria de falar sobre um assunto com o qual sei que tens um envolvimento profundo: um movimento de músicos destinado à consciencialização do valor da música e a encontrar uma forma de compensação dos mesmos pela distribuição comercial. Há uma ideia quase sindical... Frank Zappa detestava os sindicatos musicais e a forma como estes se transformaram em centros de defesa dos seus próprios interesses e não dos músicos. Explica-nos melhor o que é este movimento…
Envolvi-me, de facto, em vários grupos que trabalham para os direitos dos artistas e para o “copyright”. Não é uma questão de consciência: olha, eu ficaria muito contente se tivéssemos uma revolução como em Cuba e se todos os músicos e compositores fossem pagos e tivessem um ordenado. Mas não é o caso. Na América, o facto de o Presidente Obama querer fazer um plano terceiro-mundista de saúde quase resultou numa guerra civil... Então, a tal revolução não vai acontecer. Assim, enquanto essa revolução não acontece, temos de ter a noção de que vivemos numa economia de mercado e que não há um mercado para a música. Porquê? Porque as pessoas não pagam por uma coisa que podem ter de borla. Não me importo que o Youtube tenha coisas gratuitas. Por vezes também ponho músicas minhas no Youtube, coloco lá coisas para serem vistas sem pagar. Mas importo-me não poder dizer que não. Importo-me que estas empresas façam milhares de milhões de dólares graças ao trabalho dos músicos, sem a permissão destes e sem lhes pagar. É isto que eu acho que deve ser parado e espero que seja.
As pessoas acham que é um problema tecnológico, mas não é de todo. O Youtube tem “software” de “content id” que protege um artista que não queira que o seu trabalho seja disponibilizado livremente. Permite-lhe bloquear o seu visionamento. O problema é que, para o Youtube usar esse “software”, o artista tem de assinar um contrato com a empresa passando-lhe todos os direitos de exibição da sua obra. Isso permite ao Youtube colocar ele próprio a obra “online”, em troca de valores ridículos. Ganha dinheiro da publicidade e não se importa minimamente com o facto de a publicidade que passa ser colocada sobre material que viola os direitos de autor e o “copyright”. E não se importa porque há uma lei que o protege nos Estados Unidos: chama-se Digital Millennium Copyright Act e diz que ninguém o pode processar se não foi ele, Youtube, que colocou lá os ficheiros. Alguém coloca lá os conteúdos, o Youtube mete publicidade sobre eles e ganha milhões de dólares, mas o artista recebe zero. Isto cheira muito mal.
No passado, as pessoas produziam conteúdos, por exemplo para um jornal, e depois vendiam espaço de publicidade. Hoje estas empresas não produzem conteúdos, usam os que outros produzem, e ganham todo o dinheiro proveniente da publicidade…
Exactamente: aconteceu o mesmo no jornalismo, no cinema, na fotografia, no “design” gráfico. Ok: todos percebemos que, se um pequeno “website” coloca alguma coisa ilegal, não tem de ir logo para a cadeia. Mas não estamos a falar de um estudante universitário a partilhar um ficheiro com um amigo. Estamos a falar de empresas que estão cotadas em milhões de dólares e que fazem “upload”de milhões de ficheiros. Estamos a falar do Youtube e do Google.
Se queremos a música, o “design”, o jornalismo, a fotografia feitos apenas por filhos de pais ricos que não precisam de ganhar dinheiro, está tudo bem. Mas se quisermos que qualquer pessoa criativa possa fazer aquilo que sabe fazer, temos de mudar as coisas. E não são só as pessoas da nossa geração que o têm e fazer, aquelas que ainda se lembram de como era receber dinheiro dos discos que faziam e dos concertos que davam. Uma geração mais nova começa a perceber. Fazem a sua terceira “tournée” e quando voltam para casa regressam ao emprego de “barman”. Então perguntam-me: «Mas vocês não precisavam de servir às mesas?”» E eu explico-lhes que não, que nós ganhávamos dinheiro com os discos e com os concertos. Tínhamos direitos de autor. Quando fazem a primeira digressão está tudo bem, é a excitação da primeira viagem, dormem em qualquer lado, não se importam se ganham ou não. Mas à terceira vez interrogam-se: o disco correu lindamente, tiveram óptimas críticas, tocaram em todo o lado, fizeram tudo o que o manual de promoção diz que é para fazer. A coisa correu lindamente e no final não ganharam nada... Começam a perceber que também têm de se mexer.