História contada
Entre o “soundcheck”e o concerto na edição de 2015 do Guimarães Jazz, Archie Shepp concedeu uma entrevista em exclusivo para a jazz.pt. Não sendo um músico dado a estas “jornalidades”, honrou-nos a possibilidade de falar com um dos maiores nomes da história do jazz. A sua música está profundamente impregnada pela sua visão da sociedade. Neste sentido, é uma música ideológica, com uma singularidade que provém das ideias que defende e que tenta passar através dos sons.
Nasceu em 1937, “cut his teeths” no quarteto de Cecil Taylor em 1960 e como líder em 1962, com Bill Dixon. A partir de 1964 iniciou uma série de 17 gravações excepcionais para a Impulse! e integrou a criação da Composers Guild de Carla Bley e Michael Mantler. Nos anos 1970 e 80 teve um período igualmente prolífico em termos de gravações, desta feita para a dinamarquesa SteepleChase.
Para ler esta entrevista recomendam-se discos. Sendo muito complicado fazer escolhas valorativas no caso de Archie Shepp, pois este aborda e mistura vários estilos, é aconselhável uma selecção profundamente guiada pelo gosto. São imprescindíveis em qualquer casa e por ordem de importância: “Trouble in Mind” (1980), “Mama Rose” (1985), “The Long March” (1979), “Live in San Francisco” (1966) e “Mama to Tight” (1966).
A sua música nasce de ideias e da vontade de mudar situações políticas e sociais. E parece-me que é por isso que acaba por se tornar especial e única: por nascer de ideais e não por se preocupar apenas com a música. Acha que esta afirmação faz sentido, que para se ser músico é necessário ter ideias sociais, políticas, ideias sobre o mundo, ou foi apenas uma coisa que lhe aconteceu a si mas que noutros músicos funciona de outro modo?
Não sei se é necessariamente a política. A música nasce da alma, vem do espírito e alguns músicos tocam-na a partir dessa perspectiva. Estive há pouco a ouvir Illinois Jacquet: toca blues de uma forma fantástica, tem um som lindíssimo e parece-me que o seu coração e a sua alma se expressam através da música. Outros músicos – Cecil Taylor, Ornette Coleman –conseguem encontrar uma sobreposição dos dois mundos: música enquanto expressão intelectual e música enquanto expressão espiritual. Sempre vi a música e a arte como sendo mais eficazes se expressarem alguma ideia que promova a justiça social e a mudança. Isto também porque a música negra, o que se chama jazz, foi profundamente influenciada pelos espirituais negros.
“Deep River”, “Steal Away”, “Sometimes I Feel Like a Motherless Child” são canções profundamente espirituais. São convenções e invenções a partir das quais a música se desenvolveu. São os blues e os espirituais negros que parecem transmitir melhor o desejo do meu povo de promover a liberdade e a justiça.
O que me leva até aos blues e à sua presença - tão citada - na sua música. Esta sempre teve uma dimensão espiritual, como por exemplo no disco “Mama Rose”, com Jasper van’t Hof. Soa-me sempre muito mais espiritual do que “bluesy”, embora saiba que as duas músicas estão ligadas. Parece-me que a dimensão espiritual e contemplativa é mais notória do que a expressão do sofrimento e da melancolia dos blues. O que acha?
As raízes dos blues estão nos espirituais... Os blues são seculares e frequentemente expressam ideias sobre amor, dinheiro... Mas mesmo dentro dos blues o cantor diz “Lord, Lord, Lord”. Temos nos blues algumas das ideias dos espirituais, transformadas noutra coisa, em canções seculares.
Cubo de gelo num copo de água
Enquanto músico que lutou de forma tão intensa para promover mudanças sociais – talvez como poucos o tenham feito –, como é que vê a situação actual do planeta, em que algumas das causas foram aceites mas parece que tantas outras se perderam?
Tal como muitas outras pessoas, estou extremamente preocupado com o rumo que as coisas estão a ter à escala mundial. Primeiramente as questões ecológicas e o facto de estarmos a perder o Polo Norte e o Polo Sul. Estão a derreter... Acho que isto é aterrorizante: parecemos um cubo de gelo num copo de água. E é provável que se perca a maior parte da área arável do planeta... Talvez ainda mais alarmante é o frenesim do petróleo: parece que estamos a voltar à Bíblia e ao Livro das Revelações em que o mar pega fogo. Um dia tudo será petróleo e não água.
A tecnologia está também a tornar-se um problema para o homem. Chamamo-nos homo sapiensmas não me parece que sejamos assim tão espertos, tão sapiens. Na verdade, tratamos descaradamente uma coisa inimaginavelmente bela como o planeta Terra: se observámos o que aconteceu desde o tempo em que Colombo aportou nas Américas, matando-se milhões de índios, nativos que existiam, mas que já não existem. Na América as tribos de índios contavam milhões de pessoas e agora existem uns poucos milhares. Então... penso que estamos numa posição em que temos de considerar se queremos continuar no planeta ou se enfrentamos a extinção da humanidade.
Estas preocupações sociais e ecológicas, se bem deduzo, ainda hoje estão muito presentes na sua música. Isto porque tendo lutado já tanto – fez a sua parte - tem direito a ter uma posição diferente e esperar que outros, mais novos, assumam esse trabalho. Mas parece-me que continua ainda na luta...
Absolutamente, sim. Estou preocupado com a floresta amazónica, porque já perdemos um terço da floresta e é algo de fundamental para manter o equilíbrio entre o oxigénio e o dióxido de carbono. Isto para não falar do racismo que continua... A “guerra” entre algumas partes do mundo islâmico e do mundo cristão... Os fundamentalismos que se tornaram um problema. Não é um problema dos muçulmanos, é também dos cristãos que cometem crimes – CRIMES – em nome da religião. Então, com a música, à minha escala, da forma que consigo, tento expressar o meu ponto de vista sobre estes temas, a necessidade de mudar estas coisas. Espero que as pessoas consigam encontrar esperança e se possível inspiração.
Se a música consegue de facto mudar as coisas, isso já não sei. Se julgarmos pela experiência dos negros, consegue. “We Shall Overcome”, o hino dos movimentos dos direitos cívicos, é uma canção que vem da escravatura. Muitas das nossas canções da escravatura foram colocadas ao serviço dos direitos cívicos e da luta pela liberdade.
Acho que muda. Alguma coisa do que sou hoje virá do facto de ouvir os seus discos. O primeiro concerto que vi de jazz e que me impressionou muito foi o de Cecil Taylor e envolvi-me primeiramente com aquele mundo e com os discos da ECM – de repente, o “Trouble in Mind” levou-me noutras direcções e ficou comigo este tempo todo. A sua música é difícil de seguir e classificar porque não se fixa num estilo. Salta de linguagens e portanto não é classificável. Porque é que usa estas múltiplas linguagens? É alguma coisa de planeado? Pensa «agora deveria tocar assim» ou acontece?
Acho que a música afro-americana, do ponto de vista etnológico, tem muitas formas. Pode ser o jazz ou o que se chama de jazz, pode ser swing ou o que se chama de swing, pode ser blues ou que se chama de blues... Tudo isto é a experiência afro-americana. Por isso, sinto que tenho o direito de usar todos os aspectos desta experiência que eu quiser, porque é a música do meu povo. É frequentemente categorizada: as pessoas acham que jazz é um tipo de música, que blues é outro tipo de música, mas eu considero que faz tudo parte da mesma coisa: evoluções a partir da experiência afro-americana. O mais importante é gostar do que faço e comunicar esse prazer ao público.
Gostaria de falar de “Going Home” e “Trouble in Mind”. Como é que surgiu a ideia de gravar em duo os espirituais e os blues?
Bem, a ideia dos discos foi do produtor do álbum, um tipo dinamarquês chamado Nils Winther, que pediu ao meu pianista, Horace Parlan, para fazer alguns arranjos de temas blues, de que resultou o “Trouble in Mind”, e de espirituais, originando o “Going Home” a partir de uma canção de Dvorjak, influenciada por um espiritual negro. A ideia foi do Nils, mas logo que ele a propôs senti que era algo que eu queria fazer. Quando começámos a gravar, lembro-me que me senti tão arrasado que comecei a chorar. Tive de parar e disse-lhe que se calhar não iria conseguir fazer a gravação porque era demasiado emocional. Depois reflecti sobre o facto e pensei que alguém tinha de contar esta história. Porque não eu? Tinha de ser suficientemente forte para contar aquelas histórias. Apesar de a ideia ter sido do Nils, o sentimento estava lá e foi gerado entre mim e o Horace. O meu pai era um “bluesman” e tocava banjo e eu aprendi as canções dele. Muitos dos espirituais vieram através da minha avó, que me levava à igreja para eu ouvir a música religiosa. Por isso esta música é uma grande parte de mim... Tenho a esperança de que as pessoas gostem, porque eu senti-a muito profundamente.
Tenho esta curiosidade: os dois discos parecem gémeos, mas demorou três anos a sair o segundo. Não sei se foram gravados ao mesmo tempo e lançados em separado... Como foi?
Foi como foi. O Nils precisou de três anos para ter a ideia do segundo disco... (risos)
Está pior agora
Depois de ter estabelecido relações sólidas com editoras discográficas como a Impulse! e a StepleeChase decidiu agora fundar a sua. Porquê?
Não é que eu tenha tido uma ligação forte com editoras. Estas são organizações capitalistas que querem fazer dinheiro. Não sei se estão muito preocupadas com o bem-estar dos músicos que gravam para elas. Aparentemente, e por tantas vidas trágicas – Billie Holiday, Lester Young, –, as empresas discográficas não parecem importar-se muito com o artista. Posso falar também pela minha experiência: muita da minha música foi gravada por empresas com subterfúgios legais e muitas das minhas gravações foram roubadas por empresas grandes. A Actuel mudou o meu contrato, nunca me pagou “royalties”. Recebi 50 dólares...
E isso é estranho na Actuel, que em teoria foi fundada sobre convicções idealistas...
Sim, idealistas, mas na verdade eram uns vigaristas.
Os que vêm do idealismo são normalmente os da pior espécie…
Sim, piores do que os outros.
Não sabia, a visão que tinha da companhia era precisamente de uns tipos idealistas a gravar free jazz...
Não, não, não, eles ainda os vendem na etiqueta Charly. O que eles fizeram foi roubar a música e depois mudaram o nome da marca. Era Actuel, agora é Charly.
A sua primeira gravação como líder foi com Bill Dixon, o que, vendo a coisa do presente, parece um pouco estranho…
O Bill e eu éramos muito amigos; conheci-o quando tocava com Cecil Taylor. Aliás, ele tinha sido despedido pelo Cecil, e tínhamos uma ligação forte. Fomos nós que fizemos aquela gravação e depois vendêmo-la a uma empresa discográfica. O Bill era um grande amigo e era muito bom tocar com ele.
Regravou recentemente o “Attica Blues” com uma formação alargada, uma orquestra. O disco original saiu num período de motins...
Os motins da prisão de Attica, em 1971.
E o novo “Attica” também é sobre revoltas e prisões ou a ideia mudou?
É uma “reprise”. É a mesma ideia, mas colocada no contexto actual. Acho que as injustiças que se passavam nas prisões nos anos 1960 e 70 continuam. Nalguns casos estão piores agora. Olhe para o que se passou no último mês nos Estados Unidos: 30 negros foram mortos pela polícia. As prisões reflectem o que se está a passar na sociedade: a pobreza, o desmembrar das famílias, as escolas. Nos Estados Unidos, um terço dos homens negros americanos passou algum tempo na cadeia. É um número gigantesco. O país tem uma das maiores populações prisionais do mundo.
A indústria que mais contribui para o PIB americano é a do armamento. Por isso é necessário vender armas internamente e arranjar algumas guerras no exterior para escoar os “stocks”...
Sim, e as armas não são apenas usadas para fazer crimes nos Estados Unidos. A indústria de armamento vendeu 47 mil milhões de dólares a Israel. Eles dão 3 mil milhões em ajuda humanitária, mas para a guerra contra a Palestina, contra os muçulmanos. Aliás, como no Afeganistão, no Iraque...
A visão europeia é a de que é preciso instigar umas guerras por aí para vender produto.
Pois, porque é esse o nosso meio de sobrevivência: vender armas e criar guerras em lugares distantes. É uma coisa imoral. O mundo está a ficar cada vez mais desequilibrado, entre pobre e ricos, e este talvez seja o maior problema de todos, o facto de o Ocidente estar a ficar cada vez mais rico e o resto do mundo num abismo de pobreza. Por exemplo, a guerra do jihadismo islâmico: alguns vêm das classes médias, mas a grande maioria deles são pessoas extremamente pobres, ignorantes, que nem sequer conhecem outro caminho de evolução para as suas vidas. Muitos dos jihadistas – talvez não os que vieram de Londres ou de França, mas aqueles que vivem no Médio Oriente – não têm escolha.
Veja-se a destruição de monumentos mundiais pelo Daesh, bem como o roubo dos artefactos e a sua venda. O interessante é que as Nações Unidas dão mais dinheiro para a salvaguarda destes monumentos do que para as pessoas que vivem nos locais onde estes monumentos estão. No Iraque gastaram milhões de dólares em monumentos e em reconstruções, mas as pessoas que vivem na porta ao lado destes edifícios vivem numa pobreza extrema. Por isso acho que há uma contradição entre o amor professado que temos pela história, pelos artefactos culturais, e a ajuda às pessoas, às famílias, às crianças, para que possam ter vidas melhores. Gastamos mais dinheiro nos edifícios do que nos seres humanos.