Alma cigana
Paulus Schafer é um dos mais prestigiados músicos de jazz ciganos da actualidade. Descentente da comunidade Sinti da Holanda, é o expoente da tradição musical deixada por Django Reinhardt. Vamos ouvi-lo na abertura do Seixal Jazz deste ano, a 16 de Outubro…
O que o inspirou a fazer música? Pode dizer-nos o que o influenciou e o que estava a acontecer à sua volta nessa nessa altura?
Nasci envolvido por música, o que era inevitável. Para mim, a música é como respirar. Não penso nisso; acontece apenas. Na nossa comunidade crescemos com o “swing” cigano. Há música todos os dias. È um processo em continuação e procuramos constantemente melhorar. Ouvimos Django Reinhardt em LP e cassete e praticamos, praticamos, praticamos. Não estudamos em conservatórios. A música é ensinada pelos pais aos filhos, pelos tios aos sobrinhos. A minha família é a inspiração. A minha família é, na verdade, a essência do “swing” cigano que eu toco.
Wasso Grünholz e Stochelo Rosenberg devem ter sido uma grande influência em si. Motivaram-no a praticar?
Foi sobretudo Wasso Grünholz quem influenciou o meu desenvolvimento. Ouvia os seus belos temas rastejando para debaixo da sua caravana. Depois corria para a minha e tentava imitar o que tinha ouvido. Claro que estive também presente nos seus concertos e fiz-lhe muitas perguntas. Não precisei de outras motivações. Para a minha família e para mim criar música é algo de natural. É uma forma de felicidade que não se pode evitar. A minha maior motivação surgiu no dia em que Wasso me disse: «Agora quero ouvir o Paulus.» Essa frase foi a melhor coisa que me podia ter acontecido. Estimulou-me a encontrar o meu próprio estilo.
Stochelo Rosenberg abriu as portas do mundo com a sua música, e ele mostrou-nos que o estilo de jazz cigano da Holanda pode ser apreciado por todo o lado. Isso encorajou-me também a ir por diante e a formar a minha banda.
Quais foram os grandes desafios da sua carreira musical?
O maior desafio é ter a nossa própria voz. Ou se consegue ou não se consegue. Encontrar o nosso estilo é um processo natural, passo a passo. Copiar outros músicos não é a minha cena. O desafio é sermos nós mesmos, tal como me transmitiu Wasso.
Simplesmente, acontece
Até que ponto a sua maneira de tocar foi mudando ao longo dos anos?
Não mudou muito. É igualmente um processo natural. Assim como foi naturalmente que evoluiu o estilo de vida da minha comunidade. Nada de revolucionário aconteceu na nossa música. Às vezes pergunto-me: como é que seria se Django ainda estivesse vivo? É claro que recebo influências de outros lados, sem ter consciência disso. Acontece.
Pode descrever o estilo de vida Sinti? É muito diferente do dos “gadjos” (os não-ciganos)?
É tradicional e muito orientado para a família. Tomamos conta uns dos outros e dos mais velhos. Vivemos socialmente e não da forma individualista que vemos nas cidades. São muito importantes para mim a paz e o sossego da minha comunidade, dos meus familiares, da minha mulher e dos meus filhos. Fico sempre feliz quando volto a casa. É aí que estão as minhas raízes.
Como é que equilibra o trabalho musical e a vida privada?
Não tenho tempos fixos para ensaio e para relaxar. Mudam sempre. Toco quando aparecem o meu sobrinho, o meu irmão e outros familiares. As novas ideias surgem simplesmente. Não podemos forçar a música. Claro que ensaiamos quando é preciso gravar um CD: então sim, fazemos um planeamento mais estrito. Músicos de todo o mundo costumam visitar o nosso acampamento e eles adoram aparecer para tocar connosco. Conhecem a teoria toda, mas o que importa é aplicá-la, e fazê-lo com todo o coração e toda a alma.
O que valorize mais na música e nos músicos?
Se a música realmente me move, valorizo a personalidade do músico e a maneira como a música é tocada. Então construo sobre isso, improviso e desenvolvo sobre essa base.
É o primeiro músico do jazz Sinti que toca em Portugal. Como se sente em relação a isso?
Não fazia ideia que eu era o primeiro. É uma verdadeira honra tocar no festival do Seixal. É fantástico que eu seja o primeiro músico cigano a tocar aí… Tocaremos com toda a nossa entrega, como sempre, na esperança de fazermos com que o público português goste da nossa música. Se isso acontecer, então o nosso concerto será um sucesso.
Medita ou faz alguma coisa que o ajude a focar-se antes de um concerto?
A meditação é algo de estranho para mim. Na banda The Five Guitars toco com o guitarrista Jan Kurper, que é professor de yoga, e claro que falamos sobre isso. É na guitarra que encontro a minha paz. É ela que me desperta e que me faz dar o melhor de mim.
Forasteiro como Van Gogh
Esteve agora a trabalhar num novo disco. Pode adiantar-nos alguma coisa?
Intitula-se “Letter to Van Gogh”. O pintor Vincent Van Gogh viveu na minha aldeia, Nuenen, durante alguns anos. Era um forasteiro, e no tempo que por cá permaneceu pintou a famosa tela “The Potato Eaters”. É um canvas escuro de camponeses muito pobres, bastante deprimente. Quando se mudou para França e encontrou outros artistas o seu trabalho transformou-se numa explosão de cor.
Também os Sinti são, até hoje, forasteiros. Colaborar com outros músicos trouxe mais cores para o meu estilo. Neste CD, todo ele com composições originais, tenho o privilégio de tocar com músicos fantásticos, como Stochelo Rosenberg, Peter Beets, Tcha Limberger, Jan Kurper e Dominique Paats. Esta é a minha carta musical para Van Gogh! Vou levar o CD para Portugal e tocarei alguns temas que estão nele incluídos.
Como é que gostaria de ser reconhecido? Qual o aspecto mais importante da sua vida que gostaria que as pessoas recordassem?
A minha viagem pela vida é a nossa viagem: A viagem dos Sinti: Latcho Drom, uma grande travessia. Apenas olhamos para o dia de hoje; amanhã é outro dia. Logo veremos onde é quevamos tocar. Todos nós somos humildes quando pensamos sobre isso. As pessoas não nos recordam a nós, recordam a nossa música.
O que diria a Django Reinhardt se o encontrasse? Que disco, que música e que canção lhe sugeriria?
Não lhe sugeriria coisa alguma. Tocaria com ele e ficaria muitíssimo feliz. Isso seria como um sonho a tornar-se realidade.