Maior que zero
Figura central da nova geração do jazz portuense, João Guimarães é um saxofonista notável que se tem destacado na Orquestra Jazz de Matosinhos. Além de muito activo na cena jazz dos últimos anos, Guimarães também se tem aventurado na improvisação livre (tem um duo com o baterista João Pais Filipe e integra o quinteto Fail Better!) e na música experimental (com o trio Hitchpop). No final do ano transacto editou o álbum de estreia do seu octeto, simplesmente “Zero”, projecto desenvolvido no âmbito do Guimarães Jazz - um excepcional monumento sonoro que se destacou entre os melhores discos nacionais do ano. Numa altura em que se afirma, além de saxofonista, como líder, compositor e improvisador, João Guimarães faz a apresentação na primeira pessoa.
Como começaste a tocar? Porque escolheste o saxofone?
Comecei a tocar saxofone após um ano de entrar para o Instituto Orff do Porto. Não tinha instrumento definido e o [saxofonista] Mário Santos foi para lá dar aulas. Fiquei curioso, por ser um instrumento diferente, e decidi experimentar.
Quais foram os primeiros discos de jazz que mais te marcaram?
Os primeiros discos... “Kind of Blue” e “Birth of the Cool” de Miles Davis, “I Hate to Sing” da Carla Bley, Egberto Gismonti (“Trem Caipira”, “Alma” e “Dança dos Escravos”), Hermeto Pascoal, “West Coast Sessions” de Stan Getz, Lester Bowie Brass Fantasy, “Porgy and Bess” de Gil Evans e Miles Davis. Acho que havia mais alguns: “Decoy” e “Tutu” do Miles, “My Favorite Things” do Coltrane, “Sun Bear Concerts” de Keith Jarrett, “Close Up of Japan” de Aki Takase… E provavelmente continuam a falhar alguns igualmente importantes...
Quem são os saxofonistas e músicas em geral que mais te inspiram?
Inspiraram-me desde cedo Coltrane, Parker, Cannonball, Sidney Bechet, Hermeto, Michael Brecker, Branford Marsalis, Kenny Garrett, John Zorn e Steve Lacy. Hoje em dia há vários que me continuam a inspirar, entre bandas, compositores e músicos - para ficar no âmbito dos produtores de som. Aqui ficam alguns: Anthony Braxton, Henry Threadgill, Ohad Talmor, Jacob Sacks, David Virelles, Travis Reuter, Allan Mednard, Leon Boykins, Marcos Cavaleiro, Simon Jermyn, Manel Cruz, Serginho, Sopa de Pedra, Gustavo Costa, João Pais Filipe, Susana Santos Silva, Nico Tricot, Ana Deus, Plus Ultra, Retimbrar, Mário Santos, José Luís Rego, Mário Barreiros, Orquestra Jazz de Matosinhos, Pedro Guedes e Carlos Azevedo, George Lewis, Khun Narin’s Electric Phin Band, Shellac, Warpaint, Thundercat, Georgia Anne Muldrow, M.I.A., Penderecki, Pierre Boulez, Tyshawn Sorey, Steve Lehman, Miles Okazaki, Dan Weiss, Steve Coleman, Babatunde Lea, Jen Shyu, Craig Taborn, Jason Moran, Nasheet Waits, Chris Cheek, Mark Turner, Kurt Rosenwinkle, Brad Mehldau, Caetano Veloso, Deerhoof…
Inconscientemente, fiz uma lista de músicos vivos e que mais recentemente me dizem alguma coisa. Poderia continuar esta lista mas não é muito importante, até porque está sempre a crescer e a mudar. Reservo-me o direito de mudar esta lista a qualquer momento sem notícia prévia para qualquer dos mencionados ou leitores! A verdade é que oiço tudo o que me apetece, em repetição, um de cada vez ou vários ao mesmo tempo. Uma experiência fixe é abrir dois ficheiros de música no computador e deixá-los correr ao mesmo tempo. Outras vezes fico a decorar todos os detalhes de um só disco.
Fora do jazz e da música, onde é que vais buscar referências?
Tudo o que achar que diz alguma coisa nova, ou que o diz de uma maneira diferente. À natureza, às pessoas, situações, limites, angústias, prazeres, filosofia, matemática, história, teorias, sistemas sociais, políticos, literatura, zen, yoga, culturas, ciências, religiões... Não percebo nada de nenhuma realmente, mas procuro um bocadinho em todas. São ideias. Também às vezes não tenho inspiração nenhuma. Talvez a persistência ajude mais do que tudo.
Ouvir de outra forma
Estudaste na ESMAE e depois passaste pela Manhattan School of Music, em Nova Iorque. A estadia no estrangeiro foi importante na tua evolução?
Sim, são as duas partes de um processo académico e de vida que fiz através da música. Nova Iorque foi a oportunidade conjugada de poder fazer um mestrado e viver numa cidade que é riquíssima musical e culturalmente e que continua a ser muito importante para mim. Foi a oportunidade de conhecer tantos outros músicos, que eu não sabia existirem e com tanto para me dizer e outros que conhecia dos discos e nunca pensei tomar contacto ou ouvir tocar num ambiente mais informal. Sobretudo, poder ouvir as coisas de outra forma.
Estás ligado à Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM). A tua participação na orquestra tem sido importante para o teu desenvolvimento como músico?
Sim, claro. Tenho a sensação de que, desde que regressei, já não me era natural tocar em orquestra. Em especial na OJM, por ter um trabalho tão constante, é difícil ter todos os recursos disponíveis rapidamente, ou seja, conhecer as nuances sonoras da orquestra de afinação, rítmicas, tímbricas. São tudo coisas que volto a trabalhar em específico para o som daquela orquestra. Outra coisa importante para mim na orquestra é o constante desafio musical que se tenta criar. Poder tocar música nova de compositores que trabalham para a orquestra é também parte do meu desenvolvimento musical, até porque componho e mantenho-me atento.
O disco “Zero”, gravado em octeto, foi bem recebido. Que ideias pretendeste transmitir com esta gravação?
Tentei fazer um disco bem conseguido, que reflectisse o meu trabalho. As ideias estão lá, acho que as ideias musicais já são ideias em si e foram essas que pretendi transmitir. O álbum tem uma certa articulação de ideias. Tem o Zero e tem histórias muito engraçadas como conceito. O Zero é revolucionário, censurado, possibilitador do mundo em que vivemos. Usa-se por todo o lado. Como folha em branco, é o espaço para a construção. Também gosto da ideia de que o Zero é um círculo. A formação é um octeto, e o oito deitado é o símbolo para infinito que nos leva outra vez ao círculo. As ideias foram-se juntando, acho que foi isto que aconteceu.
Mais afastado do jazz, integras o quinteto Fail Better!, dedicado à improvisação livre, que já editou um disco, “Zero Sum”. Como surgiu a ligação a este projecto?
A ligação a Fail Better! surgiu por parte do pessoal do JACC [Jazz ao Centro Clube], que me convidou a integrar esse projecto e a realizar alguns concertos logo de início. A partir daí temos trabalhado algumas vezes. A ideia foi juntar uma formação de música improvisada com músicos de vários pontos do País, Lisboa, Coimbra e Porto. Penso que antes disso foi importante o duo que mantive com João Pais Filipe e que isso acabou por nos ligar a Fail Better!.
Também integras o Hitchpop, trio com Miguel Ramos (baixo eléctrico) e Marcos Cavaleiro (bateria). Este é um grupo mais longe do jazz, que chegará a outros ouvintes. Acabaram de tocar no festival Milhões de Festa. Aqui, além do saxofone, também te aventuras nas electrónicas. Como surgiu a música dos Hitchpop e quais as marcas que a definem?
Hitchpop surgiu da vontade de tocarmos os três e termos gravado essa primeira sessão. Foi um bocado por acaso que continuámos a tocar, porque a ideia não era formar uma banda, foi só tocar entre amigos, e um quarto amigo nosso a gravar, o Manel Reis. Depois tivemos propostas para tocar à medida que íamos mostrando a gravação a algumas pessoas, e continuámos a trabalhar. Somos basicamente um equipa de quatro a usar a banda para explorar o que queremos fazer. Acho que surge daí.
Além destes, em que outros projectos estás envolvido actualmente?
Para lá dos já referidos - octeto Zero, OJM, o trio Hitchpop – estou a tocar com o quarteto de Miguel Ângelo e estou a desenvolver Malta Sónica, Tripla e Heróis Mudar.
Uma tela onde todos pintam
Para ti fazer música improvisada é um processo diferente de uma actuação com composições?
É. Acho que a distinção entre música improvisada e música composta está no tempo de antecedência. A música composta pode jogar com blocos de informação anormais para um improvisador e para vários músicos em simultâneo. No entanto, ao improvisar eu também componho, também desenvolvo, também inverto, também retrogrado, também modulo, também justaponho. É tudo igual, o tempo de antecedência até ao acto é que muda tudo, e a capacidade de ter informação previamente combinada com outros músicos. Se o fizeres, num contexto de música improvisada, estás a compor. Para além disso, uso as mesmas ferramentas ao improvisar. E se houver mais músicos a tocar isso tudo está a acontecer numa tela onde todos pintam e mudam a composição colectiva que se vai criando.
Por outro lado, a tua pergunta não fala de música escrita, mas sim de composições. E isso altera tudo, porque uma composição pode usar improvisações para compor. Pode ser simplesmente um jogo de improvisações estruturadas, uma composição de improvisações ou que misture escrita e improvisação. Dentro da música estritamente escrita, há intérpretes que improvisam mais e outros que determinam mais o seu plano. Dentro das músicas improvisadas, há quem improvise mais e quem não improvise assim tanto. São tudo processos diferentes para se obter um resultado. O Einstein dizia que era estúpido esperar resultados diferentes de experiências iguais.
Os músicos andam à procura. Antes de se poder gravar era mais valorizado o momento do espectáculo e, portanto, a improvisação, num sentido lato, era uma coisa que estava mais presente. Note-se que era comum os organistas improvisarem. As técnicas de realização/baixo cifrado na música antiga são semelhantes ao “comping” do jazz e às cifras. Era normal os solistas criarem ou improvisarem cadências e as técnicas de variação de melodias, como fez van Eyck, por exemplo. Só com a gravação é que passaram a existir sons fixos. Nem mesmo uma partitura são sons fixos. É apenas um plano registado graficamente. Pode registar alturas e durações, mas não são sons em si mesmo. Há pouco mais de 100 anos só havia música quando se tocava ou cantava. Podemos até interrogar-nos se haverá música num disco, ou se é apenas um entretém.
Interessa-me a comunicação acima de tudo. Essa comunicação que se estabelece dentro do que é um acto de performance, num espectáculo. Improvisada ou escrita é sempre um momento diferente. Se não houvesse nada então poderíamos ligar um ecrã e seria a mesma coisa sempre. Essa comunicação faz-se dentro de um espectáculo. Almada Negreiros dizia que o importante era “ver”. Se estamos a “ver” é porque está a “acontecer”. Acho que esta é a relação que me interessa nas artes do espectáculo e que a distingue das belas-artes, em que o importante e o que nos fascina é o que “aconteceu”. Penso que é essa a grande diferença entre os dois ramos das artes. E sendo assim, a gravação dá à música e ao teatro o cariz de belas-artes e é engraçado que as belas-artes passaram a andar à procura da performance na última centena de anos.
Nos últimos anos a Associação Porta-Jazz tem desenvolvido uma imensa actividade promovendo o jazz no Porto. Como vês a actual cena jazz portuense?
A crescer bastante. Por outro lado, acho que já foi mais activa. Talvez não houvesse tantos músicos, mas o meio era muito activo. Sinto que não devemos olhar para a Porta-Jazz como uma tábua de salvação e sim fazer crescer os nossos lados, a nossa rede. Não para competir, mas para poder articular. E isso acontecia muito antes da Porta-Jazz e era assim que nos orientávamos. Eu arranjava isto, aquele arranjava aquilo e todos tocávamos com todos, andávamos de um lado para o outro a apoiar-nos uns aos outros. Isso era importante porque tornava o meio coeso e o meio eramos todos nós.
Como vês a cena jazz a nível nacional, actualmente? Há cada vez mais músicos, mais escolas, editoras com edição regular (Carimbo Porta-Jazz, JACC Records, Clean Feed, Sintoma...), muitas edições de autor. Existirá uma falta de ligação entre Lisboa e Porto e o resto do País?
É importante que os músicos continuem a crescer, pois só assim cresce o valor da nossa música. E é importante, também, conseguirmos viver em qualquer ponto do nosso país, primeiro porque ele é pequeno, depois porque é incrível e por ainda termos muito aprender com ele. Das grandes cidades ao interior, são as pessoas que fazem o País, não as cidades. É importante valorizar o nosso trabalho. Estamos muitas vezes no limiar de pagar para tocar, com a justificação de que é bom para nós.
Já foi um trunfo descobrir um músico novo. Hoje vejo os músicos a terem de “caçar” os concertos porque senão ficam encostados rapidamente. E parece-me é que há mais pessoas eficazes a “caçar” “gigs” do que a fazer música. Se os programadores e as instituições não estão para proteger isto, torna-se muito difícil.
Penso que é também difícil justificar que, em Portugal, alguns artistas que não têm dificuldade nenhuma em arranjar concertos bem pagos, continuem a ser subsidiados por instituições, que deviam existir para uniformizar condições e garantir que mais e diferente música chegue aos ouvintes portugueses. Lisboa tem um papel determinante e difícil nisto, porque é centralizadora e distribui o dinheiro politicamente. Deve procurar saber manter a neutralidade e saber distribuir uniformemente e pelo que é de qualidade.
Temos de lutar pelas ideias. É isso a música. Continuamos a querer isso vivo, e não o plástico, não a máquina, não o conformismo, não a corrupção, não a banalidade. Penso que há falta de ligação e de tempo entre as pessoas. É aí que eu digo que a música não vive nos discos, não vive no MP3, no Facebook ou no Youtube. Não acontece nada ali.
Quais são os teus planos para os próximos tempos?
Continuar a tocar. E gostava de dar mais aulas. Gostava de trabalhar como compositor, de compor para formações específicas. Tentar tocar fora de Portugal. Acho importante. Ser pago por isso e conseguir ter uma vida tranquila para continuar a tocar, para continuar a compor. Para continuar.