Recordando “Avenging Angel”
Foi numa sala semipreenchida, mas com bastantes jovens, que foi apresentado na cidade de Lisboa, em 2012, o disco que marcou definitivamente o rumo deste pianista de corpo inteiro, originário de Golden Valley, Minnesota. Um músico cujo percurso, sempre em evolução, representa o que de melhor se faz no jazz nova-iorquino.
Craig Taborn fez então as apresentações com uma voz grave e bem modulada. Sentou-se ao piano, tocou um pequeno trecho, de forma contida, e parou de repente para despir o casaco. De novo ao leme, mais solto, iniciou finalmente a sua “jornada”.
Foi criando uma aura energética, mãos e pés em consonância, vigor e aceleração a revelarem-se, mão direita, mão esquerda, fluxo criativo a surgir em crescendo. Os temas sucederam-se sem ordem ou título. Caos sempre controlado, ritmo desenfreado, movimento em constante diálogo. Como num filme, as cenas ganhavam tons mais fortes, o “thriller” adensava-se, com novos fôlegos, ora sincopados e subtis, ora com uma harmonia própria.
Silêncio… A revolta deu lugar à acalmia. O “expresso do esquecimento” rumou a novas paragens, a um paraíso perdido…Taborn, invadido por uma paz interior, proclamava o seu acto de fé, em busca de luz….
Parou, levantou-se, e sempre gentil, humilde, revelou que adora Lisboa. O sortilégio da cidade impeliu-o para uma descrição de paisagens deslumbrantes. Um espírito qualquer, talvez o de Monk, possuía-o. Voltávamos à paleta colorida, ao pincelar em tons e traços carregados, como se cavalgasse um puro-sangue imaginário. Qual cavalo de fogo estafado, enfrentando um último “sprint” que o impeliuu para a meta.
Foi assim esse memorável concerto na Culturgest. Depois, no “foyer”, encontrou alguns amigos, mestres do mesmo ofício que o abraçaram. Entre eles, Mário Laginha… Recordámos com Taborn, em breve conversa, esse momento de viragem, com mais temas inevitavelmente a surgir.
Foi um longo caminho desde os anos 1990 até apresentar o seu primeiro trabalho a solo...
Sim, de facto tudo começou há muito tempo, é uma longa história... Comecei por conhecer Dave King e Reid Anderson, dois dos membros dos The Bad Plus. Toco com o Dave, baterista, desde os 12 anos e pouco depois conheci Reid, o contrabaixista. Desde tocar em caves e pequenos clubes, fui passando por todo um processo de aprendizagem que me levou a Detroit, à Universidade de Michigan. Aí estudei durante sete anos, tendo então conhecido diversas personalidades, das quais destacaria James Carter e Roscoe Mitchell. Com Carter gravei alguns discos, ainda antes de me ter formado. A sua ligação a Lester Bowie criou a ponte para conhecer Roscoe, que foi a minha grande influência, marcando muito a minha música nessa altura e ainda hoje.
Em 1994, saiu o primeiro disco do Craig Taborn Trio e fui fazendo o meu percurso. Gravei em 1999, com Roscoe Mitchell, o álbum "Nine to Get Ready" para a ECM. Com Chris Lightcap e Gerald Cleaver publiquei "Light Made Lighter" (2001). Com Carl Craig, em Detroit, desenvolvi o lado techno-jazz. Gravámos “Innerzone”.
Conheci também o saxofonista Tim Berne, tendo então iniciado uma longa colaboração com este excelente músico e também com Chris Potter e outros. Até que, em 2004, apareceu "Junk Magic", um trabalho com bastante electrónica e que foi uma extraordinária experiência. Utilizei vários elementos e diferentes abordagens. Deu-me muito gozo fazer esse CD. Fui tocando com David Binney e outros músicos, colaborando aqui e ali em projectos como "sideman". Ao mesmo tempo, aconteceram as "viagens musicais" com Michael Formanek, David Torn, de novo Roscoe Mitchell e Evan Parker que levaram a que assinasse pela ECM.
Fugir do “establishment”
E chegou a "Avenging Angel"...
Gravei-o em Julho de 2010. Há dez anos que o amadurecia. É o resultado da evolução que atingi. E deu lugar a uma outra evolução.
Lançado com enorme impacto em 2011, ainda reflecte o seu estado de alma? Que cunho pessoal quis imprimir?
Há um perigo no improviso, que é perpetuar o ego em som. Suscita a possibilidade de não avançar, pelo que tento sempre abrir novas portas, em busca de desafios que me permitam fugir do "establishment"...
Esse disco é o eco das suas influências?
De certa forma, sim. É o somatório de todas as experiências anteriores.
Como define a sua música?
É muito improvisada e sempre diferente... É jazz!
Bebop, hard bop, cool, free jazz, new thing foram alguns dos chavões para definir as diferentes épocas jazzísticas... Há novas tendências na actualidade? Como as denomina? Onde se encaixa?
Sim, claro que há, mas não quero etiquetá-las, criar fronteiras... Por isso fujo às definições. Não acho interessante...
Actuar ao vivo ainda lhe causa "frisson"? Há uma interacção entre si e o público que interfere na sua "performance"?
Sim, é muito estimulante. Definir a música no momento lança-nos para uma nova via, porque o processo é contínuo, sempre em movimento, irrepetível.
Sente a dicotomia estúdio/palco? Onde se sente mais seguro, mais confortável?
Pergunta interessante... Humm. Em estúdio, nomeadamente em grupo, sinto-me mais defendido. Contudo, diria que no palco, sozinho, trago cá para fora o mais importante, o que estudei e pratiquei, sem rede. Abro-me ao conhecimento de mim mesmo, ao agora. Procurar esses momentos é sempre para mim uma surpresa...
E o risco, gosta de enfrentá-lo?
É um acto de coragem... Mas nem sempre avalio bem os riscos, ou o que faço...
Sente que num mundo socialmente em conflito a música tem um papel importante para nos alertar?
Sem dúvida! Mas num contexto em que não seja uma obrigação. Não gosto de "shoulds"! São uma armadilha.
Como vê esta época em que os "downloads" são cada vez mais uma realidade e se tornaram mesmo num veículo de divulgação musical pelos próprios criadores? É um mal necessário?
Não sei responder de forma assertiva. O mundo está sempre a mexer e a música tenta acompanhar esses desenvolvimentos...