Regresso a Portugal
Tem discos publicados numa editora portuguesa, a Creative Sources, é um participante habitual no MIA – Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia e vamos finalmente ter a oportunidade de ouvi-lo com o seu trio Silo, a 14 de Julho, no Jazz im Goethe Garten, em Lisboa. Conversámos com aquele que é um dos mais intrigantes saxofonistas soprano da Europa, um músico que começou pelo piano e pela clássica, tocou rock e ficou chocado quando conheceu Steve Lacy.
Como é que a música entrou na tua vida? Que diferentes fases podem ser identificadas na tua carreira musical?
Cresci numa família em que a música clássica estava bastante presente. Tenho quatro irmãos e uma irmã, e quase todos eles aprenderam música, principalmente piano, e os meus pais vêm também de famílias nas quais a música clássica tinha um lugar importante. Foi, pois, natural que aos 8 anos de idade começasse a ter aulas de piano com a professora da família. Toda a gente passou por ela - os meus irmãos, a minha irmã, os meus primos. Mergulhei em Schubert, Schumann, Ravel, Mussorgsky, Debussy, Albeniz... Não gostava de Mozart na altura, só muito mais tarde passei a gostar. Na minha adolescência surgiu evidentemente o rock, a pop, o prog. Descobri Pink Floyd, Yes, Genesis, King Crimson, Magma, Frank Zappa e muitos outros.
Estávamos a meio da década de 1970. Montei um grupo com um pianista amigo, grupo em que eu tocava órgão. Éramos absolutamente fascinados por Rick Wakeman, teclista dos Yes, e já nos imaginávamos rodeados de múltiplos teclados como ele. Inventávamos a nossa própria música, muito influenciada pelo que escutávamos, e foi nessa altura que comecei a improvisar.
Por volta dos meus 16 anos, e por diversas razões, a aprendizagem do piano tornou-se insuportável para mim e abandonei-o completamente. Resolvi ser pintor de publicidade e o piano era coisa que não se encaixava nesse plano. Foi uma crise de adolescência, sem dúvida.
Até que se deu uma reviravolta, certo?
Pois. Um dia tropecei na flauta transversal de um amigo e comecei a estudá-la no Conservatório. Descobri então J. S. Bach, a música barroca e pouco depois as músicas étnicas. A música da Índia, do Bali, assim como as músicas de bandas como Oregon e Codona, o jazz-rock da Mahavishnu Orchestra, Miles Davis, Weather Report e, obviamente, Wayne Shorter, mas especialmente Jan Garbarek e muitas das suas gravações da época para a ECM. Acho que foi mesmo ele quem disparou o clique que me fez virar para o saxofone.
Naquela altura ainda não gostava verdadeiramente de jazz, aquilo não me dizia grande coisa. Penso que era uma questão de cultura; a música americana não era verdadeiramente a minha cultura. Mas Garbarek era outra coisa, soava a europeu.
Em certa ocasião encontrei um saxofone, por acaso, numa pequena aldeia de Provence, no Sul de França, onde um tipo mo vendeu por uma ninharia. Um super saxofone alto que continuo a utilizar.Paralelamente a isto, comecei a fazer cerâmica, a descobrir as artes plásticas, a pintura. Não pensava particularmente em tornar-me músico, mas sentia-me hesitante entre esses dois mundos. Como para os meus pais era necessário arranjar um emprego “sério”, e visto que eu era um pouco rebelde, acabei por me tornar ceramista. Aos 20 anos inscrevi-me numa escola de artes em Genebra, contra a vontade do meu pai, evidentemente. Foi a única escola que eu levei até ao fim, com certificado, diploma, etc.
Depois disso viajei pela Ásia e, quando regressei, senti falta da música, pelo que decidi retomá-la, fazendo cursos de saxofone, “ateliers” de jazz e “workshops”. Descobri então uma data de músicos que me viriam a influenciar, como John Surman, Anthony Braxton, Art Ensemble of Chicago, Eric Dolphy, mas sobretudo Steve Lacy. Ouvi-lo pela primeira vez foi um verdadeiro choque! A partir daí dediquei-me ao soprano e penso que a minha atracção pelo formato solo vem dele. Os discos de Lacy a solo são também aqueles que prefiro.
Trabalhei de seguida com trupes de teatro em Genebra que juntavam actores e músicos em palco. Aquele tipo de espectáculo era algo que me atraia imenso na altura, provavelmente devido à minha faceta de artista visual. Além de que era uma maneira de ganhar a vida. Foi nessa época que comecei a escrever música e, passado pouco tempo, tocava em grupos que tinham os seus próprios temas, bastante influenciados pelas bandas dos anos 1970.
Percorri regularmente a Suíça e a Europa, sobretudo com a Fanfare du Loup Orchestra, um colectivo de 13 músicos que foi uma verdadeira escola para mim. Tocávamos imenso e em diversas situações, na rua, em bailes populares, em concerto. Apenas interpretávamos as nossas composições, pelo que foi uma bela oportunidade de aprender a escrever para grande orquestra. Ainda hoje, 25 anos depois, toco com essa formação.
Comecei a praticar cada vez mais a improvisação e a fazer novos contactos, nomeadamente com Vinz Vonlanthen, com quem viria a trabalhar em diversos projectos, entre os quais o trio Silo, com Cyril Bondi. Depois veio o nascimento da L'Insubmétaorchestra e do Micro Festival, que Bondi e d'Incise criaram e que trouxeram uma energia formidável para a cena da improvisação suíça, tendo desencadeado múltiplos encontros.
Finalmente, veio a experiência do solo, que para mim é muito importante. Há anos que eu vinha a trabalhar nisso, sem que realmente me apercebesse. É uma experiência que posso sentir como uma espécie de missão ou talvez de percurso iniciático. É qualquer coisa de muito excitante. Foi também por isso que fui a Portugal para lançar o meu primeiro disco a solo, “Malval”, na editora Creative Sources de Ernesto Rodrigues. Além do mais, este é um formato em que encontramos belas referências como Evan Parker, John Butcher, Urs Leimgruber (com quem toquei diversas vezes em duo), Michel Doneda e, claro, Steve Lacy.
Contra o conformismo
És músico profissional ou tens alguma actividade paralela?
Tenho. Sou professor de música também.
Onde vives actualmente? Até que ponto é que o facto de viveres aí influencia a tua actividade musical?
Vivo no campo, perto de Genebra. Sempre vivi em Genebra, pelo que não tenho pontos de comparação. Mas apesar de ser uma cidade pequena, há muita coisa a acontecer aqui em termos culturais.
A tua postura como artista inclui alguma forma de crítica social?
Praticar música improvisada pode ser, à partida, uma forma de militância contra o conformismo, o academismo ou contra uma certa imposição cultural que vai muito no sentido da ausência de questionamento em relação à nossa sociedade. Mas é sobretudo uma preocupação de ordem puramente musical. O prazer que daí vem também me parece bastante importante.
Qual é a tua opinião sobre a eventual crise de criatividade na música de hoje, de que falam alguns críticos? Achas que existe essa crise ou não? Os músicos actuais estão a abrir novas vias ou apenas a repisar os mesmos caminhos?
É uma questão difícil. Penso que há várias circunstâncias, começando pela quantidade vertiginosa de sentidos estéticos e de correntes musicais, o que torna por vezes difícil situarmo-nos no meio de tudo isso. Mas ao mesmo tempo essa diversidade constitui uma riqueza formidável! O que constitui uma “crise” talvez seja mais a questão do reconhecimento. As músicas não-conformistas e de teor experimental que não entram nos circuitos comerciais serão sempre confrontadas com essa questão.
Agora saber se nós estamos a abrir novos caminhos? A maioria das coisas que se descobrem já foram abordadas há imenso tempo. Prefiro pensar que fazemos parte de um todo, seja qual for a corrente em que nos encontremos, e que cada um de nós traz a sua pequena pedra para a construção do edifício. Os nossos antepassados terão feito o mesmo, provavelmente.
Que tipo de música costumas ouvir actualmente?
Ouço maioritariamente música clássica na rádio e adoro descobrir coisas que não conhecia. Música contemporânea, sobretudo Gérard Grisey e Morton Feldman, e música improvisada. Jazz ouço pouco neste momento, à excepção de Steve Lacy, o meu mestre.
E quais são as tuas preferências em livros, filmes, etc.?
Neste momento ando a ler Murakami, que adoro. Também gosto bastante de escritores de suspense como Henning Mankell, Fred Vargas… Quanto ao cinema, aprecio Ken loach, Jim Jarmusch, Fellini, Kurosawa. Também adoro pintura: Pollock, Rothko, Hockney.
Do MIA ao Goethe
Estiveste várias vezes em Portugal. Conta-nos as tuas impressões sobre experiência de tocar com músicos portugueses…
Os músicos portugueses que conheci são muito empenhados no que fazem e muito empreendedores. Especialmente sabendo que, em Portugal, as condições para os músicos não são fáceis. É um grande prazer para mim ter podido conhecer e tocar com figuras como Carlos “Zíngaro”, Ernesto Rodrigues, Miguel Mira, Luís Lopes, Abdul Moimême, Eduardo Chagas, Maria Radich e muitos outros...
Como foram as tuas experiências de participação no MIA – Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia? Participaste no festival, mais uma vez, há apenas umas semanas…
O MIA é um festival verdadeiramente incrível, onde todos os tipos de músicos, de diversos horizontes e experiências, podem encontrar-se e improvisar juntos sem qualquer “a priori”. Acho que é algo completamente único. É preciso muita energia para organizar um encontro destes, sobretudo no contexto cultural e político que existe em Portugal. É uma verdadeira forma de militância e eu tiro o meu chapéu aos organizadores.
Vais regressar a Portugal em Julho para tocar com o teu trio Silo no jardim do Goethe Institut. Fala-nos sobre esse projecto e sobre a música que iremos ouvir no festival Jazz im Goethe Garten…
O projecto iniciou-se com o baterista Cyril Bondi. Experimentámos várias formas de abordagem com ele, do free ao reducionismo, passando pelo noise e pelo jazzcore. Foi muito enriquecedor. O álbum “Silo” ilustra bem aquilo que fizemos juntos. Actualmente, Vonlanthen e eu estamos a trabalhar com Nicolas Field, sobre directrizes mais definidas: noções de espaço e de “groove”, energia e texturas. Tocamos também ocasionalmente com outro baterista, Julian Sartorius, e é precisamente com este que estaremos em Lisboa.
O que podemos esperar de ti no futuro próximo como músico? Em que projectos estás a trabalhar e o que tens planeado?
Tenho alguns planos para escrever material para grande orquestra no próximo ano. Mas projectos actuais são o Silo e a continuação do meu trabalho a solo. Penso também voltar a gravar brevemente.
Para saber mais
https://www.facebook.com/christophe.berthet.7?fref=browse_search
Discografia seleccionada
Le Grand Fisson: “On/Off” (Creative Sources, 2013)
Christophe Berthet: “Malval” (Creative Sources, 2012)
Christophe Berthet / Vinz Vonlanthen / Cyril Bondi: “Silo” (Leo Records, 2012)