Figura (já) incontornável
É um dos mais activos e dinâmicos músicos da actualidade nas áreas d0 jazz e da música livremente improvisada, podendo também ser encontrado em contextos próximos da chamada world music. Num país com poucos trompetistas, Luís Vicente parece já ter assegurado o seu lugar e está visivelmente a crescer – o seu primeiro disco à frente de um grupo próprio, “Outeiro”, veio confirmá-lo. Como líder, “sideman” ou organizador de concertos, é uma figura que se tornou incontornável…
Como começaste a tocar trompete?
Numa filarmónica, de forma autodidacta. Não havendo professor do instrumento, foi a única opção que me restou. Basicamente meteram-me o trompete nas mãos e tive de me virar. O meu pai foi quem me incentivou e a filarmónica funcionou como ocupação dos tempos livres.
Em que altura percebeste que a tua actividade como músico seria nos domínios do jazz e da improvisação?
Percebi isso à medida que me fui envolvendo de forma mais séria na música, quando o prazer e o retorno ao tocar estes dois géneros foram crescendo, em detrimento de outros.
Como trompetista, qual foi para ti o impacto de Miles Davis?
Gosto de tudo do Miles, à excepção da década de 1980. Para mim e para muitos é considerado o melhor músico de jazz de sempre. Adoro o seu som, o fraseado, a inteligência e a magia presentes na forma com que aborda a música. Criou uma linguagem superinovadora, uma voz única, tornando-se na maior referência para os trompetistas. Teve um percurso único, acompanhando cada género que surgia, desde o bop até ao período eléctrico.
A última fase da sua carreira é a que menos me interessa, pois sinto que o bom gosto que sempre o caracterizou não esteve presente nessa altura.
Um mundo mágico
Para lá do Miles, quem foram outras referências importantes, para ti, ao nível do instrumento?
Gosto bastante de Don Cherry, desde que começou a tocar com Ornette Coleman até à fase do ethnic jazz. Era um músico com uma linguagem bastante original, muito própria, pouco óbvia e arriscada. Dotado de grande sinceridade, parecia-me ser uma pessoa humilde e bondosa, que vivia num mundo mágico com uma grande dose de misticismo presente.
Também Freddie Hubbard, pelo seu arrojo e pela técnica incrível, associada a uma boa dose de loucura e de exuberância a tocar. Kenny Dorham. Chet Baker pela simplicidade e pela descontracção a tocar. Woody Shaw, responsável pela criação de um vocabulário inquietante e arriscado.
Kenny Wheeler pelo seu lirismo e pelas belas composições. Tomasz Stanko pelos seus temas abertos e respirados, pelo seu som quente e arejado. Jon Hassell pelos ambientes hipnóticos e envolventes que caracterizam as suas composições e os seus concertos.
Tocando outros instrumentos, que nomes foram mais importantes para a tua formação?
Posso destacar Eric Dolphy, John Coltrane, Ornette Coleman, Wayne Shorter, Bill Evans, Herbbie Hancock e Rabih Abou-Khalil.
Fora do jazz, que música gostas de ouvir?
Ouço música electrónica, drum ’n’ bass, trip hop, world music, esta última mais ao vivo do que em disco. Tenho feito algumas sessões com músicos guineenses e moçambicanos. É algo que me dá grande prazer: comungar com músicos provenientes de outros países. Acho bastante enriquecedora a troca cultural que acontece. Também gosto de ir a Alfama ouvir fado.
No passado ouvia bastante grunge, hardcore e reggae, mas hoje em dia, se ainda gosto desses géneros quando ouço, não é algo que meta a tocar lá em casa.
Ao longo da tua formação, quais foram os músicos com quem trabalhaste que mais te marcaram?
A minha formação continua em processo, está constantemente a ser renovada. Trabalho diariamente para descobrir algo de novo. Todos os músicos com quem toquei contribuíram para o meu crescimento, uns mais do que outros, como é normal.
Um é Marco Franco, com quem tenho tocado em diferentes projectos, é um músico incrível que tem uma capacidade de fazer acontecer música com grande espontaneidade e imediatez. Outro que destaco é João Lobo, pela sua abordagem minimal e a forma directa de tocar, fazendo juz à velha máxima "less is more".
Também Carlos “Zíngaro”, pelo “playing” extremamente esclarecido e afirmativo, Francesco Valente pelo “groove”, Reiner Hess pela incrível e contagiante energia e entrega em palco, e Oori Shalev pela cor que dá a cada tema, criando ambientes e texturas únicas.
Como que um nascimento
Lançaste recentemente o teu primeiro disco à frente de um trio, pela JACC Records. O que representa este CD para ti?
Este disco foi o primeiro, e o primeiro penso que tem sempre um significado especial, uma carga simbólica bastante forte, por todos os motivos que se sabe. É como que um nascimento, algo que não volta atrás, um compromisso bastante sério.
Em Agosto de 2012 participaste numa residência artística com Evan Parker, em Pedrogão Pequeno. O que ganhaste com esta experiência?
Foi uma experiência única e extremamente enriquecedora a todos os níveis: na aprendizagem, na troca de conhecimentos, na partilha tanto a nível musical como humano. Foi algo de único estar uma semana num local mágico, com todas as condições perfeitas reunidas para se fazer música, ainda para mais com um Senhor, um músico lendário, como Evan Parker, podendo ouvi-lo e trocar ideias com ele.
Integras a Farra Fanfarra, uma "marching band" à antiga, completamente diferente dos teus outros investimentos. O que tens ganho musicalmente com este grupo?
É também uma banda de palco e de tudo o que estiver entre esses dois formatos. Com este grupo tenho a possibilidade de tocar vários géneros musicais, desde a música dos Balcãs até ao jazz, à pop, ao rock, ao funk. Torna-se um desafio e é motivante, porque o repertório é composto por linguagens bastante distintas e porque tocamos nos sítios e das formas mais inusitadas, tendo por vezes características de acção performática.
Um dos teus projectos mais originais é um duo de trompete e electrónica, com Jari Marjamäki. Como surgiu a ideia deste projecto e quais os vossos planos?
Este projecto surgiu quando o Jari tinha uma residência semanal chamada Therapy Mondays, na cooperativa cultural Crew Hassan, que ficava na Rua Portas de Santo Antão. Ele convidava diferentes músicos, um dia experimentámos e funcionou, pelo que decidimos formar o duo.
Este ano tens tocado com novos grupos, como Fail Better!, Clocks and Clouds e Ode a William Burgess. Como surgiram e que ideias há para cada um?
Alguns membros dos Fail Better! já tocavam ou haviam tocado juntos, pelo que surgiu a ideia de reunir todos os músicos e formar o quinteto. Vamos lançar um disco este ano e a ideia é mostrar o máximo possível a nossa música.
Clocks and Clouds surgiu no convívio de uma noite do Até a Barraca'Bana [ciclo de concertos programado por Luís Vicente em A Barraca]. Depois das actuações, ficou expressa a vontade comum de tocarmos juntos. Achámos que podíamos fazer música interessante e a coisa aconteceu. Após uns “gigs” ficámos contentes com o resultado e já se marcou uma sessão em estúdio. Se a música acontecer como até agora é bem possível que tenhamos disco para breve.
Ode a William Burgess é uma formação “ad hoc” montada por Hugo Antunes. Creio que, após os concertos de Março e Abril, poderá vir a acontecer algo. Veremos.
Por terras de França
Além destes grupos, que outros projectos tens na manga?
Na última semana de Abril tenho uma digressão em França. Vou tocar com uma formação recém-estreada, o Frame Trio, que tocará no festival Les Soirées Tricot, em Paris, e em Orléans. Tenho também marcados para Maio concertos em Portugal com Deux Maison, uma formação com Théo Ceccaldi (violino), Valentin Ceccaldi (violoncelo) e Marco Franco.
Ando por aí com um quarteto em que participam habitualmente André Rosinha e Vasco Furtado e que se completa com um saxofone tocado por Reiner Hess ou por Federico Pascucci, dependendo da disponibilidade de cada um. Tocamos originais e alguns temas de Ornette Coleman, e acabaremos um dia desses por ir para estúdio e registar em disco o trabalho que se tem feito.
Para além destes projectos tenho um duo com Joaquim de Brito, trompete e berimbau, que já teve a sua estreia, mas está agora em fase de ajustamento para um regresso. Integro também um ensemble de música improvisada com um condutor, o OME.
Como vês o actual momento da cena musical portuguesa?
O País encontra-se no estado em que sabemos, e isso sente-se em todas as áreas. A cultura tem sido um dos sectores mais afectados pelos cortes e no que toca a apoios a música talvez seja a forma de criação que mais se ressente. Se nunca teve o apoio necessário, hoje em dia tem-no ainda menos.
Os músicos deveriam ter mais apoios e reconhecimento, por parte do Estado e da sociedade. É impensável como se dá tanta importância ao futebol, à tourada e a outras tantas coisas que podem mover massas, mas depois deixam muito pouco na e para a vida das pessoas, relegando-se para último plano a cultura que verdadeiramente chocalha as mentes. Enfim, talvez dê jeito a alguns.
Para saber mais
http://luis-vicente.wix.com/luisvicente
Discografia
Luís Vicente Trio: “Outeiro” (JACC Records)