Rafael Toral e David Maranha, 22 de Março de 2019

Rafael Toral e David Maranha

Do erro na improvisação à magia do tom

texto Vítor Rua

Em apreciação dois factores que Vítor Rua, o co-fundador dos Telectu, encontra nas músicas de Rafael Toral e David Maranha: a intencionalidade do erro na improvisação de um e o entendimento do som como “medium” do outro.

#01: Deus falou

Rafael Toral

Existe uma antiga estória chinesa que conta o seguinte: há muito, muito tempo, num templo budista, todos os anos era organizado um concerto de música para flauta. Num desses anos, foi convidado a tocar um mestre flautista de uma província longínqua que tinha inventado uma nova flauta e uma nova técnica de tocar. Um a um, os flautistas foram dando o seu concerto até chegar a vez desse mestre. E ele tocou a mais bela melodia que alguém já tinha escutado. No final fez-se silêncio e ouviu-se a voz do monge ancião: «Deus falou.»

No dia seguinte, os monges reuniram-se para escolher o aluno que iriam enviar para aprender aquela nova técnica com o mestre e escolheram um virtuoso ainda jovem para que tivesse mais tempo de aprendizagem. E assim, mestre e discípulo partiram para a província do mestre flautista. Na primeira aula, o mestre deu ao seu discípulo uma melodia muito simples para ele aprender. O aluno esteve um dia inteiro a praticar e, no dia seguinte, foi a casa do mestre e tocou a música. O mestre disse: «Falta-lhe algo.» O aluno regressou a casa e, desta vez, praticou durante uma semana inteira. De novo foi a casa do mestre e voltou a tocar a peça. O mestre disse-lhe: «Falta-lhe algo.» O pobre jovem ficou muito triste consigo próprio. Não conseguia realizar o que lhe fora pedido. Voltou a praticar, mas agora durante um mês inteiro, quase sem dormir. Foi a casa do mestre e voltou a tocar a melodia e de novo o mestre lhe disse: «Falta-lhe algo.» Aí, o aluno desesperou. Meteu-se no sake e tornou-se um vagabundo. Quando, anos mais tarde, regressou à sua aldeia, foi viver afastado de todos no cimo de uma montanha e lá ficou isolado, envergonhado. Tinha "perdido a face”.

Num ano em que se ia organizar mais um concerto, um monge idoso recordou que, naquela montanha, vivia um flautista virtuoso e pediu para o convidarem. Este, sem nada mais a perder, aceitou quase instintivamente o convite e, pegando na primeira flauta que encontrou, partiu para o templo. Chegado lá, ficou atrás do palco em silêncio e ninguém ousou também falar com ele. Os flautistas foram dando os seus concertos, até que chegou a sua vez. Ao subir para o palco, reparou que com a pressa tinha trazido uma flauta nova que o mestre lhe tinha oferecido e que nunca tinha tocado antes. Pegou na flauta e tocou a melodia que o mestre lhe tinha ensinado. No final, fez-se um silêncio e o monge mais ancião disse: «Deus falou…»

 

Rafael Toral faz parte de uma geração - juntamente com David Maranha - que aprendeu música a “escutar” discos. Com uma passagem pela pop, cedo enveredou por caminhos mais “experimentais”. Iniciou-se na guitarra - embora utilizasse outros instrumentos, como o gira-discos ou a percussão -, mas rapidamente se apercebeu - tal como o nosso monge budista! - que lhe “faltava algo”. Deu início a uma busca pelo seu “som”, procurando noutros média. Começou por usar objectos simples e minimais como um microfone e amplificadores de poucos “watts”, criando e dominando “feedbacks” - algo que lhe ficou desde a audição de uma cassete de Nuno Rebelo com uma obra intitulada “New Amp”, para amplificador, microfone e “feedbacks” - ou posteriormente criando o seu próprio instrumento - umas luvas com as quais controla e “modela” o som. Foi também Nuno Rebelo quem lhe deu a conhecer John Cage, o que terá sido fundamental para a sua futura obra.

Mas “o que é” Rafael Toral?  Toral é um compositor! Schoenberg dizia que «compor é uma forma lenta de improvisar e improvisar é uma forma rápida de compor», e é isso que faz Rafael Toral: compõe rapidamente! Ao vivo ou em estúdio. Lidando e aprendendo com o “erro”. Dou um exemplo: este meu ensaio é um improviso; escrevo-o no dia 8 de Março de 2019; como improviso que é, irá com certeza ter os seus erros, e tal é o objecto deste meu texto: falar do erro e da improvisação na obra de Rafael Toral. Partirei do princípio de que tanto a improvisação como o erro são, já em si, conceitos que levantam problemas de representação da música; assim, pretendo apenas levantar questões, mais do que dar respostas. Falarei de improvisação; de improvisação total em especial, e tentarei fazê-lo através do ponto de vista da vivência musical de Rafael Toral.

Nos últimos 20 anos, Rafael Toral tem incluído, com um grau cada vez maior, a improvisação na sua obra musical. Cada concerto, ensaio, gravação, tenta ser conceptualmente diferente do anterior, quer a nível técnico, performativo ou das metodologias utilizadas. Factores que determinam essas diferenças podem ser o local onde se realizam essas acções, o espaço cénico, as condições tecnológicas e os estados psicofisiológicos.

De todas as formas de improvisação, a que mais fascina/apaixona Toral, a que verdadeiramente o eleva a graus de prazer excepcionalmente misteriosos e extraordinários, é a improvisação total não-idiomática. A introdução de jogos/sistemas aleatórios levam Toral a momentos improvisatórios de excepção, se tivermos em conta que o que está em causa implicitamente nessas situações musicais são a surpresa, o "risco", o espantar constante, imediato e em tempo-real - o improvisador tem de ser um pouco como Lucky Luke: mais rápido do que a própria sombra....

Toral usa o caos, representado por irregularidades e alterações repentinas de sobrepostas acções musicais, invertendo a inclinação da música para um certo reducionismo - a análise dos sistemas musicais em termos das suas partes constituintes: escalas, ritmos, melodias -, levando-nos a contemplar o todo musical. Diferenças mínimas no “input” musical - efeitos de phasing, distorções, delays, “feedbacks”- podem tornar-se em diferenças enormes no “output” musical. Uma espécie de efeito borboleta musical. O micro interfere com o macro! Toral parece viver "obcecadamente", tentando incluir aquele que considera ser o maior, verdadeiro e mais puro acto improvisatório: o erro. Não será este o momento musical mais próximo do "surpreender-nos a nós próprios"?

O erro na música é visto por certas civilizações - a ocidental especialmente - como algo de negativo e indesejável. Mas sei também que a História da Ciência está repleta de casos de descobertas importantíssimas que tiveram origem em erros ou acidentes: Fleming descobriu a penicilina graças a um fungo que contaminou uma lâmina de cultura; Roentgen descobriu os raios X graças a um descuido no manuseio de uma placa fotográfica. Um grão de areia deposita-se acidentalmente na concha de uma ostra; a ostra passa a segregar um muco espesso e homogéneo que se solidifica em camadas microscópicas, até se transformar numa pedra dura, perfeitamente esférica e lisa, de lírica beleza.

Os erros podem ser assim, grãos de areia que se travestem em pérolas. Freud mostrou-nos a maneira fascinante como os lapsos de linguagem revelam o material inconsciente. Ora, o inconsciente é o verdadeiro pão do artista, de forma que «os erros e lapsos devem ser valorizados como informações inestimáveis do nosso interior». Mas como provocar o erro? O erro provocado intencionalmente não é erro! O erro quer-se - na obra de Toral -, num estado puro - erraticamente natural -, não-intencional. Se a ordem no caos é um aforismo, também o é provocar o erro certo. O erro que Toral pretende tem de ser instável, desordenado em todas as escalas, movimento tornado aleatório, pequenos remoinhos dentro de remoinhos, enfim, turbulência. O erro, como possibilidade musical, tinha de ser concebido por Toral como um sistema simbólico formal capaz de trazer novas possibilidades à improvisação: caos com “feedback”. Da mesma maneira que a simplicidade gera a complexidade, o erro tem de gerar o erro.

Encarar o erro como uma realidade musical é - para Rafael Toral - uma espécie de "Alegoria da Caverna", em que as "sombras" são a "realidade". Se a música é uma arte governada por regras impostas pelo “compositor”, poderá o erro ser uma forma criativa governada por regras? Para lidar com o erro, Toral tinha de desaprender o que era certo. Tinha de ir para fora do sistema. Toral passou então a considerar o erro como um sistema formal, uma espécie de “puzzle”. Como produzir erro? Para resolver este “puzzle” foi-lhe necessário estabelecer uma regra: «Não posso errar propositadamente e devo errar naturalmente e sem consciência de que vou errar.» A solução é a de que esse erro assim obtido deixa de ser erro, porque é o que se pretende obter: «a sombra torna-se realidade», chegando-se assim a um paradoxo, ou melhor, àquilo a que Hofstadter chamou de “strange loop” - estranho anel:

«A FRASE SEGUINTE É FALSA.»

«A FRASE ANTERIOR É VERDADEIRA.»

O "erro que não é erro" é um estranho anel, difícil de alcançar, mas Rafael Toral conseguiu-o! 

#02: «Primeiro, precisava de saber o que é uma tartaruga»

 David Maranha

Na Antiga China, um imperador soube da existência de um excelente pintor e logo quis ter uma tela dele. Assim, foi a casa do pintor e pediu-lhe que pintasse uma tartaruga, ao que o pintor respondeu: «Preciso de três anos, ouro, mulheres e boa comida.» O imperador acedeu. Passados três anos, o monarca foi a casa do artista para ver a sua pintura. Chegado lá, o pintor disse-lhe que ainda não tinha o quadro pronto e que precisava de mais três anos, mais ouro e mais comida e mulheres. O imperador, irritado, disse-lhe: «Dou-te isso tudo, mas se daqui a três anos não tiver o quadro serás morto.»

Passado esse tempo, lá voltou o imperador a casa do pintor. Chegado lá viu uma tela em branco e perguntou, zangado, ao pintor: «A minha tartaruga?». O pintor pegou no pincel e de um traço só desenhou a mais bela tartaruga que alguém alguma vez tinha visto. Pergunta-lhe o imperador: «Se fizeste essa pintura em segundos, porque é que me pediste seis anos para a criares?» Ao que o pintor respondeu: «Porque, primeiro, precisava de saber o que é uma tartaruga.»

 

David Maranha - tal como Rafael Toral - teve uma breve passagem pelo rock, mas rapidamente se virou para a música experimental. Tal como Toral também, não foi logo no início que descobriu o seu instrumento. Começou por tocar guitarra baixo. Depois - encantado pela obra de Arnold Dreyblat - construiu o seu próprio instrumento: um cordofone a que chamou de “maranhofone”. A sua busca por um “tom” não parou aqui: virou-se para o clarinete e para o violino, seguidos pelo órgão e pela bateria. No órgão começou a trabalhar com “drones”, criando música sem início ou fim. À semelhança do pintor chinês, Maranha demorou a encontrar o seu “tom”, pois precisava igualmente de compreender o que «é uma tartaruga». Descobriu o seu tom não num só instrumento, mas em vários, sendo um brilhante poli-instrumentista, além de compositor e improvisador.

Assisti recentemente a um concerto seu em duo com Patrícia Machás e nele usou a bateria de forma invulgar, criando sons parasitas e texturas exóticas, tudo a partir de um instrumento convencional. As obras de Maranha são sempre tão “racionais” e “conceptuais” (envolvem muitas vezes instalações ou performances) quanto “líricas” e “lúdicas” (envolvem hipnoticamente o ouvinte). Uma das idiossincrasias da linguagem musical de Maranha é o uso de um conceito proveniente das Novas Teorias do Som, intitulado “som medium”. O som “principal” que o compositor David Maranha pretende que se escute na maioria das suas obras não é, propriamente, a “fonte sonora”, mas o “som ambiente que ressoa por simpatia” no espaço onde é realizado o evento musical ou a gravação. Quando se diz «o som da Catedral de São Marcos é diferente do som da Catedral de Notre Dame» a que "som" nos referimos? Referimo-nos não ao som da fonte sonora, mas ao som do “medium”.

Mas podemos realmente falar de um som “medium”? A visão tradicional da teoria do som diz-nos que este consiste em ondas que viajam no “medium” e que o som se localiza no “medium”. O “medium” não é a fonte sonora, apenas processa o som. Para existir som é necessário um “medium” e, pelo menos inicialmente, uma fonte sonora. Como exemplo, imaginemos um órgão que é tocado por Maranha na Igreja da Sé de Lisboa: o órgão é a fonte e a igreja é o “medium” onde o som do órgão se realiza. Fora da igreja, o som que escutamos é o de um órgão que imaginamos estar dentro da igreja, mas é esta - a igreja - que emite agora o som que escutamos. A igreja é agora fonte sonora e o ambiente (no caso, a cidade) é o “medium” desse novo som. Esse novo “medium” tem um som que é constituído por milhares de sons de diferentes fontes sonoras e seus respectivos “media”, como aquelas bonecas russas que se desmultiplicam quando abrimos a maior. 

O primeiro “medium” de um instrumento como a guitarra dobro de Maranha é a sua caixa de ressonância e só depois vem o segundo: o ambiente – o espaço - onde o som se realiza. Durante um concerto de guitarra por Maranha  dizemos que estamos a escutar "guitarra" e a fonte sonora é a guitarra. O “medium” é a sala de concerto (de notar que a caixa de ressonância da guitarra, é, de per se, já um “medium” em relação às cordas da guitarra, que realmente são a fonte do som). Para alguém que esteja no corredor ou no “hall” da entrada dessa mesma sala de concertos, o som filtrado que lhe chega aos ouvidos já não é somente o da guitarra. É também o som ambiente da sala e do público (tosses, ruídos); assim, podemos dizer que a fonte sonora já não é a guitarra - para esse indivíduo -, mas sim toda a sala.

Quem estiver fora do edifício, no passeio cá fora, o som que lhe chega é o do próprio edifício. O edifício é agora a fonte sonora e a rua o “medium”. O que escuta quem estiver fora dos limites da cidade onde se está a realizar esse concerto de guitarra clássica é o som da cidade, ou seja, a cidade como fonte sonora. O ambiente fora do limite da cidade é o “medium”. Se o som repercutisse no vácuo, um astronauta que estivesse na Lua poderia registar o som do planeta Terra: o planeta seria agora a fonte sonora, enquanto o espaço seria o “medium”, numa espécie de "mise en abîme" entre a fonte sonora que está num “medium” e outra fonte sonora que se inclui noutro “medium”, tornando-se este também em mais uma fonte sonora, e assim sucessivamente.

É este “ping-pong” sonosférico que interessa a David Maranha: uma espécie de “ecologia sónica”, onde todos os detalhes são meticulosamente estruturados. Sob tal ponto de vista, podemos falar da existência de um som “medium” na música de Maranha.

Agenda

30 Maio

Hugo Ferreira e Miguel Meirinhos

Maus Hábitos - Porto

01 Junho

André Santos e Alexandre Frazão

Café Dias - Lisboa

01 Junho

Beatriz Nunes, André Silva e André Rosinha

Brown’s Avenue Hotel - Lisboa

01 Junho

Ernesto Rodrigues, José Lencastre, Jonathan Aardestrup e João Sousa

Cossoul - Lisboa

01 Junho

Tracapangã

Miradouro de Baixo - Carpintarias de São Lázaro - Lisboa

01 Junho

Jam session

Sala 6 - Barreiro

01 Junho

Jam Session com Manuel Oliveira, Alexandre Frazão, Rodrigo Correia e Luís Cunha

Fábrica Braço de Prata - Lisboa

01 Junho

Mano a Mano

Távola Bar - Lisboa

02 Junho

Rafael Alves Quartet

Nisa’s Lounge - Algés

02 Junho

João Mortágua Axes

Teatro Municipal da Covilhã - Covilhã

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