Rafael Toral e David Maranha
Do erro na improvisação à magia do tom
Em apreciação dois factores que Vítor Rua, o co-fundador dos Telectu, encontra nas músicas de Rafael Toral e David Maranha: a intencionalidade do erro na improvisação de um e o entendimento do som como “medium” do outro.
#01: Deus falou
Existe uma antiga estória chinesa que conta o seguinte: há muito, muito tempo, num templo budista, todos os anos era organizado um concerto de música para flauta. Num desses anos, foi convidado a tocar um mestre flautista de uma província longínqua que tinha inventado uma nova flauta e uma nova técnica de tocar. Um a um, os flautistas foram dando o seu concerto até chegar a vez desse mestre. E ele tocou a mais bela melodia que alguém já tinha escutado. No final fez-se silêncio e ouviu-se a voz do monge ancião: «Deus falou.»
No dia seguinte, os monges reuniram-se para escolher o aluno que iriam enviar para aprender aquela nova técnica com o mestre e escolheram um virtuoso ainda jovem para que tivesse mais tempo de aprendizagem. E assim, mestre e discípulo partiram para a província do mestre flautista. Na primeira aula, o mestre deu ao seu discípulo uma melodia muito simples para ele aprender. O aluno esteve um dia inteiro a praticar e, no dia seguinte, foi a casa do mestre e tocou a música. O mestre disse: «Falta-lhe algo.» O aluno regressou a casa e, desta vez, praticou durante uma semana inteira. De novo foi a casa do mestre e voltou a tocar a peça. O mestre disse-lhe: «Falta-lhe algo.» O pobre jovem ficou muito triste consigo próprio. Não conseguia realizar o que lhe fora pedido. Voltou a praticar, mas agora durante um mês inteiro, quase sem dormir. Foi a casa do mestre e voltou a tocar a melodia e de novo o mestre lhe disse: «Falta-lhe algo.» Aí, o aluno desesperou. Meteu-se no sake e tornou-se um vagabundo. Quando, anos mais tarde, regressou à sua aldeia, foi viver afastado de todos no cimo de uma montanha e lá ficou isolado, envergonhado. Tinha "perdido a face”.
Num ano em que se ia organizar mais um concerto, um monge idoso recordou que, naquela montanha, vivia um flautista virtuoso e pediu para o convidarem. Este, sem nada mais a perder, aceitou quase instintivamente o convite e, pegando na primeira flauta que encontrou, partiu para o templo. Chegado lá, ficou atrás do palco em silêncio e ninguém ousou também falar com ele. Os flautistas foram dando os seus concertos, até que chegou a sua vez. Ao subir para o palco, reparou que com a pressa tinha trazido uma flauta nova que o mestre lhe tinha oferecido e que nunca tinha tocado antes. Pegou na flauta e tocou a melodia que o mestre lhe tinha ensinado. No final, fez-se um silêncio e o monge mais ancião disse: «Deus falou…»
Rafael Toral faz parte de uma geração - juntamente com David Maranha - que aprendeu música a “escutar” discos. Com uma passagem pela pop, cedo enveredou por caminhos mais “experimentais”. Iniciou-se na guitarra - embora utilizasse outros instrumentos, como o gira-discos ou a percussão -, mas rapidamente se apercebeu - tal como o nosso monge budista! - que lhe “faltava algo”. Deu início a uma busca pelo seu “som”, procurando noutros média. Começou por usar objectos simples e minimais como um microfone e amplificadores de poucos “watts”, criando e dominando “feedbacks” - algo que lhe ficou desde a audição de uma cassete de Nuno Rebelo com uma obra intitulada “New Amp”, para amplificador, microfone e “feedbacks” - ou posteriormente criando o seu próprio instrumento - umas luvas com as quais controla e “modela” o som. Foi também Nuno Rebelo quem lhe deu a conhecer John Cage, o que terá sido fundamental para a sua futura obra.
Mas “o que é” Rafael Toral? Toral é um compositor! Schoenberg dizia que «compor é uma forma lenta de improvisar e improvisar é uma forma rápida de compor», e é isso que faz Rafael Toral: compõe rapidamente! Ao vivo ou em estúdio. Lidando e aprendendo com o “erro”. Dou um exemplo: este meu ensaio é um improviso; escrevo-o no dia 8 de Março de 2019; como improviso que é, irá com certeza ter os seus erros, e tal é o objecto deste meu texto: falar do erro e da improvisação na obra de Rafael Toral. Partirei do princípio de que tanto a improvisação como o erro são, já em si, conceitos que levantam problemas de representação da música; assim, pretendo apenas levantar questões, mais do que dar respostas. Falarei de improvisação; de improvisação total em especial, e tentarei fazê-lo através do ponto de vista da vivência musical de Rafael Toral.
Nos últimos 20 anos, Rafael Toral tem incluído, com um grau cada vez maior, a improvisação na sua obra musical. Cada concerto, ensaio, gravação, tenta ser conceptualmente diferente do anterior, quer a nível técnico, performativo ou das metodologias utilizadas. Factores que determinam essas diferenças podem ser o local onde se realizam essas acções, o espaço cénico, as condições tecnológicas e os estados psicofisiológicos.
De todas as formas de improvisação, a que mais fascina/apaixona Toral, a que verdadeiramente o eleva a graus de prazer excepcionalmente misteriosos e extraordinários, é a improvisação total não-idiomática. A introdução de jogos/sistemas aleatórios levam Toral a momentos improvisatórios de excepção, se tivermos em conta que o que está em causa implicitamente nessas situações musicais são a surpresa, o "risco", o espantar constante, imediato e em tempo-real - o improvisador tem de ser um pouco como Lucky Luke: mais rápido do que a própria sombra....
Toral usa o caos, representado por irregularidades e alterações repentinas de sobrepostas acções musicais, invertendo a inclinação da música para um certo reducionismo - a análise dos sistemas musicais em termos das suas partes constituintes: escalas, ritmos, melodias -, levando-nos a contemplar o todo musical. Diferenças mínimas no “input” musical - efeitos de phasing, distorções, delays, “feedbacks”- podem tornar-se em diferenças enormes no “output” musical. Uma espécie de efeito borboleta musical. O micro interfere com o macro! Toral parece viver "obcecadamente", tentando incluir aquele que considera ser o maior, verdadeiro e mais puro acto improvisatório: o erro. Não será este o momento musical mais próximo do "surpreender-nos a nós próprios"?
O erro na música é visto por certas civilizações - a ocidental especialmente - como algo de negativo e indesejável. Mas sei também que a História da Ciência está repleta de casos de descobertas importantíssimas que tiveram origem em erros ou acidentes: Fleming descobriu a penicilina graças a um fungo que contaminou uma lâmina de cultura; Roentgen descobriu os raios X graças a um descuido no manuseio de uma placa fotográfica. Um grão de areia deposita-se acidentalmente na concha de uma ostra; a ostra passa a segregar um muco espesso e homogéneo que se solidifica em camadas microscópicas, até se transformar numa pedra dura, perfeitamente esférica e lisa, de lírica beleza.
Os erros podem ser assim, grãos de areia que se travestem em pérolas. Freud mostrou-nos a maneira fascinante como os lapsos de linguagem revelam o material inconsciente. Ora, o inconsciente é o verdadeiro pão do artista, de forma que «os erros e lapsos devem ser valorizados como informações inestimáveis do nosso interior». Mas como provocar o erro? O erro provocado intencionalmente não é erro! O erro quer-se - na obra de Toral -, num estado puro - erraticamente natural -, não-intencional. Se a ordem no caos é um aforismo, também o é provocar o erro certo. O erro que Toral pretende tem de ser instável, desordenado em todas as escalas, movimento tornado aleatório, pequenos remoinhos dentro de remoinhos, enfim, turbulência. O erro, como possibilidade musical, tinha de ser concebido por Toral como um sistema simbólico formal capaz de trazer novas possibilidades à improvisação: caos com “feedback”. Da mesma maneira que a simplicidade gera a complexidade, o erro tem de gerar o erro.
Encarar o erro como uma realidade musical é - para Rafael Toral - uma espécie de "Alegoria da Caverna", em que as "sombras" são a "realidade". Se a música é uma arte governada por regras impostas pelo “compositor”, poderá o erro ser uma forma criativa governada por regras? Para lidar com o erro, Toral tinha de desaprender o que era certo. Tinha de ir para fora do sistema. Toral passou então a considerar o erro como um sistema formal, uma espécie de “puzzle”. Como produzir erro? Para resolver este “puzzle” foi-lhe necessário estabelecer uma regra: «Não posso errar propositadamente e devo errar naturalmente e sem consciência de que vou errar.» A solução é a de que esse erro assim obtido deixa de ser erro, porque é o que se pretende obter: «a sombra torna-se realidade», chegando-se assim a um paradoxo, ou melhor, àquilo a que Hofstadter chamou de “strange loop” - estranho anel:
«A FRASE SEGUINTE É FALSA.»
«A FRASE ANTERIOR É VERDADEIRA.»
O "erro que não é erro" é um estranho anel, difícil de alcançar, mas Rafael Toral conseguiu-o!
#02: «Primeiro, precisava de saber o que é uma tartaruga»
Na Antiga China, um imperador soube da existência de um excelente pintor e logo quis ter uma tela dele. Assim, foi a casa do pintor e pediu-lhe que pintasse uma tartaruga, ao que o pintor respondeu: «Preciso de três anos, ouro, mulheres e boa comida.» O imperador acedeu. Passados três anos, o monarca foi a casa do artista para ver a sua pintura. Chegado lá, o pintor disse-lhe que ainda não tinha o quadro pronto e que precisava de mais três anos, mais ouro e mais comida e mulheres. O imperador, irritado, disse-lhe: «Dou-te isso tudo, mas se daqui a três anos não tiver o quadro serás morto.»
Passado esse tempo, lá voltou o imperador a casa do pintor. Chegado lá viu uma tela em branco e perguntou, zangado, ao pintor: «A minha tartaruga?». O pintor pegou no pincel e de um traço só desenhou a mais bela tartaruga que alguém alguma vez tinha visto. Pergunta-lhe o imperador: «Se fizeste essa pintura em segundos, porque é que me pediste seis anos para a criares?» Ao que o pintor respondeu: «Porque, primeiro, precisava de saber o que é uma tartaruga.»
David Maranha - tal como Rafael Toral - teve uma breve passagem pelo rock, mas rapidamente se virou para a música experimental. Tal como Toral também, não foi logo no início que descobriu o seu instrumento. Começou por tocar guitarra baixo. Depois - encantado pela obra de Arnold Dreyblat - construiu o seu próprio instrumento: um cordofone a que chamou de “maranhofone”. A sua busca por um “tom” não parou aqui: virou-se para o clarinete e para o violino, seguidos pelo órgão e pela bateria. No órgão começou a trabalhar com “drones”, criando música sem início ou fim. À semelhança do pintor chinês, Maranha demorou a encontrar o seu “tom”, pois precisava igualmente de compreender o que «é uma tartaruga». Descobriu o seu tom não num só instrumento, mas em vários, sendo um brilhante poli-instrumentista, além de compositor e improvisador.
Assisti recentemente a um concerto seu em duo com Patrícia Machás e nele usou a bateria de forma invulgar, criando sons parasitas e texturas exóticas, tudo a partir de um instrumento convencional. As obras de Maranha são sempre tão “racionais” e “conceptuais” (envolvem muitas vezes instalações ou performances) quanto “líricas” e “lúdicas” (envolvem hipnoticamente o ouvinte). Uma das idiossincrasias da linguagem musical de Maranha é o uso de um conceito proveniente das Novas Teorias do Som, intitulado “som medium”. O som “principal” que o compositor David Maranha pretende que se escute na maioria das suas obras não é, propriamente, a “fonte sonora”, mas o “som ambiente que ressoa por simpatia” no espaço onde é realizado o evento musical ou a gravação. Quando se diz «o som da Catedral de São Marcos é diferente do som da Catedral de Notre Dame» a que "som" nos referimos? Referimo-nos não ao som da fonte sonora, mas ao som do “medium”.
Mas podemos realmente falar de um som “medium”? A visão tradicional da teoria do som diz-nos que este consiste em ondas que viajam no “medium” e que o som se localiza no “medium”. O “medium” não é a fonte sonora, apenas processa o som. Para existir som é necessário um “medium” e, pelo menos inicialmente, uma fonte sonora. Como exemplo, imaginemos um órgão que é tocado por Maranha na Igreja da Sé de Lisboa: o órgão é a fonte e a igreja é o “medium” onde o som do órgão se realiza. Fora da igreja, o som que escutamos é o de um órgão que imaginamos estar dentro da igreja, mas é esta - a igreja - que emite agora o som que escutamos. A igreja é agora fonte sonora e o ambiente (no caso, a cidade) é o “medium” desse novo som. Esse novo “medium” tem um som que é constituído por milhares de sons de diferentes fontes sonoras e seus respectivos “media”, como aquelas bonecas russas que se desmultiplicam quando abrimos a maior.
O primeiro “medium” de um instrumento como a guitarra dobro de Maranha é a sua caixa de ressonância e só depois vem o segundo: o ambiente – o espaço - onde o som se realiza. Durante um concerto de guitarra por Maranha dizemos que estamos a escutar "guitarra" e a fonte sonora é a guitarra. O “medium” é a sala de concerto (de notar que a caixa de ressonância da guitarra, é, de per se, já um “medium” em relação às cordas da guitarra, que realmente são a fonte do som). Para alguém que esteja no corredor ou no “hall” da entrada dessa mesma sala de concertos, o som filtrado que lhe chega aos ouvidos já não é somente o da guitarra. É também o som ambiente da sala e do público (tosses, ruídos); assim, podemos dizer que a fonte sonora já não é a guitarra - para esse indivíduo -, mas sim toda a sala.
Quem estiver fora do edifício, no passeio cá fora, o som que lhe chega é o do próprio edifício. O edifício é agora a fonte sonora e a rua o “medium”. O que escuta quem estiver fora dos limites da cidade onde se está a realizar esse concerto de guitarra clássica é o som da cidade, ou seja, a cidade como fonte sonora. O ambiente fora do limite da cidade é o “medium”. Se o som repercutisse no vácuo, um astronauta que estivesse na Lua poderia registar o som do planeta Terra: o planeta seria agora a fonte sonora, enquanto o espaço seria o “medium”, numa espécie de "mise en abîme" entre a fonte sonora que está num “medium” e outra fonte sonora que se inclui noutro “medium”, tornando-se este também em mais uma fonte sonora, e assim sucessivamente.
É este “ping-pong” sonosférico que interessa a David Maranha: uma espécie de “ecologia sónica”, onde todos os detalhes são meticulosamente estruturados. Sob tal ponto de vista, podemos falar da existência de um som “medium” na música de Maranha.