Jazz em Agosto
Carta aos que desistem
Antes que a sua parte da reportagem sobre o festival da Gulbenkian aqui seja publicada, o nosso colaborador Gonçalo Falcão escreveu uma carta – esta – dirigida a quem continua a sair dos concertos pouco depois de estes começarem, como se ainda fosse possível não saber ao que se vai quando alguém se senta no anfiteatro ao ar livre daquela instituição.
Lisboa 5 de Agosto de 2017,
A coisa não é um assunto de grande cientificidade ou debate: a música que ouvimos no jazz em Agosto é jazz (como o próprio nome indica), música total ou parcialmente improvisada; quer isto dizer que, sejam as improvisações muito ou nada estruturadas, são tocadas por músicos que se dedicam à arte da improvisação e que a aperfeiçoaram ao ponto de se tornarem exímios e únicos. A improvisação livre – ou seja, o abandono de estruturas previamente fixadas que enquadravam as improvisações iniciais dos músicos de jazz – ganhou expressão há aproximadamente 50 anos em Inglaterra e espalhou-se pelo mundo inteiro. Não foi uma revolução, foi um alargamento das premissas introduzidas no jazz por Coltrane e depois por Ornette e pela música erudita daquele período.
O jazz não é uma música embalsamada, renova-se e participa na construção da paisagem cultural do seu tempo, incorpora as ideias e músicas das diferentes épocas e espelha cada um dos momentos da história. É um contínuo natural, como um rio que passa por uma ponte. É hoje a extensão das ideias de Armstrong, que alargou os limites dos blues, de Ellington que a libertou dos princípios do jazz de Armstrong, de Parker que a retirou da dança, de Monk que a abstractizou, de Miles que a misturou, de Coltrane que a espiritualizou, de Ornette que a desestruturou. A “grande música negra”, o jazz, continuará a explorar novos caminhos e possibilidades e a alargar as suas fronteiras porque é feita por músicos e essa exploração faz-se tanto usando formas clássicas como testando processos inovadores.
Nem tudo o que toca no Jazz em Agosto é totalmente improvisado. Há quem toque composições maioritariamente escritas, quem use partes escritas e partes improvisadas, quem não tenha partes escritas e estruture as improvisações ou as conduza em tempo real, e há quem misture vários destes processos.
Ao ver as pessoas que desistem dos concertos (por certo que ninguém as obriga a ficar), observo um problema trazido pela comercialização do jazz ou, usando uma expressão de Jorge Lima Barreto, pelo “branquemento do jazz”. Muitos glutões agarraram na sonoridade do jazz e usaram-na para colorir músicas simples, para consumo das massas. São processos comerciais de quem vê a música como um produto apenas comercial e faz o que for necessário para ir de encontro ao gosto farsola. Há Ramones tocados em bossa-nova e há Anas Malhoas tocadas com som de jazz, ou melhor, a ideia de jazz que se instalou na cultura popular e corresponde à sonoridade dos combos dos anos 1940, 50 e 60. E há gente pouco preparada que, na procura de uma alternativa ao tédio que se vive hoje na música que passa na rádio (a qual deixou de ser seleccionada pela paixão e pelo gosto dos radialistas e passou a ser tutelada por uma lista comercial, a “play list”), mama Cullum como se fosse ostras da Ria Formosa.
Usando outra expressão cunhada por Jorge Lima Barreto: «Não fui, não ouvi e não gostei» do Cool Jazz. Mas será que as pessoas que pagam mais de 50 euros para ver um concerto dos Pretenders, de Gabriel Y Rodrigo, de Maria Gadu, de Jorge Palma ou de Jamie Cullum (cardápio 2017), saem a meio porque “aquilo não é jazz” ou “não tem relação nenhuma com Gil Evans ou Lennie Tristano”?
O Jazz em Agosto toca há 34 anos! Segue hoje os mesmos princípios e as mesmas músicas enunciados / as no texto inaugural de Madalena Perdigão. Não há surpresas. Não se corre o risco de ouvir jazzinho páp-suíra. Sempre em Agosto, sempre na Gulbenkian. Como é que alguém pode ficar tão surpreendido e desagradado com o que ouve que quer sair passados 15 minutos? Hoje já não é segredo que existe uma coisa chamada “internet”, onde se encontra informação sobre os músicos e as músicas que passam no Jazz em Agosto e a instituição faz um esforço hercúleo para divulgar as músicas no seu “site” e nas rádios (Antena 2 e Radar). Até tem “podcasts” para os telemóveis e eu sei que vocês os têm porque os levam para os concertos e ficam o tempo todo no Facebook a chatear quem está atrás com o brilho dos ecrãs.
Ninguém vos quer mal, insiram Cullum à vontade e onde quiserem, mas não deixem que sejam "smarts" apenas o telefone e o carro: vão ao Google, comprem discos, ouçam música – dêem-lhe uma oportunidade. Se se abotoaram para ir até à Praça de Espanha não desapertem tanto a inteligência e encanitem os nervos aos outros.
Gonçalo Falcão