Análise
As nuvens sónicas de Sei Miguel
Um dos nossos maiores músicos, Vítor Rua, escreve sobre outro gigante da música que se faz em Portugal, Sei Miguel, salientando a sua importância no contexto da Música Improvisada Total e analisando os procedimentos que o compositor e trompetista vem aplicando na sua obra. Um texto histórico.
Se tivéssemos de explicar a um extraterrestre onde vivemos, teríamos de lhe dizer que, em determinada galáxia, vivemos num específico sistema solar. Esse Sistema Solar compreende o conjunto constituído pelo Sol e todos os corpos celestes que estão sob seu domínio gravitacional. Ora, se quisermos falar de uma determinada geração de improvisadores portugueses - uma geração posterior à de Carlos “Zíngaro”, Jorge Lima Barreto ou Carlos Bechegas -, podemos fazê-lo referindo-nos unicamente ao "Sol", omitindo falar de todos os "Planetas" e "Planetas Anões" que orbitam à sua volta.
Assim, é-nos possível abordar o panorama da Improvisação Total em Portugal durante quase 30 anos, referindo unicamente o nome de um músico: Sei Miguel. Sei Miguel é um "Sol" em torno do qual giram resmas de "Planetas" e "Planetas Anões". São muitos os músicos que idolatram Sei Miguel, que adoram a sua obra, que estudam a sua música ou que tiveram o prazer de com ele conviver, tocar ou gravar.
Se tivesse de resumir numa palavra a obra musical do Sei Miguel escolheria o termo "rigor". "Rigor" no acto de compor; "rigor" nas suas criativas, originais e imaginativas notações musicais; rigor na escolha dos instrumentos das suas obras (timbre); "rigor" na escolha dos músicos que o acompanham; "rigor" nos ensaios com esses músicos; "rigor" nas gravações das suas obras; "rigor" na escolha da editora para os seus discos; "rigor" nas capas dos seus discos, e por aí fora. "Rigor" é o mínimo múltiplo comum, em Sei Miguel.
Mas... O que "é" Sei Miguel? Sei Miguel é um compositor! Todo e qualquer exercício de tentarmos meter a obra de Sei Miguel num "estilo" musical é uma tarefa condenada ao insucesso, e todo e qualquer exercício de tentarmos explicar como é que um compositor influencia e é um ícone paradigmático de uma tipologia musical (a Improvisação Total), que “aparentemente” é antagónica à música escrita, só é explicável pelo facto de Sei Miguel “frequentar” (dando concertos), em festivais e locais, a maior parte deles, dedicados à improvisação. Mas a música de Sei Miguel podia, e devia, ser interpretada em espaços como a Gulbenkian (no Jazz em Agosto, por exemplo, onde já se torna quase um “crime” a sua não presença nestas três décadas de Festival) ou a Casa da Música, por exemplo.
Um tempo virtual
A música de Sei Miguel debruça-se sobre isoladas “experiências sónicas” – onde cada som é auto-suficiente e independente dos outros. Imaginem uma música que não tem início – apenas começa – e não tem fim – somente pára; sem clímax ou qualquer intenção de atingir um fim; uma música que não crie expectativas, sem movimento ou direcção definidos; uma música onde os eventos musicais existem por eles mesmos em vez de participarem em qualquer progressão. O objectivo é o de, a um “módulo musical”, acrescentar um outro, depois outro e ainda outro e por aí contiguamente, sem qualquer relação aparente entre eles, excepto o puro encanto de construir um abstracto encadeamento sonoro.
Se os eventos musicais numa determinada peça de Sei Miguel se “colam” aos outros numa ordem em particular, então é porque essa ordem terá, obviamente, de influenciar ou mesmo constituir o sentido da própria obra: abstrações sónicas, movendo-se, criando tempo –tornando audível e visível o tempo! O “tempo” na obra musical de Sei Miguel é um “tempo virtual”; por contraste, a sequência de actuais e concretos acontecimentos é um tempo absoluto. Assim, o “tempo”, torna-se no componente essencial para a compreensão da sua obra e o veículo pelo qual a sua música faz um contacto profundo com o espírito humano. Por conseguinte, os eventos musicais que formam as suas composições, tornam-se num fluxo e não no “tempo” e a composição transforma-se numa encadeada série de eventos que contêm em si não só o “tempo” como o “modelam” lentamente.
As composições de Sei Miguel devem ser entendidas como sucessões de “momentos” sem -aparentemente - direcção ou movimento definidos. Mas será realmente que podemos falar de “movimento” na música de Sei Miguel? Não será isso apenas uma metáfora? A única coisa que realmente se “move” é a vibração dos instrumentos e as moléculas de som que chegam até aos nossos ouvidos.
Escutar a música de Sei Miguel é como observarmos as nuvens no céu: viramos a cabeça para o céu, olhamos as nuvens e baixamos a cabeça e quando depois olhamos de novo, passados uns tempos, parece-nos tudo igual: as nuvens parecem não se ter movido. Mas a realidade é outra. Embora nos pareçam iguais, as nuvens são diferentes. O mesmo se passa com a música de Sei Miguel: se ouvirmos "desatentamente" a sua música, parece-nos - muitas das vezes -, que os seus intérpretes se limitam a "repetir" as mesmas frases, eternamente, mas se escutarmos atentamente, observamos que, tal como as nuvens, as frases musicais são "repetidas" de forma "irregular" e "caótica", com "rugosidades" e "assimetrias".
Micro/macro
Nada é igual! Tudo é diferente! Para se analisar a obra de Sei Miguel temos de olhar o "micro" para podermos contemplar o "macro". Cada obra de Sei Miguel é meticulosamente construída, estruturada, interpretada e composta, fazendo parte de um "puzzle" que constitui o "todo" que é a sua Vida. Arte é Vida e Vida é Arte em Sei Miguel.
Se quisermos "escalpelizar" a sua obra e "resumi-la" em um parágrafo - tarefa impossível! -, diríamos que, sobre estruturas com pulsação rítmica assimétrica, Sei Miguel cria interjeições curtas com o seu trompete, alternadas com sons de maior duração, emitidos com variegadas intensidades e com um timbre que lhe é idiossincrático. Questionado sobre o facto de a sua música agradar apenas a um número muito reduzido de pessoas, o compositor Pierre Boulez respondeu: ~Eu não dirijo nenhum restaurante!» A obra de Sei Miguel não pretende “agradar”! Pelo contrário, “incomoda” (não é “mainstream”)! Mas ao mesmo tempo é lírica e bela (o excelente uso de técnicas como a “klangfarbenmelodie” ou o “pontilhismo”, por exemplo).
As composições de Sei Miguel ora estabelecem uma sinestesia com os intérpretes (sublinhando ou ampliando a peça musical escrita), ora se antagonizam com a acção interpretativa (distorcendo ou contrariando o que pareceria ser a forma “normal” de se tocarum instrumento). O facto de, muitas vezes, se retirar a obra de Sei Miguel do comportamento ritualista que caracteriza as salas de concerto leva a que o espectador altere a forma descontinua de ver essa mesma obra.
Numa era em que predomina a passividade, o receio de uma tomada de consciência e em que o simples pensar é um luxo, Sei Miguel obriga-nos a uma reflexão obsessiva sobre o mundo real, através de alusões metafóricas a situações de um mundo banalizado, monótono, iconoclasta, dromológico; um mundo de poderes, de guerras e ódios. Certa terminologia (paz, amor, amizade, alegria), é vista por toda uma série de pseudo-chiques intelectuais como “démodé” e banal, habituados a todo um mundo Prozac, drogado em pensamentos de auto-realização, interessados em que tudo faça sentido – o seu sentido – e habituados a verem os artistas num papel simultaneamente de salvadores e sacrificados.
Presente infinito
A obra de Sei Miguel não pretende “comunicar”! Mas é exactamente com isso que joga Sei Miguel: o sonho de extirpar do pensamento todo o sortilégio e de eliminar todo o principio do mal é tão absurdo como o de eliminar toda a concupiscência… mesmo em sonho. Não existe uma moral ou uma lição a tirar na criação musical de Sei Miguel, mas se houvesse, creio que seria a de nos recordar que o nosso maior crime é a heresia das aparências e que toda a veleidade – por muito racional que seja – de a tentar eliminar é o sintoma de um erro fantástico da vontade – uma aberração do desejo.
Bertrand Russell diz-nos num dos seus mais conhecidos paradoxos que o mundo teria sido criado apenas há alguns minutos, mas está dotado de uma humanidade que se lembra de um passado ilusório. É isto que sinto ao escutar Sei Miguel, uma sensação de presente infinito… A sua obra grita-nos para que vivamos a nossa vida e que não a vivamos sentados em frente de um ecrã. Pede-nos para que pensemos e façamos a nossa revolução em tempo real. Obriga-nos a sentirmos o nosso corpo, o nosso sangue, as nossas vísceras, e a vivermos a nossas paixões amorosas em tempo real.
Ideias toda a gente tem, e por vezes mais do que é preciso. O que conta é a singularidade poética da escolha. Nunca haverá solução para a contradição das ideias se não for na energia e na felicidade da vida. Na criação musical de Sei Miguel não encontramos nem passado nem futuro – só presente.