Conto
O veludo e o trompete
«Um terço autobiográfico, um terço desejo e um terço fantasia», assim Duarte Canário, leitor da jazz.pt, descreve o conto que a seguir publicamos. «Há quem nasça para tocador e há quem nasça para ouvidor», afirma ele, assumindo a segunda condição sem deixar de ambicionar a primeira…
1
Fui para Lisboa duas semanas, e uma amiga disse-me: «Mais vale levares coisas demais do que coisas de menos.»
Foi por isso que também levei o trompete. Veio numa caixa, muito bem acondicionado num interior de veludo, e de lá poucas vezes saiu desde que o comprei.
O que se passou foi o seguinte:
Aos 15 anos os meus amigos começaram, de um dia para o outro, a saber nomes de bandas de que eu nunca tinha ouvido falar, como se numa noite se tivessem juntado todos numa conferência secreta de educação do ouvido para adolescentes para a qual eu não tinha sido convidado.
Desde então fiquei eternamente do lado de fora, e sem grande pena, porque quando ouvia os sons da geração, não conseguia distinguir o mau do bom. Confiava nos meus amigos, mas nada me animava por dentro.
Foi aos 16 anos que tudo mudou. Estava a ver televisão quando teve início o primeiro episódio de uma serie documental sobre músicos de jazz. Era sobre Dizzy Gillespie, e quando ouvi pela primeira vez o “Night in Tunisia” soube que tinha, finalmente, encontrado a minha música, e só queria ouvir mais.
Na semana seguinte, o músico retratado o documentário foi Miles Davis. Ora, o Miles tem um perigo que o Dizzy não tem. É que, depois de ouvi-lo, fica-se com a noção de que também podes ser músico de jazz sem grande esforço. É só pegar no trompete, um instrumento de sopro com três "botões", e soprar. Quão difícil pode ser? Não existem muitas combinações que podem ser feitas só com três dedos. O resto é uma questão de fôlego.
Desloquei-me então à loja de música para comprar um trompete. Não pensem que fui totalmente inconsciente. Sabia que era um principiante e por isso comprei um mais barato, apenas para me iniciar. Dentro de um mês ou dois, logo investiria em algo mais profissional.
Quando cheguei a casa, encaixei o bocal, aproximei os lábios, carreguei no "botão" do meio e soprei levemente.
Não fez qualquer som.
Soprei com mais força.
A mesma coisa.
Soprei com toda a minha força, até sentir uma veia a querer sair-me pela vista.
Só o som do vento.
Devia estar avariado.
Voltei à loja e disse à senhora que me tinha vendido o trompete:
- Muito bom dia.
- Bom dia.
- Olhe, o trompete está avariado.
- Está avariado?
- Sim.
- Mas avariado como?
- Não cumpre a sua função de trompete.
- A sua função de trompete?
- Não emite som. Nada. Só sai ar, não sai música.
- Mas tu sabes tocar trompete? Já tiveste lições?
- Não, mas não preciso. Quero ser um autodidacta.
- Mas tens de saber umas bases. É que não basta soprar.
- Então, mas isto não é um instrumento de sopro?
- É, mas é preciso aprender a soprar da forma certa.
- Está avariado, digo-lhe! Eu soprei com toda a minha força. Seria impossível soprar mais, juro!
- Eu acredito que sim, mas não é uma questão de força, é uma questão de jeito. Devias ter lições, pelo menos no início. Não é vergonha nenhuma, ninguém nasce ensinado. Olha, porque é que não passas pelos bombeiros? Eles têm uma banda e dão-te umas luzes.
Ouvi tudo e acenei que sim, embora com cara de mau. Não estava nada convencido. Nunca iria aos bombeiros! Nunca na vida! Miles Davis não aprendeu a tocar trompete nos bombeiros! Chet Baker não aprendeu a tocar trompete nos bombeiros! Dizzy Gillespie não... o Dizzy era provavelmente um autodidacta! Eles são todos autodidactas! Como eu!
Cheguei a casa, tirei novamente o trompete do estojo e voltei a soprar com toda a força que tinha, aproveitando a raiva acumulada. Novamente, só ar. Depois tentei soprar de outra forma. Não sabia bem como. Mas eventualmente lá me saiu dos lábios algo mais do que ar entubado. Saiu um zumbido amplificado pelo instrumento metálico que soou como a buzina avariada de um cargueiro a entrar timidamente no cais.
Peguei numa peúga, meti-a no sino do trompete e repeti o zumbido, mas agora como se a minha vida disso dependesse.
O som que recebi não pode ser descrito por palavras, mas fez-me arrumar o trompete por uns dias.
E foi assim durante anos. Às vezes acordava, sentia-me inspirado, ia ao estojo, sacava de lá o trompete e fazia os meus improvisos sonoros, dava asas aos meus delírios. Arrumava-o de novo. Dali a uns meses, visitava-o novamente.
A minha amiga disse-me que mais vale levar de mais do que levar de menos, portanto tinha de o levar.
2
Numa noite senti-me abandonado por todos.
Estava em Lisboa sozinho, e quando isso acontece temos duas opções: morrer no tédio solitário de um apartamento minúsculo e mal arejado ou beber uma garrafa de vinho branco barato para mandar abaixo as amarras que prendem o teu verdadeiro EU e partir para o mundo a fim de o conquistar. Nada menos satisfaz. Sou um conquistador.
Peguei no estojo com o trompete dentro. Saí para a rua. Entrei na avenida e procurei o clube de jazz. Encontrei-o por instinto.
Não precisei de respirar fundo antes de lá entrar. Antes pelo contrário. Segurei-me para não dar uma patada na porta, porque o que achava merecedor para um talento inato e autodidacta como eu era entrar à bruta. INTERROMPENDO menoridades. Eu sou o rei. Eu sou o génio. Eu tenho o trompete.
Contudo, parte de mim estava sóbria o suficiente para lá entrar como uma pessoa normal. No palco estava um trio, com piano, contrabaixo e bateria, a percorrer soft things, mellow things, coisas que fazem estalar os dedos de olhos fechados. Good stuff, but weak stuff.
Fui ao bar. Pedi qualquer coisa que levasse vinho branco, pois não gosto de fazer misturas, e perguntei pelo gerente.
- Está ali naquela mesa. É o que tem óculos e cabelo branco. O que tem a garrafa de vinho à frente.
Aproximei-me dele e sentei-me na mesa. Ele olhou para mim surpreendido.
- É o gerente disto?
- As opiniões dividem-se, mas acho que sim.
- Olhe para isto. Tenho um estojo. E dentro do estojo tenho um trompete protegido por veludo.
- Sim... e depois?
- Os meus lábios também são de veludo. Quando deixo o trompete à solta, eles buscam-no, como os anjos as harpas.
- Ai sim? Jazz?
- Só.
- Verdadeiro?
- Há outro?
- Quando?
- Hoje.
- Quando?
- Agora.
- Vai.
Bebi o meu vinho e depois o que faltava da bebida dele e levantei-me. Dirigi-me para o palco. Subi enquanto levantava os braços e gritava bem alto para que todos ouvissem:
- VAMOS PARAR COM ISTO QUE AGORA VAI TOCAR A VERDADE. O GERENTE DEIXOU.
E apontei para o sujeito de óculos e cabelos brancos que estava de polegar levantado em concordância e com uma nova garrafa de vinho branco à frente.
- Gladiadores, o imperador manda-me matar.
Olhei para o pianista e disse:
- "Kush". Dizzy style.
Olhei para o contrabaixista e disse:
- Dizzy style.
Olhei para o baterista e disse:
- Follow me if you can.
Eles começaram a tocar como se tivessem gravado o álbum de 1961 "An Electrifying Evening with Dizzy Gillespie". Eram mesmo bons. Quando chegou a hora de eu entrar, a primeira frase até pareceu real:
«tu tu taruro rurooooooooooooo.»
Então toquei a segunda:
«tu tu taruro ruroooooooooooo.»
E depois a terceira:
«tu tu taruro rurôôôôôôôôôôô.»
E a quarta:
«tu tu taruro rurôôôôôôôôôôô.»
OH YES. O primeiro desafio estava superado, e como a segunda parte era igual, senti-me em velocidade de cruzeiro. Em breve viria o solo.
Olhei para o pianista como quem diz:
Prepara-te: vou entrar em acção. Nenhuma experiência de vida que tenhas tido preparou-te para o caminho que vou seguir. Pertence a uma dimensão distinta das reais. Vou fazer-te, vou fazer-vos entrar no mundo dos sonhos que apenas pode ser acessível através do sono ou através de portais com acesso directo às mentes geniais do passado.
Quando arranquei com o meu solo, regressou o lento e tímido cargueiro da buzina avariada, entrando num pequeno porto de Nova Orleães. Eu estava a levar o jazz de regresso a casa com o meu zumbido. Bombeiros... bombeiros… Eu estava a levar o jazz de volta a casa, contra tudo e contra todos.
A secção rítmica deixa de conseguir acompanhar-me. Nem sempre podemos ter músicos tão bons como nós a seguir-nos. É a sina dos génios.
Quando acabei o solo (para os mais curiosos, durou 43 segundos), levantei o trompete bem alto com os dois braços e gritei:
«FREEDOM FOR ALL!»
O público... o pouco público... as cinco pessoas, que estavam ainda sentadas a ouvir-me nem aplaudiram. Claro... foram atingidas por um tsumani. Não tinham bases para conseguir absorver o que eu lhes tinha acabado de dar.
Cambaleei de regresso à mesa do gerente, que já tinha outra garrafa de vinho branco pela frente:
- Vejo que também não gostas de misturas.
- Pois não, eu só gosto de jazz!
- Puro, puro, puro. Gelo e mulheres são cobardia.
- Porque é que a vida nos obriga a isto?
- Porque não gosta de jazz.
E então deixei cair a cabeça em cima da mesa e entrei num sonho. Num sítio em que a vida é perfeita, e quer o Dizzy quer eu tocamos trompete da mesma forma, sem eu ter tido uma lição sequer. Num mundo em que os nossos solos só são interrompidos pela melodia suave e simples da nossa voz. Num mundo em que não adormecemos sozinhos de noite e em que, tal como o meu trompete, estamos protegidos por lábios de veludo.
Mas o jazz não precisa de veludo. Não precisa de nada. De nada. Só de alma e de sopro. Bird still lives.