Crónica do Brasil
Carta sobre o mar e o espaço sonoro
Novas reflexões do músico de Campinas – agora radicado em Belo Horizonte – que toca os instrumentos que ele próprio inventa e constrói e que é um dos mais importantes dinamizadores da música improvisada em terras de Santa Cruz.
«Uma noite resolvi chegar bem perto do mar, / caminhei em silêncio, discreto e / sem perceber a minha presença, / lentamente, ele se presentificava / Em princípio era um rumor, pouco a pouco chicoteava. / Já na areia percebi que ele confabulava, explodia em tensão e, / naquele instante, pareceu-me que havia percebido a minha chegada. / Eu tive ali a nítida sensação de ter flagrado o mar / e sua potência incontida, que dizia do desejo mais secreto de tudo engolir. / Fui tomado pela sensação do sublime, um misto de medo e admiração. / Ele estremecia e me fazia tremer.»
Endereço essa carta à música improvisada.
Depois de alguns meses sem escrever, volto à onda, ao mar, à prática da improvisação coletiva. Sobretudo, num primeiro momento, volto à questão da alma, como por Michel Serres e que no último escrito me dediquei um pouco a essa imagem: a alma como um ponto do corpo que faz a passagem da face interior para a superfície de contato com o mundo, a que ele denomina, esse lugar, como o ponto em que o eu se decide.
Esse ponto, esse lugar, não é fixo, move-se nas decisões do ser, move-se sempre em que se dá a passagem do interior para o exterior. Portanto, posso arriscar dizer que no caso do músico improvisador, essa decisão, essa passagem e transferência, se dá a cada gesto musical.
E ainda nesse caso, essa alma se transfere para o ponto de contato, se projeta e se desprende em som, em onda sonora, se irradia, se junta, se debate, se conflitua, se acomoda a outras tantas ondas que se desprendem de outros instrumentos / instrumentistas. Criam-se intervalos viventes que se contaminam e passam a habitar um espaço sonoro ao mesmo tempo em que esse se constitui.
Aliás, intervêm no espaço acústico da sala, esta com suas qualidades materiais, físicas. É do encontro desses vetores, ambientais e humanos, que se constitui o espaço sonoro determinado. Portanto, para mim, música é também uma constituição no tempo de um espaço sonoro. E esse espaço sonoro é constituído, no caso da música improvisada, por decisões de passagem da face interior para a superfície de contato com o mundo exterior, que se inicia pelo tato, pele contra superfície do dispositivo instrumento.
Muitas vezes, diante da execução instrumental de uma peça do repertório da música de concerto, um Mozart, Beethoven, Brahms, digo isso sem juízo de valor, me sinto num velório. Cada concerto para mim é um velório e cada interpretação uma partida, despedida, ao mesmo tempo em que é evocação. A partitura é o defunto que deve ser preparado, embelezado, apresentado nessa despedida, da melhor maneira possível. Já há muito não se vela mais o corpo na casa, constrói-se locais apropriados à cerimônia.
Essa imagem me faz lembrar o filme “Departures”, do Yojiro Takita: o músico dedica-se à sua Arte, cuida do corpo / partitura, embeleza, retoca, se dedica à preparação do morto com suas habilidades manuais, musicais, táteis. Assim, cada ouvinte, espectador, o reconhece e legitima a ação desses músicos. Nesse caso, há uma definição “a priori” sobre o que é música, há um pacto cultural e esse acordo é necessário, assim como o é para o falsificador nas artes visuais, que depende disso para o reconhecimento da sua arte. Mas é evidente que isso não tira dessa ação a constituição de um espaço sonoro no tempo. Muda-se, é lógico, quem agencia, muda-se o caráter, muda-se inclusive o jogo simbólico para a fruição.
Diante da música improvisada, espontânea e pretensamente livre, na condição de ouvinte, ou mesmo de “performer”, tenho a sensação de estar diante do mar que relato no início. A junção desses arbítrios, egos, decisões, conflitos, acomodações, tensões, me dá a sensação de estar diante de uma potência incontida que é flagrada – assim como na imagem do mar - no auge da sua confabulação. Uma conversa que se adensa ou se desvanece, mas que emana um campo de força e de ondulatória poética que ultrapassa os desejos e intenções particulares, para constituir-se como um quase-ente.
Essa matéria viva perde sua força quando anula no seu jogo as diferenças de timbres, de potências acústicas, de texturas, em detrimento de uma verborragia técnica de caráter competitivo. Perde também quando não dá o tempo de acomodação das ondas desprendidas ao ambiente acústico da sala: quando o músico não entende o espaço como um instrumento, tampouco entende o instrumento como um espaço miniaturizado, táctil, que oportuniza a passagem entre a face interior e a superfície de contato com o mundo.
Cada vez mais penso que o músico deve saber se relacionar com o espaço acústico da sua apresentação e que a música improvisada é o campo latente para a experimentação das relações texturais com o espaço acústico e da conscientização da música como construção de um espaço sonoro.