Rafael Toral
As gravações perdidas
O músico português deixou na gaveta, durante 20 anos, as suas pessoais interpretações da música de John Cage. Essas “lost tapes” estão agora disponíveis na Internet.
«(...) for lack of integrity is an obstacle to evolution.» - Rafael Toral
Falar de música criativa em Portugal e deixar de lado Rafael Toral é o mesmo que não falar. Mas nacionalismos à parte, que esta coisa da música criativa não tem muito de fronteiras e territórios, falar desta música e deixar de lado John Cage é o mesmo que renegar toda a arte pós-1950s. Ora, graças ao mais recente lançamento de Toral, é-nos possível falar (e acima de tudo ouvir) de ambos ao mesmo tempo.
Em jeito de celebração do 101º aniversário do músico americano, é lançado no vórtice da Web legal e gratuita (o que alguns escribas como este teimam em chamar de “netaudio”) um projecto que Toral denota de «incompleto»: uma colectânea de gravações feitas de 1990 a 1993, mas que alcança a completude de uma homenagem, nunca tardia.
«I can’t understand why people are frightened of new ideas. I’m frightened of the old ones.» -John Cage
As homenagens directas são quatro, mas em conceito valem todos os segundos do registo áudio, desde os eléctricos a passar em “4'33'”' e “Variations II”, que toma contornos épicos ao longo dos seus 10 minutos de “drones” aditivamente (des)construídos, aos incessantes ruídos metálicos de “Cartridge Music” (outra pauta gráfica tão essencial de Cage) e ao trabalho composicional em fita (pós-processado em múltiplas camadas) que se ouve em “Solo for Voice 23”.
«(...) to let go of control, why not, then, create space in his structures of composition.» -Rafael Toral
O disco fecha com "AER 7 E", a única composição de Toral, como quem, a meu ver, afirma: «É após todo este respeito a Cage que aqui estou eu, um ser musical bem diferente.» A composição surge também em "Sound Mind Sound Body", registo saído no virar do milénio, e escuta-se em "Love", gravado ao vivo.
«the LOVE tapes remained stored in a drawer since 1993, i always believed it would see the daylight at some point.» - Rafael Toral
O material audível neste “disco” (usemos as aspas, para dar voz à incompletude postulada por Toral) transcende as cinco composições e a homenagem propriamente dita. O que escutamos é a própria evolução de Toral como músico. Que bom seria se mais músicos partilhassem as suas “lost tapes” para cimentar a nossa tão fragmentada musicologia, mesmo vivendo numa era em que guardar informação já não “custa”.
De um génio para outro, “Love” marca simultaneamente dois momentos da história da música, a da criação / mutação da linguagem de Rafael Toral e a re-re-confirmação de Cage. Sendo por isso um registo imperdível, à distância de um clique aqui: http://rafaeltoral.net/downloads/catalog/love