Sun Ra, 6 de Abril de 2013

Sun Ra

Mito, extraterrestre e anjo

texto Rui Miguel Abreu

“A Space Odyssey”, triplo CD com carimbo editorial da Fantastic Voyage, é uma compilação desenhada pelo jornalista Kris Needs para fornecer uma renovada perspectiva sobre o arranque da carreira do enviado de Saturno.

Na introdução do extraordinário “Space is The Place – The Lives and Times of Sun Ra”, livro que li em 1998, John F. Szwed escreve: «Há alguns anos, um jornalista alemão abria a sua crítica a um concerto de Sun Ra com a questão “génio ou charlatão?”. Ele poderia ter acrescentado “louco” à sua pergunta, porque esses são os papéis que foram atribuídos a este lendário e semi-recluso músico de jazz americano e que fazem parte do mistério de um dos mais estranhos artistas que a América já produziu.»

O triplo CD que a Fantastic Voyage – editora cujo nome de baptismo bem poderia ter sido inspirado pela vida de Sun Ra – acaba de dedicar ao homem do leme da mítica Saturn, “A Space Odyssey – From Birmingham to the Big Apple: The Quest Begins” é uma excelente porta de entrada no, de facto, estranho e talvez por isso mesmo fascinante universo de Herman Poole Blount, o homem que o mundo recorda como Sun Ra.

O jornalista Kris Needs, responsável pela selecção do material presente neste álbum, começa, nas suas ricas notas de capa, por enumerar alguns dos pilares do estatuto que a história consagrou a Sun Ra: «Ele foi o primeiro músico a declarar que o espaço era o lugar, passando a sua vida a trabalhar para criar pinturas tonais que traduzissem o que o espaço poderia ser. Foi também o primeiro a encorajar a improvisação colectiva no contexto de uma “big band” e a usar teclados electrónicos no jazz. Ele antecipou o psicadelismo e o afro-centrismo, usando bailarinos e roupas exóticas para amplificar os seus conceitos do outro mundo. Criou a sua própria etiqueta para operar nas margens da indústria discográfica, editando prensagens rudimentares e extremamente limitadas em capas feitas à mão, o que fez dele um pioneiro das editoras independentes de espírito “faça você mesmo”».

Needs agradece no seu texto a John F. Szwed, mas também ao visionário activista John Sinclair, manager dos MC5 (grupo que chegou a partilhar palcos com Sun Ra), fundador do White Panther Party e vítima das perseguições do FBI que inspiraram John Lennon a dedicar-lhe uma canção.

Portas abertas

De certa maneira, o jornalista estabelece ligações – pontes… – entre a arte, mas também a prática «empresarial», de Sun Ra e muito do que a música viria a conhecer mais tarde: o aspecto libertário da sua música, a sua feroz independência e o respeito absoluto pela sua própria visão artística mantiveram-no na margem da indústria em que começou a mover-se ainda nos anos 1930, mas também lhe asseguraram o respeito das gerações que lhe sucederam.

E não apenas no meio do jazz. Sinclar abriu a porta para um imensa minoria de “outsiders” rock, de George Clinton dos Parliament/Funkadelic a Thurston Moore dos Sonic Youth, que identificaram em Sun Ra uma fonte de inesgotável inspiração. Como escreve Needs, citando John Sinclair: «Ele era um individuo complexo; homem, mito, extraterrestre e anjo. Sun Ra era o irmão de outro planeta.» O «outro planeta» aqui bem podia ser o do jazz para os habitantes do mundo do rock.

Para clarificar a fantástica viagem de Ra, ou, citando o título deste lançamento, a sua «odisseia no espaço», Kris Needs dividiu esta compilação em três partes distintas: “Pre-Flight” é o título do primeiro CD, que reúne material do arranque da carreira de Sun Ra. As datas concentram-se, sobretudo, nos anos 1940 e 50, mas inclui-se igualmente a primeira composição gravada de Ra, “Chocolate Avenue”, que Clarence Williams e a sua orquestra registaram em 1933.

Há temas em que Sun Ra surge a tocar piano para sessões de outros artistas e outros em que é o arranjador de serviço, como acontece em várias das peças de Red Saunders e Joe Williams aqui incluídas.

O segundo CD tem por título “Lift-Off”e dirige as atenções para a segunda metade dos anos 50 e os primeiros álbuns que Sun Ra editou sob o seu próprio nome, como “Jazz by Sun Ra” (lançado em 1956 na Transition de Tom Wilson, produtor que uma década depois haveria de trabalhar no primeiro álbum dos Velvet Underground) e “Super Sonic Jazz”. Inclui-se igualmente material de “Sun Ra Visits Planet Earth”,de 1966, e “Sound of Joy”,de 1968.

O choque do futuro

Sun Ra com alguns membros da sua Arkestra

O terceiro elemento do tríptico que compõe “A Space Odyssey”subtrai o título a um livro de Alvin Toffler, “Future Shock” (que também inspirou Herbie Hancock e os pioneiros da cena techno de Detroit) e reúne material da transição da década de 50 para a de 60, apoiando-se para isso em singles lançados na Saturn e nos álbuns “Jazz in Silhouette”,de 1959, e “The Futuristic Sounds of Sun Ra”, de 1962.

A proeza de Kris Needs está em proporcionar-nos um mapa anotado que nos permite encontrar as raízes de Sun Ra, os labirintos onde se formou o seu complexo pensamento musical e o espaço em que firmou a sua identidade artística. Do swing das “big bands “ao R&B e dos grupos vocais dos anos 1950 aos primeiros voos interplanetários da Arkestra vai a distância de um génio que criou o seu próprio espaço de acção. Um espaço estético, mas igualmente filosófico e político, erguido a esforço numa época em que as leis Jim Crow ainda imperavam.

No final dos anos 40, Ra pagava as contas enquanto fazia “sets” de 12 horas em clubes de “striptease” de Chicago pertencentes à máfia, onde era obrigado a tocar por trás de uma cortina porque homens negros não podiam ver mulheres brancas despidas. Nem mesmo “strippers”. Foi desse mundo que Sun Ra escapou criando toda a mitologia espacial que o rodeou até ao final da sua vida.

Na verdade, o líder da Arkestra, tal como citado por Needs, queria apenas «tentar que as pessoas gostassem de formas mais elevadas de música». A missão de Sun Ra, no espaço interior das gerações que se sucederam após a década de 60, foi claramente bem-sucedida e a sua obra continua a inspirar admiração e a ser merecedora de estudo. Um estudo que bem pode ser iniciado com “A Space Odyssey”, uma excelente porta de entrada para o complexo labirinto da sua discografia. Façam favor…

 

Para saber mais

www.fantasticvoyagemusic.com/a-space-odyssey-from-birmingham-to-the-big-apple-the-quest-begins/

www.elrarecords.com/

www.missioncreep.com/mw/sunra.html

www.the-temple.net/sunradisco/

 

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