Charles Gayle (1939-2023)
Morreu Charles Gayle. Tinha 84 anos de idade. O multi-instrumentista (conhecido sobretudo como saxofonista, mas também pianista, clarinetista baixo, contrabaixista e percussionista), associado sobretudo ao free jazz, ganhou destaque na década de 1990 após décadas na obscuridade. Charles Gayle nasceu em Buffalo, Nova Iorque. Uma parte significativa da sua vida não é bem conhecida, devido à relutância que manifestava em falar sobre si próprio em entrevistas. Ensinou música durante um breve período na Universidade de Buffalo antes de se mudar para a Big Apple no início dos anos 1970. Elegia como referências fundamentais Charlie Parker e Art Tatum, mas não esquecia Coleman Hawkins, Dexter Gordon, Clifford Brown, John Coltrane ou as big bands de Count Basie e Duke Ellington.
Gayle viveu na condição de sem-abrigo durante cerca de duas décadas, tocando saxofone nas esquinas e nas plataformas do metro de Nova Iorque. E essa foi uma decisão que tomou de forma consciente: «Tive que abandonar a minha história, a minha vida, tudo teve que parar ali mesmo; se sobrevivermos a isso, ótimo, se não, não sobrevivemos. Não posso pagar o aluguer, os biscates, os quartinhos, e tudo o mais, não!» Quando ficou na rua pela primeira vez, não imaginou durante quanto tempo se manteria nessa condição. «Muitas vezes senti que tocar não era suficiente para mim, especialmente desde que estive na rua», explicou Gayle a James Lindbloom da revista online Perfect Sound Forever.
No final da década de 1980, Gayle adquiriu reconhecimento através de dois álbuns gravados numa semana e lançados pela editora sueca Silkheart: “Always Born” e “Homeless”. Herdeiro de uma estética na qual se filiavam músicos como Albert Ayler ou Archie Shepp, tornou-se desde então uma figura relevante no free jazz, gravando para editoras como Black Saint, Knitting Factory Records, FMP e a portuguesa Clean Feed (o álbum “Shout”, com o contrabaixista Sirone e o baterista Gerald Cleaver, foi lançado em 2005; no ano seguinte chegou "Consider the Lilies", desta feita com Hilliard Greene no contrabaixo e Jay Rosen na bateria). Gayle voltaria a ensinar música, no Bennington College. Embora tenha estabelecido a sua reputação principalmente como saxofonista tenor, a partir de certo momento da sua carreira voltou-se cada vez mais para outros instrumentos, nomeadamente o piano (que foi, efetivamente, o seu instrumento original) e o saxofone alto.
A música de Charles Gayle era fortemente espiritual e inspirada em passagens bíblicas, tendo dedicado vários álbuns a Deus. Isto não terá sido alheio ao facto de a sua infância ter sido muito marcada pela religião e suas raízes musicais remontarem ao gospel e aos coros das igrejas negras norte-americanas. Não sem alguma controvérsia à mistura, era seu hábito incluir longos discursos nos concertos, abordando as suas crenças políticas e religiosas: «Compreendo que quando começas a falar sobre fé ou religião, eles querem que guardes isso numa caixa, mas não vou fazer isso. Não porque estou a aproveitar o facto de ser músico, sou o mesmo em todos os lugares e as pessoas têm que entender isso», disse em entrevista à revista Cadence. Atuou também algumas vezes como mimo, encarnando o personagem Streets. «Streets, the Clown, significa para mim, em primeiro lugar, uma libertação do Charles. Não sou bom em ser o centro das atenções... É uma libertação do Charles, mesmo sendo eu no palco, sou uma pessoa diferente», sublinhou na mesma entrevista.
O seu álbum mais celebrado será porventura “Touchin' on Trane” (FMP) com o contrabaixista William Parker e o bateria Rashied Ali (baterista de Coltrane na fase derradeira da carreira deste), gravado em 1991 e lançado três anos depois. Mas outros álbuns merecem que a eles regressemos: “Repent” (1992), “Consecration” (1993), “Kingdom Come” (1994) ou “Daily Bread” (1998). Tocou também outras luminárias do jazz, e não só, como Cecil Taylor, Sunny Murray, Billy Bang e Henry Rollins. Em 2001, gravou um álbum intitulado “Jazz Solo Piano”, uma contundente resposta aos críticos que afirmam que os músicos de free jazz não podem tocar bebop. Em 2006, Gayle lançou um segundo álbum de piano solo, desta vez com material original, intitulado “Time Zones”.
Tocou em 2003 nos Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra, no dia seguinte ao gravação de "Shout". Não caiu no goto da crítica nacional, quando por cá passou novamente em 2006, para um concerto em Matosinhos. Esteve em Portugal pela última vez em 2015, para tocar a solo em Lisboa e no Porto (reportagem da jazz.pt aqui).
«Costumava andar desde Times Square, por exemplo, até Wall Street, a tocar. Poderia regressar e nunca parar de tocar. Não pensei nisso como algo diferente do que era. Eram pessoas e eu não estava muito preocupado com o que elas pensavam. Eu estava a tocar, eu tinha que tocar.»