Lee Konitz (1927-2020): Adeus a um gigante
Morreu ontem, 15 de abril, vítima do Covid-19, o veterano saxofonista e compositor Lee Konitz, um dos músicos de referência do jazz das últimas oito décadas. Konitz era o último sobrevivente dos músicos que, com Miles Davis, participaram nas sessões de gravação do lendário “Birth of the Cool”, registo seminal para um movimento (ou abordagem sonora, como alguns preferem) que ficaria chancelado como jazz “cool”.
O seu estilo, muito característico e imediatamente reconhecível, pode ser definido por um tom particular e pela utilização de longas frases melódicas, com acentuações rítmicas irregulares, ainda que numa fase posterior tenha desenvolvido harmonias ousadas e discursos mais fragmentados, reflexo de um processo gradual que o fez gravitar para territórios mais experimentais e complexos. Nunca deixou de influenciar saxofonistas de diferentes filiações estéticas. A sua discografia é imensa e diversificada.
Leon “Lee” Konitz nasceu a 13 de outubro de 1927, em Chicago, filho de pais judeus de ascendência austríaca e russa. Teve os primeiros contactos com um clarinete quando tinha 11 anos, depois de escutar na rádio a orquestra de Benny Goodman. Antes de aprender os “clássicos”, o jovem Lee já improvisava. Mais tarde, trocaria o clarinete pelo saxofone tenor e este pelo alto, instrumento em que se viria a notabilizar.
Frequentou a Universidade Roosevelt, em Chicago, tendo iniciado a carreira profissional em 1945, integrando a orquestra de Teddy Powell, na qual substituiu Charlie Ventura. Após o desmembramento desta formação, tocou com o clarinetista e maestro Jerry Wald. No ano seguinte, deu-se um acontecimento que viria a ser decisivo para todo o seu percurso posterior: conheceu o pianista, compositor e pedagogo Lennie Tristano, com quem estudou e trabalhou proximamente (o sexteto de Tristano é uma das formações mais decisivas da história do jazz, apesar de comummente subvalorizada). Reunir-se-ia por diversas vezes com Tristano e outros dos seus discípulos, como Warne Marsh, em especial no disco “Live at the Half Note”, onde aos dois saxofonistas se juntou uma sublime secção rítmica, constituída pelo pianista Bill Evans, o contrabaixista Jimmy Garrison e o baterista Paul Motian.
Passou depois, e com significativo contributo, pela orquestra de Claude Thornhill (1947-1948). Depois de se fixar em Nova Iorque, integrou o grupo de Miles Davis, com quem viria a gravar em 1949 e 1950 as peças compiladas em “Birth of the Cool” (Capitol, 1950), disco absolutamente essencial para a história do jazz. A sua estreia em sessões em nome próprio aconteceu também em 1949, com um conjunto de peças que reuniu no álbum “Subconscious-Lee”, editado em 1955 pela Prestige. Teve ensejo de trabalhar com Goodman, mas recusou, decisão de que viria mais tarde a arrepender-se.
Konitz era amigo de Charlie Parker, que o apoiou no dia em que o seu filho nasceu em Seattle e ele ficou retido em Nova Iorque. Foi um dos poucos saxofonistas alto da história do jazz a não ser esmagado pela comparação com Parker. Gravou e andou em digressão com a orquestra de Stan Kenton (1952-1953), não tendo deixado de gravar na condição de líder durante esse período. Gravou mais tarde em trio, com o contrabaixista Sonny Dallas e o baterista Elvin Jones, o histórico “Motion” (Verve, 1961), uma sessão de “standards” em que deu azo aos seus fraseios pouco convencionais.
Em 1967 gravou “The Lee Konitz Duets” (Milestone, 1968), um conjunto de célebres duetos que revisitam criativamente várias referências da história do género. Liderou diferentes formações ao longo dos anos, de trio a noneto. Com este último, registou o excelente “Yes Yes Nonet” (SteepleChase, 1979). Visitava regularmente a Europa, onde gravou abundantemente.
Contribuiu para a banda sonora do filme “Desperate Characters” (1971), de Frank D. Gilroy, com Shirley MacLaine. Quatro anos depois lançou “Lone-Lee” (SteepleChase), gravado na Dinamarca no ano anterior, notável testemunho da riqueza do seu som. Em 1981, tocou no Festival de Jazz de Woodstock, dedicado à celebração do décimo aniversário do Creative Music Studio, fundado por Karl Berger, Ingrid Sertso e Ornette Coleman. Adotando um estilo que admitia cada vez mais liberdades, sem prescindir de um lastro de décadas, participou em Londres, em 1987, num festival organizado pelo guitarrista Derek Bailey. Daí resultou um disco, “Once” (Incus, 1989), em que, para além dele e de Bailey, tocam Carlos “Zíngaro”, Barre Phillips, Tristan Honsinger, Steve Noble e o também recentemente falecido Richard Teitelbaum.
Em meados dos anos 1990, gravou ao vivo, em trio, com Brad Mehldau e Charlie Haden o notável “Alone Togheter”, exponenciando clássicos como o tema-título, “What is This Thing Called Love” e “Cherokee”. Em agosto de 2012, tocou no clube Blue Note na nova-iorquina Greenwich Village como parte dos Enfants Terribles, formação que incluiu Bill Frisell, Gary Peacock e Joey Baron. Poucos dias após o seu 87.º aniversário, em 2014, tocou em três noites no Cafe Stritch em São José, Califórnia, com o trio de Jeff Denson, improvisando à volta dos seus “standards” favoritos. O seu derradeiro concerto aconteceu no dia em que completou 92 anos.
Lee Konitz tocou por diversas vezes em Portugal, designadamente nos festivais Cascais Jazz e Guimarães Jazz. Em 2006, iniciou-se uma colaboração entre Konitz e a Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM), que deu fruto saboroso no álbum “Portology”, com Ohad Talmor, no qual participaram também o guitarrista André Fernandes e o baterista Mário Barreiros. Essa colaboração levou a mais relevante das “big bands” nacionais a estrear-se em Nova Iorque, subindo inclusivamente ao palco do Carnegie Hall. No dia em que fez 84 anos, o saxofonista atuou com a OJM na portuense Casa da Música. Fernandes tocou também com Konitz no seu New Nonet e com o trio Minsarah.
Lee Konitz morreu ontem, aos 92 anos, no Lenox Hill Hospital, em Nova Iorque, na sequência de complicações de uma pneumonia causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2. (António Branco)