Daunik Lazro
Os discos favoritos de Daunik Lazro
O histórico saxofonista Daunik Lazro é uma figura central na improvisação europeia, continua em plena atividade e acaba de editar três discos novos. O saxofonista esteve à conversa com o crítico David Cristol, partilhando os seus discos preferidos.
Nascido em 1945, Daunik Lazro iniciou-se no jazz e no free jazz em França (e em Portugal, ao lado de Saheb Sarbib e Carlos “Zíngaro”) em meados dos anos 70, sob a influência dos mestres americanos, antes de abraçar a música improvisada nos anos 80. No seu icónico álbum “Sweet Zee” (1985), ouvimo-lo ao lado de Raymond Boni, Joëlle Léandre e “Zíngaro” (um dos seus parceiros preferidos), além dos já falecidos Jean-Jacques Avenel, Toshinori Kondo e Tristan Honsinger. A sua discografia, exibe uma grande diversidade (de músicos, de configurações instrumentais, de resultados estéticos), sempre oscilou entre dois pólos: o free jazz e a improvisação (seja livre ou precedida de um “conceito”). Os grupos A Pride of Lions (com com Joe McPhee, Joshua Abrams, Guillaume Séguron, Chad Taylor) e Sonoris Causa (e a sua escolha de instrumentos no registo grave) são bem exemplificativos destes dois polos. Lazro continua muito ativo e este ano acaba de editar três registos, com duas novidades e um registo histórico: Sophie Agnel / Olivier Benoît / Daunik Lazro: “Gargorium” (FOU Records, 2023); Jean-Jacques Avenel / Siegfried Kessler / Daunik Lazro: “Ecstatic Jazz – Crypte des Franciscains, Béziers, 12 février 1982” (FOU Records, 2023); Daunik Lazro / Benjamin Duboc / Mathieu Bec: “Standards Combustion” (Dark Tree, 2023). Estes são os seus discos favoritos.
The Quintet: “Jazz at Massey Hall”
(Debut, 1953)
Era um jazz que eu não conseguia apreender “intelectualmente”, mas que me cativava, e depressa partilhei o entusiasmo do público pelos solos vertiginosos do saxofonista e do trompetista. Até então, Sidney Bechet, Armstrong, Lionel Hampton, Ray Charles... tinham sido o epítome do jazz para o jovem adolescente que eu era. Estava a descobrir um novo prazer ao ouvir estas melodias acrobáticas, estes ritmos menos óbvios, há algo de misterioso e desconhecido neles.
Ornette Coleman: “Change of the Century”
(Atlantic, 1960)
Uma fórmula vencedora: saxofone, trompete, contrabaixo, bateria. O piano, o instrumento que impôs a harmonia bop, desapareceu, daí a maior liberdade tonal. Temas sedutores, swing constante, solos inventivos, um contrabaixo livre de tempo, prazer intacto. A inclinação “natural” do jazz para uma maior liberdade.
John Coltrane: “Live at the Village Vanguard”
(Impulse!, 1962)
Já gostava de Coltrane em “Kind of Blue”, “Giant Steps” e “Coltrane Jazz”. No lado A, “Spiritual” é encantador. Mas o lado B, “Chasin' the Trane”, mergulha-me na estupefação. Este solo insano de 16 minutos revela um universo diferente e a certeza de que a improvisação é o coração e a essência do jazz. Como as ragas indianas, todos os irmãos Ravi Shankar, Bismillah Khan e Dagar que eu estava a ouvir ao mesmo tempo. O saxofone de Coltrane foi um bónus, mas isso já o entenderei mais tarde. E as raízes do blues como base, para a autenticidade do sentimento.
Albert Ayler: “Ghosts”
(Debut, 1965)
Demorei algum tempo a apaixonar-me pelo vibrato exacerbado do saxofone, ao lado do som incisivo e denso de Coltrane. O fluxo vibratório de Sunny Murray, o contrabaixo assombrado de Peacock, Don Cherry tão maravilhoso como com Ornette. Um outro mundo do jazz estava a abrir-se. Novas sensações.
Evan Parker: “Monoceros”
(Incus, 1978)
Já havia solos de Braxton, Roscoe Mitchell e Lacy, mas fico espantado quando ouço estes solos de saxofone soprano. É jazz e depois não é. É improvisação que soa “de alguma forma” composta. Nestes loops circulares, penso ouvir motivos africanos ou do Oriente, as launeddas da Sardenha ou as flautas do Rajastão. Uma espécie de swing interestelar! No tenor, Evan já mostrou noutros discos que é um descendente de Coltrane.
Vários autores: “Musiques Banda – République Centrafricaine”
(Vogue, 1971)
De todos os maravilhosos discos de música tradicional de África, Índia e Extremo Oriente, este será talvez aquele que mais ouvi. É de lá que vêm as bandas de trompetes e o jazz de Nova Orleães. Os blues não estão muito longe dos coros de crianças e mulheres. Os ritmos “bruxescos” dão lugar ao swing.
Olivier Messiaen “Et Exspecto Resurrectionem Mortuorum”
(Erato, 1967)
Havia Bartok, Varèse, Scelsi e por aí fora. Não é a fé deste compositor que me atrai, mais do que a de Coltrane ou a de Ayler, mas a luxuriância das cores orquestrais, o uso hábil de escalas e ritmos não ocidentais. Fascinante. Toda a minha vida estarei a trabalhar nos “modos com transposição limitada” de Messiaen.
Richard Teitelbaum / Carlos “Zingaro”: “The Sea Between”
(Victo, 1993)
Improvisações (premeditadas ou não, pouco importa) para violino e aparelhos eletrónicos. O lirismo sumptuoso do violinista é ampliado por um artista que foi pioneiro no “novo” fabrico de violinos. A delicada mistura de acústica e maquinaria que tantos não conseguiram alcançar no final do século XX. Aqui, a sensibilidade e a criatividade estão maravilhosamente intactas.
Michel Doneda / Lê Quan Ninh: “Aplomb”
(Van d’œuvre, 2015)
No saxofone soprano, manter distância de Coltrane, Lacy e Evan Parker é um desafio difícil. Doneda, teimoso e rigoroso, “contenta-se” em seguir a sua voz, a que lhe é insuflada pelo instrumento, esse “oco ativo”. Com o mesmo gesto, tornou-se recetor e emissor de ondas sonoras. Inventa a sua música à escuta do mundo sensível. Os rios, as grutas e as florestas são os seus estúdios preferidos. Como solista, o meu favorito é “Solo Las Planques”, gravado em 2004.