Como sazonar um equinócio
Discos de jazz para as noites de outono
Foi-se agosto, entrou setembro. Foram-se as férias, regressam a rotina e as folhas secas. Antecipando o equinócio, lançámos o desafio aos colaboradores regulares da jazz.pt: a escolha de um disco de jazz para ouvir numa noite de outono. As propostas são diversas e surpreendentes, espelhando o mote da revista: discos de jazz, de todos os jazzes. Aqui estão eles, catorze discos para catorze noites de outono.
Keith Jarrett: “The Köln Concert”
(ECM, 1975)
Como disco para se escutar numa noite de outono, escolhi um que foi gravado... em pleno inverno. “The Köln Concert”, registo de um recital a solo de Keith Jarrett na Ópera de Colónia, em janeiro de 1975, é um milagre, ocasião em que a arte venceu Murphy. O pianista mal dormira nas noites anteriores, o piano disponível não era o que havia solicitado, o jantar chegou tarde demais. O recital começou num horário tardio para os rígidos hábitos germânicos – onze e meia da noite – o único a que os responsáveis acederam para um concerto de jazz, o primeiro de sempre na sala (esgotada). Ouve-se o murmúrio do público quando o músico cita a melodia do sinal de chamada. O que escutamos depois não cessa de comover, em qualquer estação.
António Branco
Arcana: “The Last Wave”
(DIW, 1996)
Foi John Zorn quem teve a ideia de combinar a bateria de Tony Williams com a guitarra de Derek Bailey. Pediu a Bill Laswell (baixo elétrico de oito cordas) para completar o trio. No outono de 1996, este foi o meu primeiro contacto com a música improvisada – e com Bailey. A frase «todas as composições são do trio» aumentou ainda mais a minha confusão. Fascinado, ouvi o disco até o conhecer de cor, em todos os seus desenvolvimentos e dinâmicas, entre a abstração e o ritmo. Fusão bem sucedida de várias estéticas, este álbum é marcado por uma atmosfera crepuscular, abrasiva, que conduz a um efeito paradoxal de purificação.
David Cristol
Fly (Mark Turner / Larry Grenadier / Jeff Ballard): “Sky & Country”
(ECM, 2009)
Desde que imigrei para Portugal, a transformação da vaidade em autoconfiança tem estado na minha mente mais presente do que nunca, independentemente da época do ano. É por isso que o segundo álbum do trio Fly, “Sky & Country”, que enfatiza musicalmente a combinação de diálogo e mente livre, pode iluminar numa noite sombria de outono. A igualdade é o objetivo principal do álbum, onde a intensidade rítmica e harmónica está no seu auge. O que torna o trio especial é o facto de cada um destes três músicos ultratalentosos preferir o som do coletivo ao brilho individual, mantendo quase simultaneamente o ritmo e alimentando a harmonia. Quando a vaidade dá lugar à confiança, a música, o outono e tudo fica melhor.
Eray Aytimur
Paul Desmond: “Glad To Be Unhappy”
(RCA Victor, 1965)
Não é. Mas o Outono parece uma estação de transição. A ida do sol queimante e a vinda dos dias cinzentos pede um som caseiro e reconfortante. “Glad To Be Unhappy” é um disco de canções melancólicas tocadas com um grau superior de pureza e com emoções contidas. Uma gravação que mostra bem o requinte da dupla Hall/Desmond. O som aveludado do saxofonista é como uma manta macia numa tarde fresca propícia à introspeção sobre os dias que encolhem e a vida que não estica. Para além da beleza das canções escolhidas pelo saxofonista para o disco, como “Glad To Be Unhappy” (Rodgers / Hart) que abre o disco, ou “A Taste Of Honey” (Marlow / Scott), “Any Other Time” escrita por Desmond ou “All Across the City” por Hall são também músicas maravilhosas.
Gonçalo Falcão
Rone & Orchestre National de Lyon: “L(oo)ping”
(InFiné, 2023)
Rone é um produtor de música eletrónica francês já com uma extensa carreira. Em dezembro de 2022, a Orchestre National de Lyon, conduzida pelo maestro Dirk Brossé, convidou Rone para dois concertos com temas conhecidos e inéditos da sua carreira. É um disco estranho, às vezes pop mas mais melancólico e outonal. Qualquer coisa aqui lembra-me noite, manta no sofá, caneca de chá quente. Há uma dramaturgia nesta música, uma coisa que pede imagens. Não será alheio a isto, o maestro ser um colaborador usual de Wes Anderson. Poderá ser um disco desigual. Tal como um dia de outono. Tanto pode ser sol, chuva, orquestra, beats, smoking, máquinas frias, coros quentes.
Hugo Pinto
Chet Baker: “Chet”
(Riverside, 1959)
O aconchegar lírico do trompete, acompanhado pela doce flauta de Herbie Mann, e o suave soar do saxofone de Pepper Adams, contando ainda com o terno Evans, Burrell, Chambers, Connie Kay e Philly Joe Jones. Saborear cada som, desde a base de conforto do contrabaixo de Chambers, até ao preenchimento do espaço, nas deleitosas notas de Baker. A conjugação delicada de todos os sons. O envolver de sorrateiras folhas que rodopiam em dança celestial ao encontro do pôr-do-sol à beira praia, acompanhadas pela mestria de bule de chá, servido quente em tarde de outono, sobre montes altos ao alcance das nuvens. Terna balada, introspetiva, em cintilantes teclas de piano. O saber apreciar de forma tranquila, calma, dando tempo a todos os pormenores. Relaxamento que se estende em leve descanso, envolvido pelo abraço que se acomoda eternamente em presença que se faz notar, reflexo dos desejos outonais como a revelação em “Tis Autumn”, e o anseio para a abertura de novo ciclo. Um álbum que desvenda em si mesmo, o deslumbramento da harmonia.
Isabela Abate
Mal Waldron: “Meditations”
(RCA Victor, 1972)
Transpostos a agitação e bulício do verão, os castanhos e dourados do outono trazem consigo outras tonalidades temperamentais, entre elas os blues que acossam o humor de milhões com uma boa dose de melancolia e introspeção. São também esses mesmos azuis que predominam na capa de “Meditations” de Mal Waldron, cores que transcendem o design de Keijiro Kubota para tingir profundamente a música do álbum. Gravado ao vivo no clube de jazz Dug, em Tóquio, em 1972, “Meditations” regista um conjunto de interpretações do pianista nova-iorquino testemunhadoras de algum do seu mais sublime trabalho enquanto solista. Por aqui tocam-se quer originais, quer standards, transpostos em meditações ruminativas e contemplações absortas a que não faltam ostinatos minimalistas, circularidades melódicas e improvisações inspiradas. E para completar, o sopro espiritual e a aura de reflexão que a música exala avultam as razões que tornam este “Meditations” num disco ideal para consumar esta transição sazonal. Saudosistas do verão a suspirar por uma cápsula estival podem sempre recorrer a “Summertime” para uma deliciosa viagem no tempo à anterior estação.
João Morado
Wolfgang Muthspiel: “Where the River Goes”
(ECM Records, 2018)
A natureza tem o poder de nos estimular de um modo muito especial. Eu pessoalmente no outono gosto de passear, acompanhar a mudança em primeira mão, não são apenas as cores que me atraem, mas também o peso do quotidiano que volta à cidade. Escolho este álbum porque me acompanhou o ano passado neste mesmo período. Em “Where the River Goes”, o guitarrista austríaco Wolfgang Muthspiel une forças com nomes sonantes do jazz contemporâneo, Ambrose Akinmusire no trompete, Brad Mehldau no piano, Larry Grenadier no baixo e Eric Harland na bateria, para um álbum que através da sua fluidez demonstra uma química contagiante na improvisação. O balanço entre a energia do quinteto e os momentos mais pessoais e introspetivos do guitarrista (destaco neste sentido mais introspetivo a faixa “Buenos Aires”) tornam este álbum um excelente parceiro para um bom passeio de outono.
Manuel Cabugueira
Carla Bley: “Sextet”
(Watt / ECM, 1987)
Dificilmente se irá encontrar música mais outonal do que “Lawns”, de Carla Bley: uma balada introspetiva, melancólica, hipnótica; ancorada no piano, que vai repetindo o motivo para depois se abrir lentamente. Maravilhosamente terna, “Lawns” vive num precioso ponto de equilíbrio que seduz o ouvinte. Além de “Lawns”, encontramos no disco “Sextet” de 1987 outros temas marcantes como “More Brahms”, “The Girl Who Cried Champagne” (excelente título), “Brooklyn Bridge” – tudo música cristalina, polida, típica do catálogo ECM, trabalhada por um irrepreensível sexteto. Para este disco, Carla Bley (orgão) contou com a companhia de Larry Willis (piano), Hiram Bullock (guitarra), Victor Lewis (bateria) e Don Alias (percussão), além do seu parceiro de sempre Steve Swallow (baixo elétrico). A genial compositora e arranjadora – autora de muitos outros álbuns e composições imortais, como “Ida Lupino” – nunca sai de moda nem de estação.
Nuno Catarino
Nujabes: “Metaphorical Music”
(Dimid Recordings, 2003)
A fórmula não tinha como não ser vencedora: animação japonesa e hip-hop, dois pilares da cultura pop contemporânea. O trabalho de Nujabes em “Samurai Champloo” fez dele uma referência, mesmo tendo editado apenas dois discos em vida. Mas “Metaphorical Music”, que celebrou este ano 20 de existência, não é só uma extraordinária fusão entre a batida do hip-hop e a melancolia do jazz, nem um acrescento a essa banda-sonora; é o complemento perfeito para a sensação de final que a época transmite. Em breve virá o inverno, a morte. Antes, temos a alegria dessa consciência, mono no aware impresso nos samples de gente tão díspar quanto Yusef Lateef, Miles Davis, Pharoah Sanders ou Kip Hanrahan, cuja “Make Love 2” é a base para “Beat Laments the World”, o momento mais extraordinário do álbum, espécie de delicadeza efusiva e uma ode à contemplação – que é o que a noite outonal exige.
Paulo André Cecílio
Tomasz Stanko: “Balladyna”
(ECM, 1976)
Em maio de 1994, durante o 4.º Festival de Jazz Europeu no Porto, assisti a um magistral concerto do trompetista polaco Tomasz Stanko, no Teatro Carlos Alberto. Experiência sónica que me marcou profundamente. A escolha de “Balladyna” está relacionada com essas memórias. Tocado por europeus e liderado por uma figura maior do jazz e música improvisada não idiomática, são cerca de 40 minutos impregnados de métricas fluidas (e alguns grooves), abundantes melodias compactas interpeladas por secções de improvisação e fragmentos motívicos. Passados quase 30 anos, mantém-se entre os meus discos preferidos (que são muitos).
Pedro Cravinho
Bill Evans: “You Must Believe in Spring”
(Warner Bros., 1981)
O álbum “You Must Believe in Spring” da autoria do pianista Billl Evans constitui um registo fundamental no contexto da história do jazz. A extrema elegância e sensibilidade musical aqui demonstradas pelo trio constituído por Evans, Eddie Gomez e Eliot Zigmund, aliados ao repertório meticulosamente escolhido, fazem deste registo uma companhia muito especial para uma noite de outono. Tendo sido o primeiro álbum editado após a morte do pianista em setembro de 1980, esta importante obra gravada em agosto de 1977 e editada em 1981 pela Warner Bros. Records (HS-3504) aborda temas como a morte, a ausência e a perda, e que refletem a vida conturbada do pianista e daqueles que lhe eram mais próximos, nomeadamente o contrabaixista Scott LaFaro (que faleceu num trágico acidente de automóvel), o seu irmão Harry e a sua companheira, Ellaine Schultz (que se suicidaram).
Ricardo Pinheiro
João Barradas: “Solo I”
(Nischo / Inner Circle Music, 2020)
Há qualquer coisa de profundamente litúrgico no outono, como se a cadência rítmica da estação nos voltasse para dentro e nos concedesse uns minutos de conversa baixinha, a sós, com a eternidade e com o infinito, como diria Rilke. “Solo I” do acordeonista João Barradas possui, entre outras, essa qualidade. Aqui, entre o recital e a improvisação, e sem pudor em mostrar o sotaque da sua linguagem mais pessoal, o artista consente o vislumbre da eternidade e a pontuação melódica de um infinito, o seu, em que o spleen do outono converge com a intimidade da criação sonora.
Sofia Alexandra Carvalho
Jaimie Branch: “Fly or Die Live”
(International Anthem, 2021)
O verão chega ao fim e o outono regressa, talvez com uma certa dose de melancolia e saudade dos dias quentes. Já não há tanto frenesim para sair de casa, por isso, um bom sofá e boa música podem ser grandes amigos. Da minha estante ou dos meus ficheiros digitais escolho o álbum “Fly or Die Live”, para passar uma noite de outono. Da autoria da trompetista Jamie Branch que, infelizmente, nos deixou há cerca de um ano. Foi gravado ao vivo em 2020, em Zurique, e foi editado pela International Anthem. Este álbum é desafiador para quem o escuta, marcante e irrequieto. Vem de um mundo irreverente, que questiona e não permite, em momento algum, que a porta se abra à indiferença.
Sofia Rajado