Editoras com história(s): BYG Records
Sobre três maiúsculas progressivas
Depois de ter olhado para a história das editoras Blue Note, Impulse!, Clef e Norgran e ESP-Disk, Sofia Alexandra Carvalho aponta o foco a mais uma editora essencial da história do free jazz. Na rubrica “Editoras com história(s)”, olhamos desta vez para a lendária BYG.
Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
Herberto Helder
A ambiguidade da linguagem surge como “uma chama” em que floresce, indomesticável, o espírito do tempo. BYG pode denotar a qualidade da grandeza e, neste caso, assim o é; pode, sem prejuízo do precedente, descrever um mote, que assim se fixa “Beautiful Young Generation”; pode, igualmente, designar as iniciais de três apelidos, que contribuíram para uma experiência musical, artística e político-cultural intensa: Fernand Boruso, Jean-Luc Young e Jean Georgakarakos foram as três cabeças visionárias da BYG Records, editora cujas primícias datam de 1967.
Inicialmente concebida como um projeto de divulgação e promoção de free jazz, de música experimental e de rock psicadélico e progressivo, entre outras músicas avant-garde, a BYG procurou dinamizar a atmosfera musical junto das populações estudantis em França. Após a revolta de maio de 68, Boruso deixa a editora para se dedicar a projetos pessoais, deixando como legado o logótipo da editora: um pequeno buda que preservava na sua mesa, como uma espécie de talismã. Young e Georgakarakos dedicaram-se aos recursos fonográficos e fundaram uma loja de discos, com sede em cidades universitárias francesas, procurando enfrentar, com arte e engenho, uma França turbulenta.
O primeiro gesto editorial foi licenciar o catálogo da Savoy Jazz, estreando-se com um programa de reedições. No entanto, foi justamente a partir do auspicioso rendez-vous com Claude Delcloo (1943-1992), produtor, baterista de jazz de The Full Moon Ensemble[1] e editor da “Actuel”, uma revista francesa underground e avant-garde, que contou com a colaboração do jornalista e escritor francês Jean-François Bizot (1944-2007), que a editora contribuiu para a explosão mundial do free jazz.
Em 1968, sob o governo de Nixon, dá-se uma espécie de êxodo de artistas e músicos americanos, que procuram na Europa uma atmosfera em que pudessem exercer sem freios a sua arte. A improvisação surgia como a abordagem perfeita para a transcensão das regras melódicas e rítmicas. Esta nova forma de expressão artística, que consagra multímodas estéticas e linguagens, torna-se, assim, uma espécie de manifesto do espírito artístico, sobretudo, nos anos 60.
Ora, sabendo da realização de um festival de música pan-africano em Argel, em julho de 1969, Archie Sheep, Clifford Thornton, Grachan Moncur III, Sunny Murray, Dave Burrell, Alan Silva, entre outros, abandonam os Estados Unidos da América rumo à liberdade artística. Após o desfecho do festival, este grupo de músicos de vanguarda foi convidado pela “Actuel” e pela BYG Records, que havia adquirido recentemente a revista, para tocar em Paris. Neste momento, Claude Delcloo começa o seu trabalho de A&R para a BYG, tornando-se uma ponte privilegiada de contactos com músicos de free jazz. Ainda nesta altura, Jacques Bisceglia (1940-2013), fotógrafo da “Actuel” durante o festival, é contratado para trazer de volta o conjunto prodigioso de músicos.
A revista transforma-se, assim, num “torso dobrado pela música”, dando lugar ao memorável festival homónimo: “Actuel”, inicialmente programado para acontecer em Paris, foi um festival concebido com um line-up ímpar dedicado ao free jazz, ao rock e à vanguarda. O festival contou com as presenças de artistas e bandas consagradas (Pink Floyd, Soft Machine, Yes, The Nice e Captain Beefheart), mas também com free jazzers (Don Cherry, The Art Ensemble Of Chicago, Joachim Kühn, Archie Shepp, entre outros), alguns artistas da casa (Alan Jack, Ame Son, entre outros) e noise makers (Musica Elettronica Viva, Terry Riley, entre outros).
Porém, a grandiosidade do festival, com capacidade para 50.000 pessoas, assustou as autoridades francesas, tendo sido realizado em Amougies (Bélgica). Acerca da intrincada logística do Festival, fruto da mudança de localização, oiça-se um dos seus cofundadores, Jean-Luc Young:
«We managed this with the help of lots of people, very willing. Everyone pitched in, providers, festival goers, locals. A circus lent us the big tent intended for the stage and we rented the rest in Belgium. Several small companies took care of the sound. We also set up a hospital under one of the tents which could also have served as a stage, with real doctors and others who claimed to be (laugh). Jean and I were determined, we were all determined to do it – a collective symbiosis was created around us - this is where it really started. I remember; I had to go back and forth between France and Belgium in a very dodgy helicopter to settle last administrative obligations and I saw all these cars, thousands, all bounded for Amougies – TV in France was reporting on this red line, formed by the rear of the cars that lit up in the night – it was madness. [...] On the whole festival, I think 150,000 people came to Amougies. There were even babies who were born in the hospital!»
De 24 a 28 de outubro de 1969, reuniram-se, sob os auspícios de uma tenda de circo gigante, quarenta e oito grupos de rock progressivo, pop, avant-garde e free jazz. Frank Zappa e Pierre Lattes assumiram a função de maîtres des cérémonies. A atmosfera vibrátil e contagiante do “Actuel” encontrava-se não apenas no palco, que contou com a improvisação de virtuosos como Steve Lacey, Alan Silva, Don Cherry, John Surman e Chris MacGregor, e ainda de Aynsley Dunbar Retaliation e Dave Reeves, mas também nas pequenas ruas de Amougies, que foram agitadas pela figura controversa do libertário e ecologista André Dupont[2], mais conhecido por Aguigui Mouna (1911-1999). Este “Diógenes moderno” instigava os transeuntes e os frequentadores do “Café de la Fanfare”, convocando-os a pensar acerca da condição humana. Algumas das imagens deste mítico festival podem ser encontradas na página oficial da editora, que apresenta um belíssimo registo fotográfico a preto e branco da autoria de Guy Le Querrec (1941), bem como no documentário intitulado “Music Power”, dirigido por Jérôme Laperrousaz (1948) e Jean-Noël Roy (1927-2020).
No verão de 1969, a BYG convida um conjunto excecional de artistas para sessões no studio Davout, espaço em que foram gravados álbuns míticos, tais como: “Fodder on My Wings” de Nina Simone; “Cannabis” de Serge Gainsbourg; “Pornography” dos The Cure; “Ocean Rain” dos Echo & the Bunnymen; “Big Thing” dos Duran Duran; “Naked” dos Talking Heads, entre outros.
Dessa frenética série de sessões de gravação no studio Davout saem a lume, a título de exemplo, “Mu” First part [BYG Actuel 1] e “Mu” Second part [BYG Actuel 31] de Don Cherry; “A Jackson in your House” [BYG Actuel 2] de The Art Ensemble of Chicago; “Homage to Africa” [BYG Actuel 3] de Sunny Murray; “Yasmina, a Black Woman” [BYG Actuel 4] de Archie Sheep; “Magick Brother” de Daevid Allen e Gilli Smyth/Gong [BYG Actuel 5]; “africanasia” de Claude Delcloo e Arthur Jones [BYG Actuel 6]; “Stigmates” [BYG Actuel 7] de Michel Puig; “Aquariana” de Burton Greene Ensemble [BYG Actuel 8]; Anthony Braxton, entre outros. Aliás, Jimmy Lyons [BYG Actuel 9] e Andrew Cyrille [BYG Actuel 16], após uma série de concertos com Cecil Taylor na prestigiosa Fondation Marguerite et Aimé Maeght[3], juntaram-se à aventura editorial e muitos outros artistas, após o término das sessões, aguardavam com ânsia o auspicioso festival “Actuel”, em outubro de 1969, organizado pela BYG.
Na verdade, estas sessões de gravação constituem a maior parte do acervo da BYG Records, que contempla 52 LPs lançados entre 1969 e 1972, cujo design elegante, forte e sofisticado da autoria de Claude Caudron se tornou imediatamente reconhecido como a série Actuel. Esta série, votada ao crème de la crème dos músicos experimentais e do free jazz europeu e americano, foi concebida de modo inovador: capa dobrável e refinada e, no verso, uma fotografia a cores em tamanho real. Oiçam-se, a este propósito, “Luna Surface” de Alan Silva e a sua “Celestrial Communication Orchestra” [BYG Actuel 12]; “Ramblin’” de Paul Bley [BYG Actuel 13]; Acting Trio [BYG Actuel 14]; “Sound of feelings” de Joachim Kühn [BYG Actuel 17]; “Blasé” de Archie Sheep [BYG Actuel 18]; “Echo” de Dave Burrell [BYG Actuel 20]; “Love Rejoice” de Kenneth Terroade [BYG Actuel 22]; “Ketchaoua” de Clifford Thornton [BYG Actuel 23]; “Catalyse” de Ame Son [BYG Actuel 24]; “Germ” de Terry Riley e P. Mariétan [BYG Actuel 27]; “La vie bohême” de Dave Burrell [BYG Actuel 30]; “Aco dei de madrugada (One morning I waked up very early)” de Grachan Moncur III [BYG Actuel 33]; “Leave the city” de Musica Elettronica Viva [BYG Actuel 35]; “One for John” de Frank Wright [BYG Actuel 36]; “The Solar-Myth Approach (Vol.1 e Vol. 2) de Sun Ra And His Solar-Myth Arkestra [BYG Actuel 40; BYG Actuel 41], entre outros.
Uma editora deste calibre apresenta, assim, um catálogo eclético que, partindo de uma paleta de artistas de jazz de vanguarda do final dos anos 60 e início dos anos 70, aposta numa plêiade de edições que passam quer pelo rock progressivo e blues rock, quer pela música eletrónica experimental e músicos subversivos. Exemplos disto mesmo podem ainda ser encontrados em artistas como Daevid Allen, Aynsley Dunbar, Alice, “The Sound Pool” [BYG Actuel 26] de Musica Elettronica Viva, datado de 1970, Freedom, Coeur Magique, “L'Incendie” de Areski & Brigitte Fontaine, datado de 1974. A BYG editou, ainda, uma série de singles em vinil de 45 rpm que mesclava a arte e a pop, com um design charmoso e cativante, a saber: “Civilization” de Alan Jack; “I’ll Take The Next Train” de Tribu e “Je veux juste dire” de Ame Son. O tom audaz e inovador das edições BYG tornaram esta editora independente um marco na história musical.
Em 1973, Jean-Luc Young cria a Charly Records e, alguns anos depois, Jean Georgakarakos cria a Celluloid Records. Do encontro de três cabeças, com um torso musical que ficou inscrito na história dos festivais, a BYG deixa-nos um catálogo de culto no free jazz e um espólio de vanguarda audacioso para o espírito do tempo e, por isso, intemporal. Três cabeças, um torso e espírito para criar: um organismo perfeito.
[1] Este álbum reúne uma combinação surpreendente de free jazz, poesia francesa, sob a égide de Bob Kaufman (1925-1986), aka “o Rimbaud americano”, e uma forte componente crítica política. Leia-se, a título exemplar, o poema “Believe, Believe” extraído de “Cranial Guitar” (1996).
[2] A propósito desta figura controversa, veja-se o que diz Jean-Luc Young em entrevista na página oficial da editora: “Yes, I met him. We talked and it didn’t go very well at the beginning. We didn’t understand each other. I didn’t get what he was defending – his words were depressing. To me, it went against the ambient positivity that we were experiencing. On his side, he didn’t really get why people like us organized this kind of event. Who knows why? Anyway, we quickly made peace and he enjoyed the festival until the very last moment.”
[3] Inaugurada em julho de 1964, sob a égide do ministro da Cultura de Charles de Gaulle, André Malraux (1901-1976), a fundação tornou-se a primeira instituição de arte privada em França. Tendo como modelos inspiradores a Solomon R. Guggenheim Foundation, a Barnes Collection e a Phillips Collection, visitadas pelo casal Maeght, editores e marchands d’art, durante as suas frequentes viagens aos EUA, a fundação Maeght reúne obras dos mais imponentes artistas do século XX, entre os quais: Georges Braque, Joan Miró e Alberto Giacometti.