Editoras com história(s): ESP-Disk
Sobre um jogo inesperado: turn on, tune in & splash
Depois de ter olhado para a história das editoras Blue Note, Impulse! e Clef e Norgran, Sofia Alexandra Carvalho aponta agora o foco a uma editora fundamental da história do jazz mais aventureiro. Na rubrica “Editoras com história(s)”, olhamos desta vez para a lendária ESP-Disk.
Quero dizer: joga. Provoca o acaso,
suscita o fortuito, colhe o inesperado
mesmo dentro do conhecido,
não rejeita o inexplicável,
o ambíguo, o incompreensível.
Ana Hatherly
O erro, o fortuito, o acaso, o inesperado, o incompreensível, a sabotagem, entre outros jogos inesperados, surgem como vasos comunicantes da criação artística. A este propósito, quem não se lembra da entrevista do cineasta sueco Ingmar Bergman à BBC, datada de 1978, em que o autor reforça que o universo em que vivemos é uma sabotagem da realidade e a arte, ao invés, a expansão perfeita e detalhada da realidade? Mais, quem não se recorda da técnica lúdica e surreal do cadavre-exquis a beber odres de vinho novo em Paris, Lisboa e outros arredores? E quem esquecerá a exortação de Sun Ra a Michael D. Anderson, expressa nestes termos: «Don’t play correctly; you gotta learn to play it incorrectly.»? (Weiss, 2012: 235)[1]
Pois bem: se um certo tipo de cinema ou de poesia não prescinde de «modificações acidentais» e «ainda um reino de boninas», como lembra Manuel de Castro, poder-se-á afirmar que um certo tipo de música exige um espaço de formas em movimento, como resgatado por Alan Sondheim (Cf. Ibid.: 124), em que o acidente e o acaso surgem como mestres de cerimónia. Isto mesmo perpassa uma das experiências mais excecionais do mundo editorial do jazz: ESP-Disk e o seu criador Bernard Stollman.
Filho primogénito de David Stollman, um emigrante judeu, com um gosto genuíno pela improvisação e pela harmonia, e de Julia Friedman, nascida numa pequena cidade na fronteira entre a Lituânia e a Polónia, Bernard Stollman (1929-2015) iniciou o seu percurso profissional na área da advocacia. No entanto, cedo se revelou um advogado peculiar e heterodoxo, talvez influenciado pelos seus pais, descritos por Stollman, assim: «She was the business head of the family, a brilliant woman, pragmatic, and a Taurus. My father was an artist, and all we wanted to do was to sing.» (Weiss, 2012: 23)
No seio de uma família judaica progressista, Stollman não só herdou o sentido mercuriano de seus astutos pais, como também se tornou uma espécie de pai substituto dos seus seis irmãos, fruto das constantes viagens comerciais de seus progenitores. Dos sete aos treze anos, Stollman usufrui de lições de piano semanais ministradas pela filha de Charles Hudson, um capitão que, numa das suas muitas viagens, casa com uma mulher chinesa. A atmosfera do salão dos Hudson, pródiga em objetos artísticos do Oriente, influenciou profundamente a visão musical de Stollman. (cf. Weiss, 2012: 7) No entanto, a afinidade com as artes e, sobretudo, com a música surge como um legado paterno, entre outros dois modelos de eleição, senão leia-se: «One influence was my father, who loved to improvise and harmonize. I grew up with that. During the Second World War, my parents often drove the sixty miles from Plattsburgh to Montreal in their 1941 Buick Special sedan, with their older children crowded in the back seat. My father would sing as he drove, and my mother would harmonize with him. I approached music with the tacit question, Is this art? Entertainment is something else. Bernard Berenson, the art critic, and Sol Hurok, the impresario, were among my models. I was footloose, and I had no wife or children, and my legacy after a lifetime of commitment would be this body of work that highlighted and spurred on the careers of a certain community of composers.» (Weiss, 2012: 25-26)
Aos doze anos, Stollman assume funções de organista na sinagoga de Plattsburgh e, em 1945, decide ir morar para Forest Hills, Queens, durante oito meses, na companhia de um dos seus irmãos, numa casa comprada pelos seus pais. Durante este ano decisivo, Stollman diz ter observado a Segunda Guerra Mundial através da lente de publicações periódicas, consideradas de esquerda radical, tais como “New York Post” e “PM”. Já nesta altura, começa a revelar uma predileção quer pela literatura francesa do séc. XIX quer pelos contos de Chaucer, bem como um inequívoco interesse pelas áreas de antropologia, sociologia e psicologia.
O perfil de agitador começa, então, a delinear-se. Um dos episódios biográficos que reforça este aspeto temperamental irrompe durante o serviço militar de Stollman em Augusta, Georgia. Ao afirmar que gostaria que um barbeiro negro lhe aparasse o cabelo, Stollman depara-se com atos de segregação. Redige, então, um relatório, intitulado “Integration of Camp Gordon Barbershops: Report and Recommendations”, e distribui-o pelo Campo, por força da sua convicção. Espírito inquieto e questionador, Stollman pede para continuar a cumprir serviço militar em Paris, desejando ingressar em Direito. Em Paris, cruza-se com Bertrand Russel, com o seu séquito de admiradores, e conhece Henry Miller, que caracteriza como sendo simultaneamente brusco, mas civilizado, e Richard Wright, como sendo uma pessoa cordial.
Em 1960, Stollman trabalha como assistente pro bono de Florynce Kennedy (1916-2000), advogada e ativista, e, neste contexto, conhece Doris Parker, a viúva de Charlie Parker, e Louis McKay, o viúvo de Billie Holiday, artistas acerca dos quais nunca tinha ouvido falar. Note-se que a sua primeira vitória jurídica foi a favor dos baixistas Art Davis e Reggie Workman, tendo, em seguida, recuperado de Norman Granz os direitos de copyright de Dizzy Gillespie, com o qual trabalhou cerca de dois anos.
Nesse mesmo ano, emprega-se na “Esperanto League of North America”, desenvolvendo um especial interesse pelo Esperanto. Este aspeto não é de somenos importância, pois não só o seu primeiro exercício editorial assenta numa experiência sonora através da poesia, monólogos e canções em esperanto, com a saída de “Ni Kantu en Esperanto” (ESP1001), como também o nome de batismo da sua editora surge do desvio da abreviatura para Esperanto[2] [ESPO], tal como afirmado pelo editor em entrevista a Richard Segan, em “Sun Ra Cosmic Corner”, datada de outubro de 2007.
Em 1963, Stollman persuade os pais a adquirirem um apartamento em Riverside Drive, Upper West Side. Aqui, por intermédio de uma jovem coreógrafa, Stollman torna-se manager de Ornette Coleman e, dois anos mais tarde, de Cecil Taylor, músicos, cujo trabalho também desconhecia. Porém, apreciava os temperamentos profundos e dignos destes artistas, tendo-lhes consagrado as seguintes palavras: «The artists I encountered in the so-called jazz sector were serious composers and performers. They conducted themselves with dignity, reserve, and integrity. They were profound philosophers and articulate; I had and still have great respect for them.» (Weiss, 2012: 15) Ainda em 1963, o produtor voluntaria-se para assumir as tarefas legais de Moe Ash na Folkways Records, editora lançada em 1945, cujo catálogo continha mais de duzentos títulos, disponibilizados posteriormente pela Smithsonian Folkways.
A par disto, Stollman assiste a um concerto de Albert Ayler[3] em Harlem que iria provocar um desvio prodigioso na sua carreira de advocacia. Eis as palavras que o futuro editor dirige a Ayler: «Your music is beautiful. I’m starting a record label, and I’d like you to be my first artist.» (Weiss, 2012: 21) Com efeito, este convite inicial traduzir-se-á na edição de quatro álbuns de Ayler, sob a chancela da ESP, a saber: “Spiritual Unity” (ESP1002), “Spirits Rejoice” (ESP1020), produzido por Judson Hall, “Bells” (ESP1010) e “New York Eye and Ear Control” (ESP1016). Este último álbum, aliás, resultou de uma curta-metragem homónima realizada pelo artista canadiano Michael Snow (1928-2023), que conta com as presenças de Albert Ayler, Don Cherry, John Tchicai[4], Roswell Rudd, Gary Peacock e Sunny Murray.
Quando questionado sobre o projeto editorial em mãos, Stollman confirma a força fortuita do acontecimento, afirmando que a decisão de fundar uma editora não fora uma «thoughtful decision, just something I was drawn toward doing.» (Weiss, 2012: 22) Num ápice, a editora torna-se uma missão de destaque e a advocacia é rapidamente substituída pela única lei que impera, a do coração: «It became my calling. It took over from my law practice very quickly, because it was closer to my heart.» (Ibid.: 23)
A primeira gravação da editora foi feita no Variety Arts Studio, em julho de 1964, com Ayler e o seu trio, composto por Gary Peacock, descrito pelo produtor como delgado e austero, Annette Peacock, sua mulher e uma artista de exceção, e Sunny Murray, «a big gregarious bear» (Ibid.: 23), nas palavras do editor. Apesar da gravação ter sido monoaural, não havia formato mais exultante e auspicioso para o nascimento da editora. Aliás, segundo “The Penguin Guide to Jazz”, da autoria de Richard Cook e Brian Morton, “Spiritual Unity” encontra-se no top dos cem discos de jazz de sempre.
Entusiasmado com esta primeira edição, a adrenalina da iniciativa apodera-se do espírito de Stollman, que decide explorar esta new music[5]. Em NYC encontra músicos afro-americanos, todos desconhecidos, que tocavam the wrong music. Segundo o editor, estes artistas eram os sucessores de uma linhagem, cujo início se encontrava em Thelonious Monk, Charles Mingus, Charlie Parker, entre outros, todos eles possuidores de uma maturidade musical, filosófica, espiritual e artística de alta magnitude.
Na verdade, Stollman considerava que as grandes editoras não estavam interessadas nesta nova comunidade de artistas, porque tinham receio de errar, impedindo-as de apostar no desconhecido e no inesperado. Na sua última entrevista pública, datada de 12 de fevereiro de 2014, no M.I.Z na Alemanha e conduzida por Hans Schreiber, Stollman chega mesmo a afirmar, não sem um eco platónico, que o que lhe interessa é a verdade e a beleza das formas, com as quais consegue criar uma relação.
Na verdade, Stollman não era um expert em música, mas um devoto das formas artísticas (teatro, poesia, entre outras) e, por isso, conseguia ouvir aquela wrong music de forma naïf. É assim que este singular apreciador de formas, ao reconhecer qualidade, beleza, entusiasmo e verdade nessa wrong music, chega à conclusão de que estes artistas não precisam de um advogado, mas de uma editora. A falha das grandes editoras, nada interessadas nesta nova comunidade de artistas, por receio de errar ou arriscar, tornou-se a fenda por onde o inesperado splash editorial irrompeu. Assim, e convicto da força da sua missão, Stollman confessa à mãe a sua intenção e aos 34 anos decide o que quer fazer com a sua vida. A mãe acede ao pedido do primogénito e dá-lhe a sua herança.
Com efeito, os pais de Stollman apoiam incondicionalmente a aventura do filho, quer através da sua presença nas performances quer através do acolhimento de músicos e artistas na sua casa. Aliás, é Stollman quem conta que Tom Rapp e os membros de Pearls Before Swine[6] chegaram a pernoitar na sala de estar da casa dos seus pais, isto para grande contentamento do pai de Stollman, que adorava conversar com os artistas. (Cf. Weiss, 2012: 26)
É, pois, este o início da notável aventura de um advogado não convencional, que se encontra disposto a quebrar todas as regras contratuais: ao invés de quarenta e cinco páginas de contrato, bastariam duas páginas para que, depois do primeiro splash editorial em Setembro de 1965, Stollman editasse 45 álbuns, em dezoito meses. (Cf. Weiss, 2012: 27)
Meses depois da saída a lume de “Spiritual Unity”, acontece o October Revolution Jazz, a oportunidade perfeita para Stollman conhecer a comunidade artística e lançar a cada um o repto editorial: Marion Brown, Burton Greene, Sun Ra, Archie Shepp, Ronnie Boykins, entre tantos outros. O Cellar Café foi também um ponto de encontro inexcusável, pois os artistas que Stollman conheceu nesse espaço tornaram-se o núcleo central da editora.
Ao encarar a indústria comercial como um inimigo do processo criativo, Stollman decide apostar na liberdade dos artistas, senhores absolutos do seu repertório e do processo de gravação, donde a máxima: «The artists alone decide what you will hear on their ESP-Disk.» (Weiss, 2012: 31) Cônscio de que não poderia oferecer a esta comunidade de artistas, ainda desconhecidos, a promoção de uma editora de peso, Stollman afirma que a divulgação surgia como um «well-kept secret», à exceção de algumas aparições em publicações de jazz, programas de rádio universitários e alguns jornais underground como o “East Village Other”. Aliás, “East Village Other”[7] (ESP1034) é o nome de um álbum-colagem, que contou com a participação de vários artistas, como os Velvet Underground, Alan Ginsberg, Andy Warhol, que permaneceu silente durante a gravação performática, entre outros.
No entanto, a ESP-Disk proporcionaria algo prestigioso à comunidade artística: a edição de um álbum, que surgiria como uma alavanca para outros voos criativos e comerciais. Ao defender a expressão artística como anárquica, Stollman não queria que a editora se tornasse um nicho categorizável e, por isso, a sua abordagem não poderia ter sido ortodoxa ou sistemática (e.g.: não aceitava demos ou audições). A sua missão editorial era documentar os compositores, performers e artistas emergentes que se dedicavam à improvisação, independentemente do seu medium artístico.
O ecletismo da ESP-Disk congregava, assim, as virtudes da improvisação e da inovação, justamente, através da imprevisibilidade inspiradora do seu catálogo que conseguia reunir elementos heterogéneos que iam desde o free jazz, passando pelos The Fugs, descritos pelo editor como Beat poets[8] e anarquistas, os Pearl Before Swine, até à edição de álbuns não musicais, como por exemplo a peça de teatro musical de Jean Erdman, intitulada “The Coach with the Six Insides” (ESP1016), baseada em “Finnegans Wake” de James Joyce e que recebeu uma crítica laudatória do escritor nipónico Yukio Mishima (cf. Weiss, 2012: 199); o “Turn On, Tune In, Drop Out” (ESP1027) de Timothy Leary ou, ainda, o “Call me Burroughs” (ESP1050) de William Burroughs. Mas oiça-se o editor a esse respeito: «The label was not to become identified as representing only one particular sector of music. Art is ephemeral, and change is always under way. Any art form can become clichéd and derivative. I thought the label should be a documentary device to capture audio art. The format didn’t mater; it could be Tim Leary talking about LSD [Turn On, Tune In, Drop Out]. It was important to confound people.» (Weiss, 2012: 31)
O modo de funcionamento da ESP-Disk assumia, assim, contornos orgânicos dentro da comunidade artística, uma espécie de círculos dentro de círculos. (Cf. Weiss, 2012: 29) Stollman dá, então, carte blanche aos seus colaboradores artísticos, tendo como único preceito esquivar-se a um look convencional ou institucional: «By getting away from that, we were able to remain unpredictable.» (Weiss, 2012: 25)
O seu primeiro diretor artístico foi Jordan Matthews, antigo produtor da ABC, responsável pelas linhas conceptuais dos álbuns “Spiritual Unity” e “Bells” de Ayler e de “Pharoah Sanders Quintet” (ESP1003). Matthews trouxe consigo Howard Bernstein, que se dedicou ao grafismo dos seguintes álbuns: “The Giuseppi Logan Quartet” (ESP1007); a capa extraordinária do álbum “More” (ESP1013) do mesmo quarteto e a de “Indian War Whoop” (ESP1068) dos Holy Modal Rounders[9]. Richard Alderson junta-se à equipa, assumindo as funções de engenheiro e designer de som, ficando responsável pelas sessões de “Heliocentric Worlds” de Sun Ra (ESP1014; ESP1017; ESP4002 ou a box set ESP4062, que contém os três volumes), “Frank Wright Trio” (ESP1023) e “Your Prayer” (ESP1053) de Frank Wright e o seu quinteto.
Na primavera de 1966, um número considerável de artistas do catálogo da ESP (Sun Ra e a sua Arkestra, Ran Blake, Patty Waters, Giuseppi Logan e Burton Greene) embarca numa tour pelas faculdades do norte do estado de Nova Iorque, iniciativa que resultou na edição de diversos álbuns, a partir das gravações do engenheiro de som David Jones, tais como: “Nothing Is...” de Sun Ra; “College Tour” de Patty Waters[10] (ESP1055) e “On Tour” (ESP1074) de Burton Greene Trio.
A ESP garantia o pagamento dos instrumentos musicais, posters, bem como o arrendamento de espaços para concertos e performances, apostando na publicidade da lavra de escritores e críticos conceituados, tais como Nat Hentoff, Bob Blumenthal e Chris Albertson. (Cf. Weiss, 2012: 253) No entanto, certos músicos revelaram alguma incompreensão e insatisfação em relação aos procedimentos de pagamento dos direitos de autor.
Apesar desta polémica financeira, o editor não prescindiu de uma equipa de designers e de criativos de alta qualidade, como Ray Gibson, Saul Stollman, Dennis Pohl e Howard Bernstein[11], autor da capa original de “Music from the Orthodox Liturgy”[12] (ESP1065), que fora rejeitada; responsável pela capa cromática de “The Village Fugs”, editado originalmente pela Folkways Records em 1965, sob o sugestivo título “The Village Fugs Sing Ballads of Contemporary Protest, Point of Views, and General Dissatisfaction”, e pela capa do único álbum da banda experimental Cromagnon, “Orgasm” (ESP2001), reeditado sob o título “Cave Rock”. A par disto, Stollman reuniu um registo fotográfico distinto, que conta com as colaborações de Daniel Berger, Guy Kopelowicz[13], Margo Ducharme, Matthew Klein, Ramez Elias, Roland Hall, Piotr Siatkowski, Sandra Stollman e o fotojornalista W. Eugene Smith.
Dado o ecletismo da editora, não tardaram as edições de álbuns europeus e, em 1967, sai a lume “Music from Europe” de Gunter Hampel e edições de Pierre Courbois, com o seu Free Music Quintet, de Nedly Elstak e de Karel Velebny, um dos mais celebrados artistas de jazz do país. Aliás, a capa deste álbum é uma fotografia do artista checo engessado numa cama de hospital, após ter sofrido um terrível acidente de viação. De facto, a mensagem política latente não era alheia ao forte design da editora: o país do artista passava por um ciclo de repressão russa e a imagem inusitada reforçava, de modo inesperado, a supressão de liberdade.
A relação entre arte e a expressão de ideias é, para o editor, um ponto assente: a arte é profundamente subversiva e a edição de álbuns não pode abdicar da intervenção política. (Cf. Weiss, 2012: 34) Segundo Stollman, este aspecto político, mais concretamente, a clara e inequívoca oposição à guerra no Vietname, foi um dos motores que provocou o fecho da editora em 1968, altura em que a ESP se encontrava na sua forma mais robusta. O editor afirma que o regime de Johnson encontrara uma forma de silenciar o criticismo político da editora[14] em relação à guerra no Vietname, referindo que dois agentes da CIA abordaram Tom Rapp e Ed Sanders, que acabaram por assinar um acordo com a Warner Brothers, deixando de escrever e gravar canções que desafiavam o estado político da nação, mas oiça-se o editor a esse respeito: «We had three albums on the charts by the Fugs and Pearls Before Swine. One was at position 30 on the pop charts. We were hot. Then, I received a call from an industry figure associated with Warner Brothers – that Warner wanted to buy our label. And I said no. One morning, weeks later, the phones stopped ringing and the orders stopped coming in.» (Weiss, 2012: 38)
Em 1968, Stollman organiza um concerto gratuito no Cais 17, em Manhattan, que contou com as presenças de Sun Ra e a sua Arkestra, um solo de Jim McCarthy dos Godz, que editaram três álbuns com a chancela da ESP (“Contact High with the Godz”, ESP1037; o álbum de noise psicadélico “Godz 2”, ESP1047, e “The Third Testament”, ESP1077) e John Hall. Um apontamento interessante sobre o evento é que nesse mesmo cais estava atracado um navio português e o capitão do navio encarou o concerto como uma saudação a Portugal, aspeto que reforçou a boa reputação da ESP no nosso país. (Cf. Weiss, 2012: 30)
O último álbum da ESP-Disk, antes de suspender a sua atividade durante muitos anos, foi “The Will Come, Is Now” (ESP3026) de Ronnie Boykins, gravado em Fevereiro de 1974. De 1968 a 1974, a ESP suspende a distribuição, embora o editor tenha continuado a produzir álbuns, acreditando que a editora regressaria ao ativo.
Em 1974, depois do stock da editora ter sido vendido a uma empresa italiana, Stollman encara a dura realidade e encerra a editora. Acorn Hill House, um locus amoenus bem próximo de Woodstock, passa a ser a sua residência oficial. No entanto, a partir desse ano fatídico, ainda que tenha usufruído de um contrato com a Columbia Records, em meados dos anos 70, o editor viveu na obscuridade, enquanto advogado do governo estadual, até aos sessenta e dois anos, altura em que se reformou.
Em dezembro de 1991, Stollman recebe uma proposta da editora alemã ZYX assumindo o interesse em editar todo o catálogo da ESP. O editor reúne todo o material édito e inédito, o que correspondia a 125 álbuns. (Cf. Weiss, 2012: 43) A edição sai a lume, com uma brochura a cores de quarenta e duas páginas, conquistando e renovando o interesse dos auditores. Esta relação editorial mantém-se durante seis anos, tendo sido seguida por um contrato de licenciamento com a editora alemã CALIBRE e, um outro, com a companhia italiana Abraxas, cujos resultados não foram auspiciosos, revelando-se um verdadeiro pesadelo para Stollman, segundo o testemunho de Michael D. Anderson, produtor de jazz e baterista da Sun Ra Arkestra. (Cf. Weiss, 2012: 237)
Porém, a chama prometeica da missão de Stollman não se esvaíra: em 2003, já com setenta e quatro anos, inicia os planos de reabertura da ESP, com as colaborações de Michael D. Anderson, Douglas McGregor e Rob Lake. O lançamento da editora acontece em 2005 e, em março de 2007, a ESP-Disk reabre num espaço situado em Brooklyn. Nesta nova fase, a ESP-Disk começa a apostar em reedições do catálogo original e em novas edições, como a cantora de jazz sueca Lindha Kallerdahl (1972-), com o seu álbum “Gold” (ESP4041).
Em 2010, a ESP-Disk, amplamente conhecida como uma editora eclética e avant-garde, cujo catálogo de artistas foi quase todo editado pela Impulse!, já tinha realizado oitenta lançamentos, meia dúzia de reedições, tendo a sua distribuição conhecido uma expansão internacional considerável (e.g.: Escandinávia, Polónia, República Checa, Argentina, Croácia, Singapura, Indonésia, Grécia, África do Sul e Índia). A par disto, e como corolário da renovação da ESP-Disk, a editora trabalha com a Global Copyright Administration, uma associação que representa compositores que editam a sua própria música, garantindo não apenas os direitos de autor, mas reunindo também os catálogos de artistas como Eric Dolphy, Bud Powell, Sun Ra, Art Tatum, Albert Ayler, Jaki Byard, Horace Tapscott, Blind Willie McTell e, nos últimos anos, Art Blakey e Chet Baker. (Cf. Weiss, 2012: 75-77)
Esta aventura imprevisível poder-se-ia traduzir num jogo incessante entre um turn on, tune in & splash, espécie de combinação prodigiosa entre o álbum “Turn On, Tune In, Drop Out” de Timothy Leary[15] (ESP1027), e o splash editorial da primeira dúzia de títulos lançados pela ESP-Disk, que incluíam as figuras de Paul Bley, com “Barrage” (ESP1008) e “Closer” (ESP1021); Sun Ra, com os volumes de “Heliocentric Worlds”, “Nothing Is...” (ESP1045), com a sua Arkestra, e ainda “Concert for the Comet Kohoutek” (ESP3033), gravado em 1973; entre outros.
Este lançamento singular, segundo o editor, tivera como acontecimento inspirador uma sessão de Pop Art realizada na Sidney Janis Gallery (com trabalhos de Andy Warhol, George Segal, o escultor chileno Marisol, entre outros artistas), cuja mensagem apelativa ficara gravada no espírito inovador de Stollman: «launch your enterprise with a splash and a unifying theme. Put a frame around it and give it an identity as a movement.» (Weiss, 2012: 27)
O splash editorial anima o motto, simultaneamente, unificador e eclético da editora: «You never heard such sounds in your life». Cabe ao auditor fazer o resto: turn on and tune in.
[1] Vide Weiss, Jason (2012). Always in Trouble. An Oral History of ESP-Disk’, the Most Outrageous Record Label in America. Middletown, Connecticut: Wesleyan University Press.
[2] Nesta entrevista, Stollman refere que o criador do Esperanto, Ludwik Lejzer Zamenhof (1856-1917), escreveu ao escritor russo Lev Tolstói (1828-1910), que lhe respondeu em esperanto, por epístola, o que não deixa de ser um contributo notável para a disseminação deste vocabulário simplificado e comum.
[3] Cf. entrevista a Bernard Stollman sobre Albert Ayler.
[4] Saxofonista, nascido e criado em Copenhaga, co-funda, juntamente com Roswell Rudd, o New York Art Quartet, título epónimo de um álbum (ESP1004) em que colabora Amiri Baraka (aka Everett LeRoi Jones, poeta, escritor, dramaturgo e crítico musical ligado à Beat Generation e autor de ensaios contra o racismo e o colonialismo), com o seu manifesto “Black Dada Nihilismus”.
[5] O percurso exploratório de Stollman foi pautado por belíssimos e inesperados encontros: desde um “date errado” com Barbra Streisand, passando pelo elogio de Jimi Hendrix ao seu trabalho na ESP, a breve conversa com Janis Joplin no Village Theater, até ao happening de Yoko Ono, sob a égide do movimento “Fluxus”, na janela do restaurante macrobiótico “Paradox”, em 1965. Anos mais tarde, Stollman é contatado por Stanley Gortikov, presidente da Capitol Records, que lhe entrega o álbum “Two Virgins”, afirmando que John Lennon e Yoko Ono desejariam saber se, acaso, Stollman gostaria de distribuir o LP oferecido. (Cf. Weiss, 2012: 63-67)
[6] O primeiro álbum de Pearls Before Swine, “One Nation Underground” (ESP1054), foi gravado no estúdio de Richard Alderson, que trabalhara com Bob Dylan, e que contribuiu para o sucesso do álbum, com as suas certeiras sugestões artísticas. Aliás, duas das canções que compõem este álbum foram usadas pelo realizador alemão Rainer Werner Fassbinder em “Rio das Mortes”, filme datado de 1971.
[7] Na página oficial da editora, pode ler-se uma descrição deste álbum extraordinário pelo pulso de Stewart Mason, em “All-Music Guide”, nestes termos: «ESP-Disk released some freaky discs. That was kind of the whole idea of the label, in fact. But of all the discs they released, none were freakier than The East Village Other Electric Newspaper. A mind-bending sonic collage, [it] consists of a radio report of First Daughter Luci Baines Johnson's wedding on August 6, 1966 (coincidentally – and prophetically, to the staff of the pioneering underground newspaper The East Village Other – the 21st anniversary of the bombing of Hiroshima) overlaid with a variety of underground oddities. These include a song fragment by the Holy Modal Rounders' Steve Weber, a two and a half minute improvisation by free jazz saxophonist Marion Brown, a song by Tuli Kupferberg of the Fugs, a ten-minute chant by Allen Ginsberg and Peter Orlovsky, a reading by Ishmael Reed from his novel The Freelance Pallbearers, a gossip section by Warhol superstars Gerard Malanga and Ingrid Superstar, and, most famously, a 1:44 instrumental by the Velvet Underground aptly titled 'Noise.' This was the very first Velvets recording to be released. Obviously, this is much more of a curio than anything anyone will want to listen to regularly, but, as curios go, it's oddly fascinating.»
[8] A este propósito, note-se que Marc Albert-Levin, jornalista, crítico de arte e poeta dadaísta, edita “Tour de Farce” (1970), um livro brochado com oitenta páginas, contendo fotos a preto e branco da autoria de Fink. Segundo Weiss, esta obra refere-se ostensivamente à banda The Fugs, embora o autor afirme que o seu objeto de estudo incida, sobretudo, sobre si mesmo. Marc Albert-Levin não deixa de ser uma figura singular: escreveu para “Les Lettres Françaises”, cujo diretor era Louis Aragon, e, durante o período em que viveu em NYC (de 1970 a 1977), torna-se cozinheiro de Miles Davis, durante cinco meses. Conta o crítico que o músico o recebera de robe de banho, maravilhosamente charmoso, e que nunca comera nenhuma das refeições preparadas por si, alimentando-se apenas de Heineken. (Cf. Weiss, 2012: 260-261)
[9] Vide documentário sobre a banda, que provocou alguma controvérsia: https://www.youtube.com/watch?v=_RUf9lRZ6Qo
[10] Stollman conheceu Patty Waters através de Albert Ayler. Na altura, a cantora trabalhava na bilheteira de um cinema e mal conseguia ter fundos para sobreviver. Porém, movia-a um desejo de gravar standards, como fizera Ella Fitzgerald. No entanto, o editor diz-lhe que na ESP o material tem de ser da lavra da autora. É, assim, que Waters e Greene colaboram em “Patty Waters Sings”, álbum datado de 1965, que contém uma interpretação inovadora e vanguarda de uma canção folclórica dos Apalaches, intitulada “Black is the Colour of My True Love’s Hair”, anteriormente interpretada por Joan Baez e Nina Simone. O trabalho de Waters foi elogiado por Yoko Ono, Patti Smith, Diamanda Galas, entre outros.
[11] Cf. entrevista ao artista sobre a conceção das capas para ESP-Disk, bem como o seu encontro com Salvador Dalí.
[12] Segundo Stollman, Bernstein criara uma capa heterodoxa, que horrorizara o espírito artístico e religioso da Ucrânia e, por isso, a capa foi imediatamente substituída por uma versão mais prosaica e normativa. (Cf. Weiss, 2012: 59)
[13] Guy Kopelowicz, colaborou com o diretor Kasper Collin em “My Name Is Albert Ayler”, um documentário sueco-americano, datado de 2005, dedicado a Albert Ayler. Escrito, produzido e editado por Kasper Collin, durante um período de sete anos (de 1998 a 2005), o documentário conta com as presenças de Donald Ayler, Edward Ayler, Carrie Roundtree, Ann Westerman, Sune Spångberg, Lionel Marshall, Bengt Frippe Nordström, Sunny Murray, Bernard Stollman, Gary Peacock, Michel Sampson, George Wein, Bill Folwell, Val Wilmer, Mutawef Shaheed, Mary Parks, Elliott Landy e Ed Michel.
[14] Esta foi uma das razões que levou o editor a procurar, em 1970, Phil Kaufman, em Los Angeles, para reeditar o álbum de Charles Manson, intitulado “Charles Manson Sings - Lie: The Love and Terror Cult”. Apesar de considerar Manson um psicopata, Stollman afirma que a sua história não deixa de ser fascinante, justamente, porque o encara, simultaneamente, como uma vítima e um perpetrador. (Cf. Weiss, 2012: 60) Inspirado por Alfred Knopf, um editor judeu que publicara Mein Kampf, Stollman assume os claros contornos políticos da edição do álbum de Manson, defendendo que o governo usou esta figura para descreditar o movimento hippie, que desafiava o sistema através da crítica à guerra no Vietname. Durante alguns anos, os direitos autorais da edição serviram para reforçar a ação jurídica contra Manson.