Clef / Norgran, 24 de Maio de 2023

Clef / Norgran

Sobre uma clave e um anagrama

texto: Sofia Alexandra Carvalho

Em mais uma edição da rubrica “Editoras com história(s)”, Sofia Alexandra Carvalho aponta o foco a duas editoras lendárias da história do jazz: Clef e Norgran.

[...] E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos [...].
Mário Cesariny


Importa, por vezes, começar pelo início, ainda que o começo em media res, muitas vezes, contenha outra intensidade. Neste caso específico, convém relembrar o embrião duplo das editoras Clef e Norgran, antecedentes da Verve Records, para se perceber inteiramente o alcance da visão do seu fundador.

Em 1947, Norman Granz estabelece a editora Clef, procurando fixar e dar conta da distribuição das gravações da série “Jazz At The Philharmonic” [JATP]. Uma das razões especulativas que contribuiu para a escolha do nome da editora Clef, entre muitas outras, poderá ter sido a revista californiana de jazz, que ostentava o mesmo nome, e que houvera sido publicada entre março a setembro de 1946 (cf. Havers, 2013: 148).

As primeiras edições, ideadas pelo produtor, incluiriam “How High The Moon, Parts 1, 2, 3 & 4”, gravada em Pittsburgh, em março de 1947; “Perdido”, no Carnegie Hall, em Maio do mesmo ano; e outras gravações, cujo título seria “Bebop Piano”.

Em 1948, a Billboard anunciava um acordo entre Irving Green, da Mercury Records, e Norman Granz. O primeiro ficaria, assim, responsável pela distribuição dos Volumes 6 a 8 da série JATP. Em dezembro do mesmo ano, o “Volume 8 – Perdido” já constava da lista da Billboard, como um dos álbuns mais vendidos, ocupando o sétimo lugar. Nesse mesmo ano, Charlie Parker (1920-1955) e Machito (1909-1984), músico latino de jazz afro-cubano, assinam contrato com a Clef. Aliás, no final de Janeiro de 1949, a Billboard anunciava, de modo entusiástico, a presença de Machito no catálogo da Clef: «Norman Granz’s exciting new departure in music. Afro-Cuban Bop featuring the world’s greatest exponents of jazz and Afro-Cuban music.» (Havers, 2013: 148)

Após a série dedicada às sessões de JATP, sai a lume o single “No Noise”, com Flip Phillips, num dos lados, e Charlie Parker, no outro. Esta seria a primeira edição em estúdio de Norman Granz, sob a chancela da Clef.

Em abril de 1949, a Mercury Records anuncia a edição de um álbum de jazz, que incorporaria fotos de alta qualidade dos artistas de topo da cena jazzística da autoria de Gjon Mili, fotógrafo albanês que colaborou para a revista “Life”. A Mercury esclarece, ainda, que o material do projeto se encontrava a ser trabalhado e refinado por Norman Granz, durante os últimos três anos.

Uma semana antes do Natal desse mesmo ano, Granz edita a primeira box set de jazz, uma compilação intitulada “The Jazz Scene ”, de edição limitada numerada (5.000 cópias), cujo conteúdo apresentava a corrente mais moderna do jazz na altura, com figuras proeminentes, entre as quais: Coleman Hawkins, com o seu “Picasso” (1948); “The Bird” ou Charlie Parker, fazendo-se acompanhar por Hank Jones, ao piano, Ray Brown, no baixo, e Shelly Manne, na bateria, gravado em fevereiro de 1948; Lester Young, na companhia de Nat King Cole, ao piano, e Buddy Rich, na bateria, gravado em 1946; “Sono” e “Frustration” (1949) por Duke Ellington, com as presenças do saxofonista Harry Carney, o pianista Billy Strayhorn, o guitarrista Fred Guy, o baixista Oscar Pettiford e o baterista Sonny Greer, e ainda “Cherokee” (1949) de Bud Powell, com o baixista Ray Brown e o baterista Max Roach, entre outras gravações. A par de um elegante, sóbrio e apelativo design, a edição de luxo continha notas da lavra de Granz, bem como biografias dos artistas que compunham a série.

Em 1952, Billie Holiday começa as suas primeiras gravações de estúdio, apoiada pelo trio de Oscar Peterson e com as participações de Alvin Stoller na bateria, Flip Phillips e Charlie Shavers, dando forma ao seu primeiro álbum pela Clef: “Billie Holiday Sings”. Nesta altura, a Billboard publica uma série de fotos, com Charlie Parker, Oscar Peterson, Roy Eldridge, Illinois Jacquet, Flip Phillips, Johnny Hodges e Lester Young, sumariando o trabalho na Mercury levado a cabo pelo produtor Norman Granz. A Billboard realça, ainda, as finas edições da Clef editadas pela Mercury. Durante este ano, o álbum da Clef que mereceu mais atenção publicitária foi “Charlie Parker With Strings”. 

Porém, Granz ambicionava voos mais altos e, na primavera de 1952, o produtor anuncia novos contratos de distribuição para a Clef Mercury em inúmeros países europeus, desde França, passando pela Suíça, até à Suécia. Graças à visão de Granz, a Mercury apresentava lucros que rivalizavam com as grandes editoras, como a RCA e a Columbia. Em novembro, o produtor aposta em quatro LPs, contendo trinta e quatro canções de Fred Astaire e seis músicas de artistas de jazz de topo (Oscar Peterson, Barney Kessel, Ray Brown e Flip Phillips): nasce, assim, a autobiografia musical, intitulada “The Astaire Story”, cujo artwork revela traços modernos e frescos, lembrando o traço de Matisse, ainda que estilizado, apostando na força cromática a dois tons. Tal como aconteceu com “The Jazz Scene”, esta série apresentava fotografias de Gjon Mili, desenhos de David Stone Martin e comentários de Fred Astaire.

Em dezembro de 1952, sai “Port Of Rico” de Illinois Jacquet, que vendeu 100.000 cópias, um número fenomenal para um álbum de jazz. No final deste ano, novos artistas embelezam o catálogo da Clef, que inclui as orquestras de Woody Herman e Charlie Barnet, Barney Kessel e o seu quarteto, Teddy Wilson e o quarteto de Stan Getz.

No ano seguinte, admirador e impulsionador de jam sessions, Norman Granz reúne, na Radio Recorders, em Hollywood, Charlie Shavers, Benny Carter, Johnny Hodges, Charlie Parker, Flip Phillips, Ben Webster, Oscar Peterson, Barney Kessel, Ray Brown e J.C. Heard. O resultado desta sessão aparece cunhado como “Norman Granz’ Jam Session, No. 2”. A par disto, Oscar Peterson estava lançado e o sucesso da série “Oscar Peterson plays George Gershwin”, entre outros, solidificavam o trabalho de exceção da Clef.

Segundo Havers, será em 1953 que a Clef se torna uma editora que opera de modo independente da Mercury Records. Este gesto de liberdade, fruto também do progresso da cena jazzística, com os seus New York Clubs (e.g.: The Bandbox e Birdland), que atraía músicos de alto calibre, concede à Mercury a possibilidade de apostar numa linha temática dedicada ao jazz, o que não tardou a acontecer e com brilho. No entanto, Granz não abdicara dos direitos das sessões de JATP, aspeto que revelou ser amplamente lucrativo, sobretudo, com o nascimento da Verve. 

Após o corte com a Mercury Records, Granz intensifica as sessões de gravação em estúdio, proporcionando uma nova jam session, com a colaboração de Ben Webster, Buddy Rich All Stars, Lionel Hampton e Art Tatum.

Na verdade, a aventura independente da Clef tornou-se, em termos musicais, um compasso, uma unidade muito breve, cujas razões de pouca dura são desconhecidas, mas que poderão estar relacionadas com a falta de músculo financeiro e de uma distribuição eficaz, que garantisse um sólido incoming de vendas, como asseverado por Richard Havers.

Em fevereiro de 1954, Granz anuncia a criação da sua segunda editora, cujo título parece ostentar um jogo anagramático entre os dois nomes do produtor: Nor[man] + Gran[z]= Norgran. O propósito desta segunda aventura editorial, sendo o da expansão, implicava, ainda assim, um gesto perspicaz de concentração e separação, mas oiça-se o produtor: «Clef was to handle jazz in the swing tradition whereas Norgran was to handle the cooler crowd.» (Havers, 2013: 161-2) Portanto, as JATP ficariam entregues à Clave editorial, com um pacote genial de artistas (e.g.: Count Basie, Oscar Peterson, Gene Krupa, Charlie Parker, Teddy Wilson, Flip Phillips e Billie Holiday), e o jogo anagramático tornar-se-ia o espaço editorial de acolhimento para artistas como Dizzy Gillespie, Stan Getz, Buddy DeFranco e Johnny Hodges.

Em julho de 1954, Clef edita cinco álbuns de Art Tatum, intitulados “The Genius of Art Tatum”. Eis o que Granz partilha sobre esta edição: «I felt it was my duty as a person who loves both jazz and produces it to record Tatum for posterity.» (Havers, 2013: 162) Dir-se-ia que esta máxima do produtor se pode aplicar a todas as suas edições e produções, porquanto o que o movia era a afeição pela música e o ímpeto visionário inscrito na história do jazz.

Em outubro de 1954, Granz edita um álbum da pianista japonesa Toshiko Akiyoshi (1929), resultado da JATP tour no Japão, durante o ano anterior e, em novembro de 1953, grava em Tóquio Herb Ellis, Ray Brown e J. C. Heard.

Em novembro do mesmo ano, Granz baixa o preço dos catálogos de Clef e Norgran, mais um masterstroke editorial. Leia-se o intento do produtor: «Youngsters are the chief outlet for single records today, and the reduction in price will put jazz records within easier reach of their purse strings.» (Ibid.)

Ainda em 1954, Granz ideara o seu primeiro filme teatral, cujo elenco englobaria Ella Fitzgerald, Buddy DeFranco e Count Basie. No entanto, este putativo rival de “Jazz On A Summer’s Day” (1960), segundo Havers, não chegaria às luzes da ribalta, por razões que continuam na obscuridade.

A verdade é que o ano de 1954 foi prodigioso: a par dos artistas estabelecidos, Granz amplia o catálogo aditando artistas como Louie Bellson, Buddy DeFranco, Tal Farlow, os pianistas Kenny Drew e George Wallington, Harry Carney e Artie Shaw.

No começo de 1955, Granz esclarece o propósito qualitativo destes dois projetos editoriais de fôlego, nestes termos: «Our records are unlike any other record company’s and we feel that the consumer receives full value for money. We are not trying to compete with any record company in terms of price; but we are competing with every record company in terms of product. We don’t pretend to be selling ‘quantity’ – We are selling ‘quality’- We feel that our artists and their talents are worth the price we ask.» (Havers, 2013: 162)

Com a distribuição garantida dos catálogos de Clef e Norgran pela Europa, Granz não só mantém o ritmo alucinante das gravações, desta feita com as presenças de Bob Brookmeyer e a Modern Jazz Society, como também negoceia com a EMI, no Reino Unido, para um novo veio de distribuição. Ainda no mesmo ano, realçam-se as edições de “West Coast Jazz”, um álbum que exibe a faceta mais cool do bebop, contando com as colaborações de Conte Candoli, no trompete, Stan Getz, Lou Levy, ao piano, Leroy Vinnegar, no baixo, e Shelly Manne, e de “Ralph Burns Among The JATPs”, com as presenças de Roy Eldridge, Bill Harris, Flip Phillips, Oscar Peterson, entre outros. O desfecho deste ano aponta para o despontar das primeiras sessões da Verve.

É assim que, na ausência de palavras, a música, essa série de «palavras que nos sobem ilegíveis à boca», como lembra Cesariny, desenha o espírito da época e faz ressoar o que ainda está por vir.

Agenda

10 Junho

Imersão / Improvisação

Parque Central da Maia - Maia

10 Junho

O Vazio e o Octaedro

Parque Central da Maia - Maia

10 Junho

Marta Hugon & Luís Figueiredo / Joana Amendoeira “Fado & Jazz”

Fama d'Alfama - Lisboa

10 Junho

Maria do Mar, Hernâni Faustino e João Morales “Três Vontades de Viver”

Feira do Livro de Lisboa - Lisboa

10 Junho

George Esteves e Kirill Bubyakin

Cascais Jazz Club - Cascais

10 Junho

Nuno Campos 4tet

Parque Central da Maia - Maia

10 Junho

Tim Kliphuis Quartet

Salão Brazil - Coimbra

10 Junho

Big Band do Município da Nazaré e Cristina Maria “Há Fado no Jazz”

Cine-teatro da Nazaré - Nazaré

10 Junho

Jorge Helder Quarteto

Fábrica Braço de Prata - Lisboa

11 Junho

Débora King “Forget about Mars” / Mayan

Jardins da Quinta Real de Caxias - Oeiras

Ver mais