(des)encontros com o jazz (e música improvisada) em Portugal #06
Uma orquestra de jazz na rádio pública portuguesa
No sexto texto da sua rubrica “(des)encontros com o jazz (e música improvisada) em Portugal”, o investigador Pedro Cravinho alerta-nos para o facto de o jazz ter chegado à rádio pública portuguesa em 1935, uma década antes do que é habitualmente referido. E fala-nos da Orquestra Jazz da Emissora Nacional, projeto efémero num Portugal plúmbeo.
Alguns dos estudos sobre jazz em Portugal apontaram a primeira emissão radiofónica dedicada ao jazz do nosso país em Novembro de 1945. A Europa encontrava-se ainda no rescaldo da vitória dos Aliados sobre o Fascismo e o Nazismo. No Portugal salazarento, supostamente neutro, atenuavam-se as tendências fascizantes dominantes na década anterior. Assistindo ao derrube de Hitler, o astuto ditador português redirecionava com desconfiança o seu apoio para os norte-americanos na erradicação do comunismo. Infelizmente, essas tendências fascizantes têm emergido no tecido social e político português. Ou estariam latentes. Afinal, todos aqueles que a “Bem da Nação” durante décadas perseguiram, torturam e mesmo mataram nunca foram presos. Tal como os outros, aqueles que mandaram perseguir, torturar e matar nunca foram julgados e presos. Em parte, consequência da instabilidade do PREC. Os primeiros tiveram uma brevíssima passagem pela cadeia antes da famosa “evasão dos pides”; os segundos, tiveram uma estadia na ilha da Madeira, antes seguirem outros rumos.
Ao contrário do que tem sido apontado como a primeira emissão radiofónica dedicada ao jazz do nosso país, em Novembro de 1945, esta não foi a primeira rúbrica dedicada ao jazz na rádio em Portugal. Como também não se tratou numa fase inicial de um programa. Em Novembro de 1945, o Hot Club, da autoria de Luís Villas-Boas (1924-1999), era uma pequena rubrica dedicada ao jazz integrada no “Programa da Manhã” da Emissora Nacional. Tratou-se de um pequeno, mas importantíssimo “apontamento” jazzístico na rádio estatal portuguesa aos domingos entre as oito e meia e as dez horas da manhã, antes da Eucaristia. Em Janeiro de 1946, o Hot Club mudava-se para a Rádio Clube Português, com locução de Fernando Curado Ribeiro (1919-1995).
Acontece que um conjunto de dados que resultam de investigação recente confirmam a presença do jazz na Emissora Nacional de Radiodifusão (ENR) na década anterior. Precisamente em Agosto de 1935. Os leitores mais atentos provavelmente chegarão à mesma conclusão que o autor desta rubrica. Em 1935, quando o jazz começou a circular nas emissões da ENR, Villas-Boas tinha onze anos de idade (e o maestro Jorge Costa Pinto três). Provavelmente, Villas-Boas ouviria telefonia. Mas, conforme partilhou em entrevistas, não colhia interesse pela música sincopada; estudava piano “clássico”. Só despertou para o jazz posteriormente. Talvez por isso, nunca reconheceu ter existido nada sobre jazz em Portugal antes do aparecimento do seu Hot Club ao som do “Mystery Pacific” gravado pelo Quinteto do Hot Club de France, com Django Reinhardt, Stéphane Grappelli, Pierre “Baro” Ferret, Marcel Bianchi e Louis Vola.
A partir de Agosto de 1935, com o arranque das emissões oficiais da rádio estatal portuguesa, sob a administração de Henrique Galvão (1895-1970). (Exactamente, o mesmo capitão Henrique Galvão que posteriormente se tornou um dos principais opositores do Estado Novo. Aquele que em 1961 levou a cabo a operação Dulcineia que tomou de assalto o paquete Santa Maria em pleno Atlântico atraindo a atenção internacional para as atrocidades cometidas pelo Estado Novo “Aqui e Além Mar”, episódio levado para o grande écran pelo realizador Francisco Manso).
Retomemos; a partir de Agosto de 1935, com o arranque das emissões oficiais da rádio estatal portuguesa, assiste-se à circulação de jazz na programação da ENR, não só através da transmissão de “música gravada” (designação da época), com um programa de jazz da autoria de António Lopes Ribeiro (1908-1995). Como também através da transmissão de “música viva” (igualmente, designação da época), com a transmissão de concertos da Orquestra Jazz da Emissora Nacional. Inspirado no título de um artigo de Raul Calado (1931-2018), “Desfaçamos alguns mitos”, resolvi dedicar esta rúbrica (des)encontros com o jazz e música improvisada (na rádio) em Portugal.
Convém desde já esclarecer os leitores que ao longo do período de emissões experimentais da Emissora Nacional, sob a direcção de António Joyce, o jazz esteve ausente da programação. Esta contemplou unicamente música erudita. A inclusão de jazz na programação da Emissora Nacional surge após Agosto de 1935. No entanto, existem registos e relatos da presença da música sincopada em alguns clubes nocturnos das cidades de Lisboa e Porto e casinos ao longo do litoral português durante esse período. Assiste-se igualmente à circulação em Portugal de “jazz-bands” (designação dos grupos de jazz da época) oriundas do estrangeiro que atraíam as elites burguesas de Lisboa e Porto.
Por exemplo, as Blue Jazz Ladies, um grupo de jazz (ou o que era considerado jazz na época) constituído unicamente por mulheres anunciado na imprensa portuguesa como “Um Jazz de Mulheres”. Depois de alcançarem sucesso em vários países europeus, tiveram uma breve passagem pelo clube Maxim’s – expoente máximo da Lisboa boémia e cosmopolita – antes de rumarem até ao Porto. No entanto, para que as Blue Jazz Ladies pudessem entrar e tocar em Portugal, conforme o seu empresário, Leon Slinsky, referiu aos jornais da época, foi necessário «substituir por homens duas delas, visto serem russas e não podem entrar em Portugal. Devo dizer que estou gratíssimo às gentis facilidades que tive por parte da Alfândega e Polícia Internacional (e Defesa do Estado, PIDE).» (Exactamente; tendo em conta a obsessão do ditador português contra tudo que pudesse estar associado ao comunismo, os agentes da PIDE impediram duas excelentes instrumentistas de jazz de nacionalidade russa de tocarem em Portugal). Ao contrário do resto dos países europeus, no Portugal salazarento, as Blue Jazz Ladies, actuaram sem russas.
Ainda em Agosto de 1935, durante a cerimónia da inauguração “oficial” da ENR, o então, novo director da Secção de Música Gravada, António Lopes Ribeiro defendia o “disco”. Aproveitando a oportunidade, Lopes Ribeiro não deixou de responder às criticas e ataques do ponto de vista estético, social e cultural que a nova programação da Emissora Nacional vinha sendo alvo na imprensa periódica nacional – as quais incluíam também a transmissão de jazz. De acordo com Lopes Ribeiro toda a questão se reduzia em saber organizar, dentro dos programas radiofónicos, verdadeiros “concertos de fonografia”. (Acreditamos que o saudoso Zé Duarte, autor do mítico Cinco de Minutos de Jazz, estaria de acordo). Lopes Ribeiro apresentou um tema de jazz da seguinte forma:
«Primeiro, o saxofone tenor Jimmy Strong... seguido pelo alto de Don Redman, Segue-se o mais assombroso solista da actualidade: Louis Armstrong, com a sua trompette [sic] triunfal, que Baby Dodds comenta na bateria... E agora, a mão esquerda imponente e a mão direita assombrosa de Earl Hines, o rei das pianistas de jazz... E um dos melhores, se não o melhor dos clarinetistas: Johnny Dodds. Mesmo na América do Norte seria difícil reunir numa audição radiofónica directa semelhantes elementos, quase todos membros de orquestras diferentes. Só um negócio editorial coma o do disco permite suportar semelhante despesas.»
Defendendo publicamente que:
«Mas há mais. Já tive ensejo de dizer a êste [sic] microfone e, portanto, sensivelmente às mesmas V. Ex.as [sic] – que a música do nosso tempo é o jazz, e que o melhor jazz é o jazz hot. O jazz hot, como sabem, compõe-se de verdadeiros improvisos, imaginados e compostos durante a execução de um tema.»
Elogiando depois Louis Armstrong (sem imaginar que passados vinte e seis anos, o mesmo trompetista africano-americano daria a seu primeiro e único concerto em Portugal, atraindo, segundos os jornais, milhares de entusiastas ao Cinema Monumental de Lisboa):
«Cada disco reproduz fielmente, implacavelmente, esse instante que o milagre fonográfico tornou etemo. Oiçam este improviso de Louis Armstrong, sobre o motivo clássico de “Tiger Rag”, improviso que o grande músico negro talvez nunca mais consiga executar.»
Felizmente as gravações em 78 rpm de Louis Armstrong,Jimmy Strong, Warren “Baby” Dodds, Don Redman, e Johnny Dodds chegaram até aos nossos dias, permitindo-nos hoje percecionar algumas das sonoridades que circulavam nas emissões de ENR dez anos antes do arranque da “primeira emissão radiofónica dedicada ao jazz do nosso país.” (Acredito que mesmo os mais cépticos, todos aqueles que ao longo de décadas têm vindo a afirmar que antes do ‘Hot Club’ não existia jazz (na rádio) em Portugal, devem concordar que o Louis Armstrong era do jazz).
Em termos de programação jazzística na ENR, para além da música “gravada” a circular nas telefonias por Portugal continental, é criada em Outubro de 1935 uma nova estrutura orquestral dedicada à música sincopada, a Orquestra Jazz da Emissora Nacional. (Exactamente, ainda que por pouco tempo, existiu uma orquestra de jazz financiada por dinheiros públicos portugueses durante o regime do Estado Novo; difícil de imaginar, certo! Para o autor destas linhas, mais difícil é compreender como é que face a abundância de excelentes solistas de jazz e música improvisada actualmente em Portugal, ainda não existe uma orquestra de jazz – ou se preferirem, uma big band – na rádio pública portuguesa. Sucede que na Alemanha existem de trinta big bands em diferentes estações de rádio).
Convém celebrar os membros da Orquestra Jazz da Emissora Nacional: António Luís Melo, Vergílio da Costa Grilo, José Belo Marques, Joaquim Augustos Carvalho Júnior, Francisco de Oliveira Borriço Júnior, Sérgio Paulo Sequeira, Aurélio da Cunha, Rodrigo Valério, Carlos Formiga, J. J. Gonçalves, Umberto Viera Vicente Franco e José Cosme.
Relativamente ao início de actividade da Orquestra Jazz da Emissora Nacional, através da análise de documentação da época, foi possível identificar que a primeira transmissão em directo foi realizada no Sábado, dia 2 de Novembro de 1935. Ao longo dos meses seguintes, a Orquestra de Jazz da ENR manteve uma actividade regular, com destaque para a transmissão de um concerto semanal ao Sábado à noite. Numa primeira fase, entre as 20h18 e as 20h50 e posteriormente entre as 22h30 e as 23h30. Para além da actividade desenvolvida nos estúdios da ENR, também foram transmitidos concertos da Orquestra Jazz da ENR a partir do exterior.
Os últimos concertos foram transmitidos em Janeiro de 1936. Devido a uma reestruturação levada a cabo pela Direcção da ENR a Orquestra Jazz da Emissora Nacional é extinta, sendo a maioria dos seus elementos distribuídos por novas estruturas orquestrais [tal como aconteceu com certos festivais de jazz em Portugal que, após atingirem uma certa maturidade, por decisão das entidades oficiais, são extintos sem fundamento aparente (talvez azedume político?); relembro com nostalgia o Festival de Jazz na cidade dos arcebispos].
Em conclusão, a estória do jazz em Portugal não deve ser estudada apenas a partir de 1945. Muito menos, sem incluir a Orquestra Jazz da Emissora Nacional e o importante papel de António Lopes Ribeiro na introdução do jazz aos ouvintes portugueses na rádio pública. Mas o mesmo se poderá afirmar sobre outros programas radiofónicos dedicados ao jazz que foram para o ar antes da “primeira emissão radiofónica dedicada ao jazz do nosso país.” [Tópico talvez para uma próxima rubrica dos (des)encontros com o jazz e música improvisada em Portugal].
Termino estas linhas com um desafio aos leitores. Que tal imaginarem uma orquestra de jazz com solistas representando diferente distritos de Portugal continental e insular na rádio pública portuguesa, integrada na empresa RTP, em pleno século XXI. Concordo; difícil de imaginar. Principalmente devido à abundância em Portugal de jovens solistas de qualidade internacional, essa escolha seria muito difícil. Mais ainda, compositores e compositoras de jazz – portugueses e portuguesas – com obras comissionadas para essa orquestra. Muito difícil de acreditar, certo! No entanto, podem acreditar que existiu uma orquestra de jazz na rádio pública há cerca de oitenta e oito anos no Portugal salazarento.
12 de Maio de 2023
O autor segue a ortografia anterior ao novo Acordo Ortográfico.
Sobre o autor:
Pedro Cravinho é cofundador e membro da Direcção da Rede Portuguesa de Jazz – área da investigação. Director dos Arquivos da Faculty of Arts, Design and Media da Birmingham City University (BCU). Investigador Sénior em Estudos de Jazz no Birmingham Centre for Media and Cultural Research (BCMCR), co-líder do BCMCR Jazz Studies e History, Heritage & Archives Research Clusters. Investigador do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (Portugal) da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Membro das direções do National Jazz Archive (Inglaterra), Scottish Jazz Archive (Escócia), da Duke Ellington Society (Reino Unido) e membro do West Midlands Archives (Inglaterra). Cofundador das conferências internacionais ‘Documenting Jazz’ e autor de diversos textos sobre jazz em Portugal. O último acabado de ser publicado, Encounters with Jazz on Television in Cold War Era Portugal: 1954 – 1974 (Routledge, 2022), dedicado a Manuel Jorge Veloso.