Julien Desprez
Os discos favoritos de Julien Desprez
O francês Julien Desprez é um músico versátil e difícil de classificar. O guitarrista vai levar o seu projeto Abacaxi ao Portalegre Jazzfest (atua a 29 de abril) e prepara a edição de dois novos discos: um registo a solo, chamado “Agora”, e o segundo álbum do grupo Abacaxi. Julien Desprez esteve à conversa com o crítico David Cristol, partilhando os discos da sua vida.
Julien Desprez é um guitarrista? Seria demasiado redutor apresentá-lo dessa forma. Ele é também, e talvez acima de tudo, um percussionista e intérprete multidisciplinar que utiliza, entre outras coisas, uma guitarra e todo o tipo de dispositivos para atingir os seus fins. Será necessário assistir a uma atuação ao vivo para se ter uma ideia. Seja a solo ou em grupo, a sua arte apela a todos os sentidos do público, com um envolvimento total que recorre a efeitos visuais elaborados, enquanto a sua música é diferente de qualquer outra. Em contextos diferentes, Desprez é também escultor, dançarino e cineasta.
Para além dos seus próprios projetos, a sua lista de colaborações traduz-se num amplo panorama da música livre mais exploratória dos últimos anos. Colaborou com o português Luís Lopes (no álbum “Boa Tarde”, editado pela Shhpuma em 2018), e atuou no Jazz em Agosto em várias ocasiões, com os Abacaxi em 2019 (a edição “Resistance”) e em 2022 nas grandes formações de Rob Mazurek (Exploding Star Orchestra) e Nate Wooley (Seven Storey Mountain). Em cada configuração, o público é eletrificado pelo seu discurso afiado e decidido. Desprez foi co-fundador em 2008 do Collectif Coax, sedeado, tal como o próprio, em Paris.
Perguntámos-lhe sobre os seus discos favoritos e a influência que estes álbuns e artistas têm tido na sua própria estética musical e no seu pensamento.
Arto Lindsay: “Encyclopedia of Arto”
(Northern Spy, 2014)
Eu ouço realmente tudo. Consigo ouvir pop foleira, bem como coisas muito hardcore. Não tenho muitos limites estéticos hoje em dia. Quando me pediste para pensar numa lista de álbuns, pensei imediatamente em Arto Lindsay. Em vez de um álbum, escolhi uma compilação de diferentes momentos da sua carreira, uma enciclopédia à qual volto regularmente. Ouve-se o lado pop principal, onde ele canta e alguns sons estranhos de guitarra se infiltram, e há também versões a solo das mesmas canções, com voz e guitarra noise. Adoro este disco. Tocámos juntos no Brasil e em outras ocasiões. Ele cresceu no Brasil e depois mudou-se para o Soho, Nova Iorque. Quando chegou ao Soho, entrou numa galeria de arte, estavam a pendurar quadros e perguntou o que se passava. O gerente da galeria disse-lhe que havia uma abertura no dia seguinte e que estava à procura de músicos. Arto, que nunca tinha tocado numa guitarra, disse “sou músico”, e o homem disse “OK, vem amanhã com a tua banda e acompanha a inauguração da exposição”. Este foi o início dos DNA, com Ikue Mori. Arto comprou a primeira guitarra que encontrou numa loja, fez barulho e encontrou o seu estilo. Nos EUA, desde que acredites no que estás a fazer, as pessoas são calorosas e vão gostar, há uma mentalidade de “just do it” que pode funcionar. Para mim, Arto é uma autoridade em música desde os anos 80 e 90 até aos dias de hoje, produziu muitos discos de cantores brasileiros, desde Caetano Veloso a Vinícius Cantuária. No entanto, não é fácil encontrarmos compromissos para tocar ao vivo. Ele vive agora no Rio. Gosto muito do seu último álbum, “Cuidado Madame”, mas gosto particularmente das suas peças para guitarra e voz. A sua música tem a vantagem de ser multi-camadas, pelo que podes ouvi-la enquanto prestas muita atenção ao que se passa. Ele influenciou-me inegavelmente na minha utilização da guitarra. Conheci-o num festival no Rio, o engenheiro de som foi seu assistente, filmou um excerto da minha atuação e enviou-lhe. Arto viu-o e convidou-me a ir a sua casa. Após um dia de conversa, tocámos juntos num concerto nas Belas Artes no Rio, com muita naturalidade. O que eu faço lembra-lhe o que ele fez há quarenta anos atrás!
Emptyset: “Collapsed”
(Raster Noton, 2012)
Outro disco que me marcou, numa etiqueta de Berlim dos anos 2000, ainda hoje ativa. É música rítmica, construída a partir de feedback electrónico e sem “input”. Um disco composto por células rítmicas criadas a partir de loops de feedback. Dentro da mesma estrutura, é o som que muda, é muito denso e com Groove ao mesmo tempo. Mais uma vez, esta estética influenciou-me, com o seu lado rítmico, mas sempre em mudança, e um trabalho muito agradável de materiais sonoros gerados sem “input”, onde o som é criado a partir das ligações na mesa de mistura. Faz-se loops de feedback e começa-se a esculpir música com isso. Neste álbum são também acrescentados processos digitais, mas o que mais me agrada é a base não ter nenhum “input” a criar o material em que esculpem o ritmo. Eles são uma banda inglesa bastante discreta, não sei o nome deles e não é fácil encontrar fotografias deles. Tal como Arto, eles têm uma abordagem “não queremos saber, estamos a fazer a nossa coisa, gostem ou não”. Descobri-os em palco no Sonic Protest em Paris. Descubro frequentemente músicos em festivais onde toco.
Sophie: “Oil of Every Pearl's Un-Insides”
(Transgressive Records, 2018)
Queria incluir este álbum de Sophie. Ela era um escocês que que se tornou escocesa, uma artista trans que viveu na Grécia e morreu em 2021. Descobri este disco quando soube da sua morte – é com demasiada frequência, em ocasiões como esta, que descubro artistas que não conheço. Foi durante o covid, estávamos todos em frente dos nossos ecrãs e uns amigos recomendaram-me este álbum. Gosto da mistura de pop e experimentação. Vindo da cultura trans, ela permite-se brincar com o lado robótico das máquinas, muda a sua voz de muito grave para muito aguda, e cobre uma área onde não se sabe quem ou o que se está a ouvir. Musicalmente, vai desde coisas selvagens a quase música de feira.
Tony Conrad with Faust: “Outside the Dream Syndicate”
(Caroline Records, 1973)
Um dos meus discos favoritos. Nunca tive a oportunidade de ouvir Tony Conrad ao vivo, o que é uma pena. Ele não era apenas um músico, o seu trabalho artístico está em exposição em várias galerias em Nova Iorque. Aqui temos duas faixas rítmicas com uma gravação de baixa fidelidade, não estamos numa grande produção. As linhas de baixo e bateria não se movem e Conrad produz apenas algumas notas com efeitos. Eu sou um “runner” e ouço isto quando vou a correr. Após 45 minutos com esta música e a correr, entro em transe! Pode parecer que a música de Faust é estática, mas está sempre em movimento, não há estagnação. Como é música minimal, entra-se num certo nível de detalhe, onde a mesma nota não é tocada duas vezes da mesma forma. É preciso deixar-se ir. Com esta estética, há um momento em que a música se torna ambiental, é um espaço em que se tem de entrar e em que se mergulha numa nova dimensão, que já não é a dos músicos que tocam música. É um jogo com a concentração do ouvinte, que se perde e depois volta a ser apanhado. Quando toco também procuro coisas que estão fora da perceção, que me tiram da minha zona de conforto e abanam os ouvintes. Não se trata de violentar as pessoas, mas de as descentralizar. A perda de pontos de referência leva a uma maior disponibilidade para o que está a acontecer à sua volta, e permite-lhe senti-lo mais intensamente. Para mim, esta troca com o público é importante, fora das considerações comerciais de concertos polidos e previsíveis, onde as pessoas vêm para ouvir o que querem ouvir e que os artistas lhes dão. Esta é uma abordagem respeitável, mas não é a minha. Para mim, o desafio é sempre o mesmo, qualquer que seja o tamanho do palco, quero que as pessoas tenham a impressão de estar mesmo ao meu lado e que vibrem, mesmo que estejam sentadas longe na sua poltrona, há uma ideia de projeção e intimidade. No Jazz em Agosto, onde toquei com Abacaxi, gosto muito do auditório 2 porque ainda é de tamanho humano, o som é excelente e é possível entrar numa relação com a sala, até às últimas filas.
Paulinho da Viola: “Paulinho da Viola”
(Odeon, 1971)
Um universo muito diferente com um disco que me inspirou muito na criação de uma peça [de teatro] chamada “Coco”, onde fazemos sapateado. Paulinho da Viola é um cantor de música popular brasileira e este álbum é o equivalente ao “álbum branco” de João Gilberto. É um artista da nova onda brasileira, a bossa nova, com a diferença de que da Viola é negro, com outras raízes. João Gilberto é samba com harmonias ocidentais, no caso de da Viola há também isso mas também ritmos das comunidades. A canção de que gosto muito é “Para ver as meninas”, que eu uso na peça “Coco”. É um espetáculo que foi interrompido pela covid, e vamos voltar a fazê-lo novamente este ano. Já estive no Brasil várias vezes desde 2010 e em 2019 acuei com o Arcoverde (cidade no estado de Pernambuco). O samba de coco é um estilo específico desta cidade. Os instrumentos de percussão são timbalões, pandeiros, etc., mas o mais especial é que os dançarinos usam sapatos de sapateado, que parecem chinelos de dedo brasileiros mas com sola de madeira. Eu passei duas semanas com eles e ensinaram-me a sua técnica. Quando voltei, montei este espetáculo para dois músicos e três bailarinos, com músicos e bailarinos a tocarem sapateado juntos. É um projeto sobre transe. Há vestígios de samba de coco, misturado com noise e canções tradicionais portuguesas trazidas por uma música de Lisboa, Ana Rita Teodoro. Nestas canções portuguesas existe a influência da colonização árabe do século VII. E as danças do sapateado vêm de África, são danças de trabalho, que se referem à escravatura, não são folclóricas. Toda a ideia é a transformação de uma história dolorosa numa construção cultural, num ambiente opressivo. Tal como o jazz, é música dos desarraigados. É isso que me mantém ligado ao jazz, do tipo que vem da América e não da Europa. No jazz americano, pode sempre sentir-se esta vitalidade. Na Europa, e particularmente em França, o jazz passou de ser uma música de protesto a uma música burguesa, e todos agem como se não se passasse nada. Isto é problemático em termos do processo artístico, porque os músicos são apresentados como tendo escrito algo novo quando o que estão a fazer já foi escrito cinquenta vezes. Eu gosto de pessoas que fazem coisas 300% mas não surfam em fórmulas estabelecidas. Há músicos que saem de escolas onde foram treinados para serem músicos, mas não foram treinados para serem artistas, não é o mesmo processo. Basta olhar para os cursos dados no CNSM (Conservatoire National Supérieur de Musique) em Paris para compreender que o jazz se tornou uma música conservadora na Europa. É triste, porque passámos de uma música que reivindicava ideais políticos, que desbravava terrenos, para um conteúdo conservador e reacionário. Há professores que dizem “se queremos fazer coisas boas, temos de conhecer a tradição”, mas eu não sei de que tradição estão a falar, no contexto de um género que tem cerca de cem anos. Acabamos por ficar com pessoas que fingem, que imitam. Isto carece de honestidade. Este problema é particularmente verdadeiro em França, onde há mais dinheiro para a cultura, o que implica um grau de dependência de instituições com uma gentrificação que torna a música inofensiva, sem qualquer razão para existir. Acabamos por ficar com bolas de naftalina, entretenimento cultural. Em França, tocamos muito com Abacaxi, mas em lugares bastante especiais, para pequenas estruturas. Quanto aos festivais de jazz, tocamos no Sons d’Hiver e Banlieues Bleues, cujos programadores são pessoas de mente aberta. Em geral, não é fácil tocar a nossa música em festivais de jazz. Por vezes os engenheiros de som não compreendem o que fazemos e fazem comentários inapropriados, pelo que temos de explicar e ir para a guerra. Pela minha parte, o que espero de qualquer prática artística é que ela questione, abane e toque o espectador, que não se contente em simplesmente interpretar um programa. Eu faço a diferença entre “consumir” (o que também faço por vezes, seja música ou filmes) e assistir a ações artísticas, que deixam uma impressão, uma emoção, com elementos que nos ultrapassam. As causas podem ser estéticas ou políticas. Por vezes há obras que me tocam quando eu não esperava. Depende também da forma como a proposta artística é partilhada.
Como disse, passei tempo com eles e aprendi as suas práticas, por isso é música do coração. Estas são pessoas com quem mantenho contacto, que representam na minha mente o sol e o transe. A ligação surgiu porque eu já tinha começado a desenvolver um trabalho de pés em Acapulco Redux. Senti que tinha chegado ao fim de um processo, e estava à procura de uma forma de levar a música mais longe. Precisava de partir de outro lugar estético, deixando a estrutura da música experimental, que começava a cansar-me porque, tal como no jazz, é um meio, uma rede que tem os seus códigos, e passado algum tempo acabamos por compreender os códigos de um determinado meio e no fim aborrecemo-nos. Hoje quero viver num mundo onde os limites não são óbvios, onde não se preocupem muito com os códigos, mas onde a sensibilidade tem o seu lugar. Tiago, o amigo que me apresentou a Arto Lindsay, ligou-me a esta banda e pensou que eu estaria interessado. Ele enviou-me este álbum, e eu estava a pensar de onde viria o som percussivo. O seu trabalho está bem documentado, vi vídeos na net e tentei imediatamente contactá-los. Não tinha um endereço de e-mail, mas encontrei-os no Facebook, eles disseram “contacte-nos quando estiver no Brasil”. Por isso organizei outra viagem, durante a qual toquei com Arto na Bahia, e sozinho no Rio, São Paulo e outros lugares, e no final da viagem fui com Tiago a Arcoverde. Compreendo algum português mas não o falo, por isso foi bom que o meu amigo me tenha acompanhado. Além disso, o português nem sempre era compreensível, mesmo para ele. Musicalmente, uma vez alcançado um certo nível estético, preciso de sair da minha zona de conforto e procurar noutro lugar, em vez de fazer a mesma coisa durante dez anos. Algo me empurra para encontrar novas saídas. Por vezes sinto-me apertado num determinado meio onde os códigos são demasiado estreitos, qualquer que seja o género musical, e onde as pessoas limitam os seus gostos por princípio. Lembro-me de uma época no Instants Chavirés [sala de concertos em Montreuil]: se ouvisse música folk era uma pessoa a abater. Todos estes círculos passam o seu tempo a delimitar espaços artísticos, para dizer por exemplo “jazz é isto e não aquilo” porque corresponde a determinados códigos. A este respeito, a cena criativa americana já deixou para trás estas hierarquias, as relações internas entre grupos são repensadas e reconfiguradas. Continua a ser uma música viva e dinâmica, não uma música de museu. Por vezes vou a concertos de jazz em França, mas não ouço muita coisa que seja excitante. Não é apenas política, mas também uma questão de sensibilidades. Respeito todas as formas de trabalho. Há músicos conservadores que acreditam no que fazem e fazem-no com sinceridade. Os meus gostos artísticos são pessoais, eu não critico os dos outros, mas posso criticar as escolhas políticas. Prefiro situar-me numa estética em evolução. Há sempre coisas a descobrir, é isso que é excitante na vida de um artista. Neste momento estou a trabalhar numa nova criação, com arcos elétricos, vamos combiná-la com sapateado, também estou a ter aulas de canto, esta peça vai ser completamente diferente do que eu fazia antes. As pessoas que gostam do que eu costumava fazer podem ficar surpreendidas e não gostar desta nova direção, mas não faz mal. Não se trata apenas de música, mas de um espetáculo multidisciplinar, que responde ao meu interesse pela dança, pelo movimento, mas também pela pintura e literatura.
Sleaford Mods: “English Tapas”
(Rough Trade, 2017)
É “hip-hop da classe trabalhadora londrina”, com um sotaque muito acentuado. São dois homens que costumavam trabalhar em fábricas, e que se tornaram estrelas do hip-hop experimental. Um é um cantor, o outro faz bandas sonoras. No palco são enormes, o cantor envia uma energia louca, e o outro apenas pressiona a barra de espaço com uma cerveja na outra mão. A música é uma espécie de pós-punk-grunge, e o fluxo é violento, cru e honesto, com uma espécie de falta de jeito que me toca. Pelo menos isso foi verdade neste disco. Hoje em dia são muito conhecidos, a música ainda é fixe mas o rapper começa a cantar, não é bem a mesma urgência. É um disco que eu gosto de ouvir frequentemente quando estou em casa.
Entrevista realizada por ocasião de uma atuação de Julien Desprez a solo na Cave Poésie em Toulouse (dezembro 2022).