Editoras com história(s)
Sobre o espírito das cores e um ponto de exclamação supremo (III)
Na rubrica “Editoras com história(s)”, Sofia Alexandra Carvalho aponta o foco a uma editora fundamental da história do jazz, a Impulse! Records. Depois de um primeiro olhar sobre os primeiros anos da editora e de uma segunda parte sobre o impacto do produtor Bob Thiele (entre 1961 a 1969), nesta terceira parte olhámos para a história da editora de 1969 em diante.
Eternity is in love with the productions of time.
William Blake
“Long Way from Home” (BluesWay 6028), gravado em Março de 1969, foi a primeira produção de Ed Michel para a Impulse!. Seguem-se “Music Is the Healing Force of the Universe” [AS-9191], datado de 1970, e “The Last Album” [AS-9208], datado de 1971, de Albert Ayler, que misturam, de forma audaz e experimental, sons de guitarra rock, free jazz e poesia. Na verdade, o saxofonista não deixa de reconhecer a trindade avant-garde: “Coltrane as ‘The Father,’ Pharoah Sanders as ‘The Son’, and himself as ‘The Holy Ghost’.” (Kahn, 2006: 192)
Ed Michel, produtor (Pacific Jazz e assistente de produção em Riverside Records) e músico (baixista de Ash Grove, clube de música folk), contratado entre 1969 e 1975 pela ABC, seguiu as pegadas de Thiele e supervisionou centenas de sessões, reeditando material dos arquivos abundantes da Impulse!, mas já sem o recurso ao estúdio de Rudy Van Gelder. A sua postura de produtor, semelhante à do seu predecessor, reforça o apoio silente aos artistas, nestes termos: “I’ve always taken the point of view that the best producers are transparent.” (Kahn, 2006: 224) Testemunho desta postura não impositiva foram os dois dias de gravação, em 1970, com Ahmad Jamal para o álbum “The Awakening” [AS-9194], lembra o produtor: “At the end of the session he shook my hand and said, ‘I don’t get along with producers very well. You’re no problem!’ I said, ‘Thank you very much — neither are you.’” (Ibid.: 225)
As suas primeiras edições incluem nomes pouco conhecidos à época (os guitarristas Howard Roberts e Mel Brown, o organista Clifford Coulter, o vibrafonista Emil Richards e o duo Dave MacKay e Vicky Hamilton), pois a sua responsabilidade, para além de entregar um master à editora, era direccionada para os artistas, como sustentado pelo próprio (cf. Kahn, 2006: 217). Michel, tal como Steve Backer, promotor de rock e entusiasta do jazz, começa a usar técnicas de gravação e mixagem originalmente feitas para o mundo do rock (e.g.: close-miking; tape overdubbing; reverb; echo e phasing), procurando encontrar o equilíbrio certo entre a tecnologia e a sonoridade jazzística, pois para este produtor o jazz e os blues surgem como música performática (cf. Kahn, 2006: 219). Fiel ao design emblemático da editora, Michel não deixa de ficar desapontado com o facto de “This Rather Than That” [AS-9192] do vibrafonista-pianista Buddy Montgomery ser o último álbum a ostentar a lombada laranja e preta, traço distintivo da Impulse!.
“Shepp’s for Losers” [AS-9188] de Archie Shepp traz consigo uma combinação entre o standard jazz e as sonoridades funk. Porém, a produção conjunta de Ed Michel e Bill Szymczyk, em Agosto de 1971, “Antelope Freeway” [AS-9207] de Howard Roberts, conta com uma espécie de colagem musical, gravada à entrada de um restaurante (a cinquenta metros de distância, através de microfones Neumann) e com o som da guitarra de Roberts. O impacto do álbum foi nulo.
“Ptah, the El Daoud” [AS-9196], “Journey in Satchidananda” [AS-9203], “Universal Consciousness” [AS-9210] e “World Galaxy” [AS-9218] revelam as explorações de Alice Coltrane quer ao piano, quer no orgão e na harpa, combinando jazz, blues, ragas, cantos rituais e Stravinsky. O álbum “Universal Consciousness” traz consigo uma narrativa digna de relevo. A propósito de uma dificuldade no processo de edição, Alice Coltrane partilha qual fora a fórmula resolutiva encontrada:
“‘I’ll go home and meditate on it.’ She came back the next day and said, ‘I had a wonderful meditation. I talked to John’—who she often referred to as ‘the father’—‘and Stravinsky and Bach and we discussed how to edit it. Stravinsky told me what to do: ‘Make the cut right here’. I said, ‘Stravinsky’s crazy! It isn’t going to work!’ I tried it and you couldn’t hear the edit. It was transparent. I thought, ‘I’m never ever going to argue again!’” (Kahn, 2oo6: 229)
Entre 1969 e 1971, Michel produz Clifford Coulter (“East Side San Jose” [AS-9197], “Do It Now, Worry About It Later” [AS-9216]), Milt Jackson (“That’s the Way It Is” [AS-9189] e “Just the Way It Had to Be” [AS-9230]) e Sam Rivers (“Crystals” [ASD-9286]). Contudo, as produções com maior impacto contam com as figuras de Michael White, mais especificamente, “Pneuma” [AS-9221] e “The Land of Spirit and Light” [AS-9241], datados de 1972 e 1973, vários títulos de Sun Ra e gravações inéditas de Coltrane (e.g.: “Transition” [AS-9195], gravações de 1965 com o seu quarteto, e John Coltrane “Live in Seattle” [AS-9202]) encontradas por Michel nos arquivos da Impulse!.
Sob a exímia orientação de Michel apareceram na Impulse!, pela primeira vez, a edição de álbuns duplos, revelando a intemporalidade do catálogo da editora: em finais dos anos 70, inícios de 71, surgem “The Best of John Coltrane” [AS-9200], “Gabor Szabo: His Great Hits” [AS-9204] e “Chico Hamilton: His Great Hits” [AS-9213]. Michel lembra que a sua saída da editora se deu no início de 1975.
A atmosfera editorial dos anos sessenta continua nos anos setenta, assistindo-se a um cruzamento prolífero e profícuo entre rock e jazz, entre o vertiginoso e o funk. Em 1971, entra em cena Steve Backer, inicialmente como director e promotor da ABC. Ao conseguir atrair um público mais jovem e mais orientado para o rock, fruto do seu trabalho na Verve Records e depois na Elektra, Backer torna-se gerente da editora até 1973, data em que se junta a Clive Davis na Arista Records, criando uma chancela na editora dedicada ao jazz. Produziu, entre outros, Keith Jarrett, Gato Barbieri e Dewey Redman.
A sua marca na Impulse! encontra-se na criação de múltiplas séries de discos: uma, reforçando a presença de Coltrane enquanto força dominante da editora (“Impulsively!” [AS-9266-2], “No Energy Crisis” [AS-9267-2] e “Irrepressible Impulses” [IMP-1972]); outra, direccionada para instrumentos específicos (“The Bass” [ASY-9284-3], “The Drums” [ASH-9272-3] e “The Saxophone” [AS-9253-3]). Em 1972, Backer cria novas séries para celebrar a editora e a sua paleta inigualável de artistas: “Re-Evaluation: The Impulse Years”, que conta com as colaborações de Charles Mingus, McCoy Tyner, Sonny Rollins e Freddie Hubbard e, ainda, “The Best of John Coltrane, Vol. 2” [AS-9223-2], “The Best of Pharoah Sanders” [AS-9229-2] e “Reflection on Creation and Space” [AS-9232-2] de Alice Coltrane.
Além da criação de séries duplas, Backer reúne em tour vários artistas da Impulse!, marcando concertos em clubes de rock e campi universitários. Exemplo dessa iniciativa é a gravação de Barbieri em Buenos Aires e Rio de Janeiro, traduzida em dois álbuns populares “Chapter One: Latin America” [AS-9248] e “Chapter Two: Hasta Siempre” [AS-9263], uma combinação visionária que mistura música folk, tango e samba.
Em 1974, Backer reconhece o movimento descendente da Impulse!, mas ainda assim a editora continuará a surpreender os auditores futuros com a sua strong vision. De 1975 até 1977, a Impulse! conta com a colaboração de um produtor experiente, também fotógrafo, que abre caminho para uma vertente mais comercial, com traços de R&B: Esmond Edwards. O produtor sustenta que o passado da Impulse! se encontrava limitado a um público especializado e o seu intento era ampliar esse escopo para uma audiência distinta e mais direccionada para o groove jazz.
Nesta altura, a editora já não conta com orçamentos abundantes e o design distintivo surge apenas como uma memória pálida e longínqua. Edwards supervisiona o álbum “Sizzle” [AS-9316] de Sam Rivers e produz os últimos quatro álbuns de Keith Jarrett: “Mysteries” [ASD-9315], “Shades” [ASD-9322], “Byablue” [ASD-9331] e “Bop-Be” [ASD-9334]. O produtor ajuda, assim, a fixar a nova identidade da editora e, numa espécie de eco memorial de Taylor, assina com o ensemble Brass Fever. Contudo, foi com “Hard Work” [ASD-9314], um autêntico hit radiofónico de John Handy, datado de 1976, que a editora volta a respirar.
Em 1977, iniciam-se as negociações de venda da editora, que terminam em 1979, com a transferência da editora para MCA, uma editora conhecida, sobretudo, pela suas produções pop-rock. Em 1986, Ricky Schultz revitaliza o nome da editora, bem como o seu design mítico, com edições do saxofonista Michael Brecker e do pianista Henry Butler, quer em LP, quer em CD.
No ano seguinte, dá-se a produção de um projecto especial, sob a égide de Bob Thiele: “A Tribute to John Coltrane” [MCAD-42122], que conta com as presenças de David Murray, Pharoah Sanders, McCoy Tyner, Cecil McBee e Roy Haynes. Dois anos depois, surge no mercado uma série triádica, em formatos vinil e digital, que celebra a história da editora: “The IMPULSE! Collection” [MCA2-8026], “The Feeling of Jazz” [MCA2-8028] e “Fire Into Music” [MCA2-8032].
Em 1990, a MCA é absorvida pela GRP Records, editora de jazz fundada pelo compositor David Grusin e o produtor Larry Rosen, que continua a apostar na elevação da Impulse! ao seu estatuto inicial: “Impulse! Jazz A 30-Year Celebration” [GRD-2-101] e “Red Hot on Impulse!” [GRD-151], dois álbuns duplos que celebram a história da editora e os seus artistas.
Entre 1995 e 1999, a GRP Records não só inclui no seu catálogo álbuns de antigos artistas da Impulse! e de jovens artistas (e.g.: Diana Krall, Danilo Pérez, Eric Reed, Donald Harrison, Russell Malone e o grupo de acid jazz Groove Collective), como também expande as edições para descobertas de arquivo, editando The Duke Ellington Trio, datado de 1972, e reeditando Jimmy Rushing, George Russell, Johnny Hartman, Betty Carter e Shirley Horn, maioritariamente produzidos por Bob Thiele. Nesta altura, e graças à intervenção de Hollis King, designer da Verve Music Group [VGM] que estudou com o notável Milton Glaser, a Impulse! recupera um visual gráfico à sua altura.
O final dos anos 90 é pródigo em inúmeras fusões, criando a Vivendi Universal, posteriormente agrupadas pela Universal Music Group, que colocou a VGM como responsável pelo domínio do jazz. Em 2000, o arquivo musical da Impulse! torna-se um espaço partilhado com as editoras Verve, Decca, Commodore, Mercury, EmArcy, Chess e GRP Records. A VMG colocará artistas como Diana Krall e Wayne Shorter, sob a égide da Verve, deixando as reedições para a Impulse!.
Em 2005, num leilão de jazz em New York, são encontradas trinta e três fitas de gravação de Coltrane, incluindo uma versão de “A Love Supreme”, datada de 10 de Dezembro de 1964, entre outras pérolas musicais.
Em 2004, produzido por Ravi Coltrane, surge “Translinear Light” [Impulse B-0002191-02], o primeiro álbum comercial de Alice Coltrane em 26 anos. O álbum parte de um conjunto de visitas ao estúdio gravadas em 2000, 2002 e 2004 e apresenta diferentes configurações (duetos, trios e quartetos), contando com as colaborações de Ravi Coltrane, Oranyan Coltrane, Charlie Haden, James Genus, Jack DeJohnette, Jeff “Tain” Watts e Sai Anantam Ashram Singers, um coro que pertence ao ashram de Alice Coltrane.
A Impulse! não esqueceria o seu gigante: eis o tempo enamorado pela eternidade, numa tresleitura de Blake.