Wayne Shorter
Wayne Shorter: rumo ao desconhecido, mais uma vez
O saxofonista Wayne Shorter morreu no dia 2 de março, aos 89 anos. Convidámos Pedro Moreira – saxofonista e atual presidente do Hot Clube de Portugal, que trabalhou com o lendário saxofonista e compositor norte-americano – a falar-nos sobre o seu legado musical. Aqui fica o seu testemunho.
A notícia oficial do recente falecimento do saxofonista Wayne Shorter (1933-2023) dizia que ele iria agora continuar a sua viagem em direcção ao desconhecido. Acho a imagem bonita e adequada. Independentemente das convicções religiosas e metafísicas de cada um, e de imaginar o que acontece depois da morte, a verdade é que isso é o que Wayne Shorter fez a vida toda: percorrer o caminho menos explorado, desbravar sempre território desconhecido.
Com uma carreira ímpar como saxofonista, compositor, líder e sideman, é difícil fazer total justiça à sua influência na música dos séculos XX e XXI, tal foi o impacto do seu génio no desenvolvimento do jazz, nos músicos com quem ele tocou e no público que o ouviu.
A partir de finais dos anos 50 integra os Jazz Messengers de Art Blakey, onde se torna director musical e com quem grava cerca de duas dezenas de álbuns nos anos 60. Em simultâneo grava com o seu próprio grupo, nomeadamente uma série de álbuns seminais para a Blue Note. Mas é também nos anos 60 que ocorre uma dessas singularidades raras, em que os astros se alinham para que os acontecimentos tomem um rumo totalmente diferente: o momento em que se junta ao novo quinteto de Miles Davis, com Herbie Hancock, Ron Carter e Tony Williams, e que vai abalar os alicerces do universo musical. É o momento a partir do qual a música nunca mais seria a mesma. Este grupo iria levar o jazz tal como era conhecido, em termos formais e harmónicos, até aos seus limites, para depois os dizimar e abrir portas a outros mundos. Ouvir as sessões do “Live at Plugged Nickel” é assistir ao fim de um mundo e à criação de outro. Shorter foi fundamental para definir e cristalizar o conceito musical neste processo.
Como herdeiro deste quinteto, torna-se um dos impulsionadores do jazz eléctrico e de fusão, e os anos 70 serão marcados pela sua colaboração com o pianista Joe Zawinul nos famosos Weather Report, grupo que iria durar até meados dos anos 80.
A sua carreira não mais parou, nomeadamente com a recriação do seu grupo a partir do final dos anos 90, com Danilo Perez, John Patituci e Brian Blade, formando um quarteto com o qual ele passaria a tocar e a gravar praticamente até ao fim dos seus dias.
É difícil descrever em poucas palavras as suas características musicais: desde logo o seu som, verdadeiro espelho da alma, na sua singularidade um bom exemplo daquilo que Roland Barthes descreve como o grain de la voix, mas também a sua articulação e fraseio. Herdeiro da tradição do hard bop, cedo se torna estilisticamente inclassificável, sendo os seus solos praticamente impossíveis de transcrever (à semelhança do que acontece com outros verdadeiros originais, como Eric Dolphy). O seu conhecimento e aventureirismo harmónico, reflectido na riqueza das suas composições que continuam a apaixonar todos os músicos de jazz são uma das suas imagens de marca. Tudo isto com uma capacidade de criação melódica que plana livremente sobre as restrições do voice leading académico.
Shorter representa em grande medida a expressão em estado puro. Noutros músicos ouvimos notas, ritmos e frases musicais, na sua música ouvimos gestos, impulsos, timbres. Por vezes de forma arrebatadora. Numa das gravações ao vivo do grupo V.S.O.P., a seguir a um solo incrível do saxofonista, ouve-se a voz de Herbie Hancock a dizer, longe do microfone, «Hey Wayne, that was beautiful man, beautiful!».
Tive a sorte de conhecer, trabalhar e conviver com Wayne Shorter, nas gravações do álbum “Alegria” (Verve, 2003, gravado em 1999/2000) e na inauguração do Porto 2001 com a Orquestra Nacional do Porto e o trio de Mário Laginha. Era na altura assistente musical de Robert Sadin, o maestro e produtor musical de Herbie Hancock e Wayne Shorter. Ajudei a fazer a adaptação e preparação das partituras a partir das orquestrações originais do próprio Wayne e passei longas horas a trabalhar com ele nos detalhes labirínticos das suas partituras.
O período não era fácil para Wayne Shorter. Em 1996 tinha morrido a sua primeira mulher, Ana Maria, na famosa tragédia do TWA 800. Desde o acidente até à gravação de “Alegria”, tinha gravado só um álbum, o magnífico “1+1”, em dueto com Herbie Hancock. Estava ainda a recompôr-se. Na altura eu estava longe de imaginar que na realidade era um momento muito importante na sua já longa carreira: este período, e este álbum em particular, marcou o regresso à actividade intensa com o seu próprio grupo, o que não acontecia desde a mítica década de 60. Com efeito, desde então ele esteve mais envolvido em colaborações do que propriamente dedicado aos seus projectos pessoais: Weather Report, Milton Nascimento, V.S.O.P., Joni Mitchell.
Foi um grande privilégio passar várias semanas com ele no estúdio Avatar em Nova Iorque. Ver e ouvir aqueles músicos a trabalhar, a gravar take após take, a sua criatividade, entrega, consistência, a ética de trabalho, foi de facto uma experiência muito inspiradora. Guardo especial memória de longas conversas fora de horas, por vezes nas pausas de gravação pela madrugada fora, quando ficávamos os dois no estúdio e ele me falava de muitas coisas, desde as saudades que tinha de Portugal às conversas com John Coltrane quando ia passar o Thanksgiving a sua casa nos anos sessenta e em que ficavam os dois a tocar pela noite fora, um ao piano e outro no saxofone, com Coltrane a manifestar a frustração de não conseguir tocar nos agudos e nos graves ao mesmo tempo... (se fosse possível viajar no tempo, estes encontros seriam para mim, sem dúvida, um destino prioritário). Posteriormente voltei a estar com ele no Porto 2001, como referi acima, e, mais tarde, no Guimarães Jazz 2006, num concerto que deixou todos os presentes sem fôlego durante cerca de duas horas, tal a intensidade e energia da música que saía a jorros do seu saxofone. Foi a última vez que estive com ele.
A música dele continuou a evoluir e culminou numa obra prima chamada “Emanon” (Blue Note, 2018), um tríptico em que ele junta várias paixões da sua vida, o saxofone, a orquestra, improvisação, composição, e ainda uma novela gráfica. É um monumento à criação e expressão musical em que o ouvimos em vários contextos, em estúdio, ao vivo, em quarteto, com orquestra, a solo. Olhando a posteriori, ganha contornos de testamento musical, é a sua Oferenda Musical, tal como a que J. S. Bach, que ele tanto admirava, nos deixou no final da sua vida.
Não tenho dúvidas de que Wayne Shorter continuará o seu caminho em direcção ao desconhecido, nesta ou noutra dimensão. A perda, irreparável, é que de agora em diante as suas descobertas deixarão de ser partilhadas connosco. Valha-nos a magnífica obra que ele nos deixou.
O autor segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.