, 15 de Fevereiro de 2023

Os malditos anéis de Thelonious (ou a perda da Aura)

texto: Vítor Rua

Irei argumentar que é em certas cópias musicais, que reside a aura de uma obra; que por vezes, é no contacto com o original, que ocorre uma aparente perca dessa aura; e irei analisar a validade, do ponto de vista musical e na actualidade, da teoria da "A Obra de Arte na Época da sua Possibilidade de Reprodução Técnica", de Walter Benjamin.

1. A aura sónica 

Pode um som ter aura? Antes de responder a esta questão, temos de questionar inicialmente, o que entendo por som e por aura. “A música é, ou reside em, som. Mas não ajuda dizê-lo, se não soubermos o que é o som.” (Scruton, 2007:171)

Som é todo o evento audível. É um acontecimento que se desenrola no tempo. "Som" - diz-nos John Tilbury - "é tudo o que pode teoricamente ser ouvido. Os cães conseguem ouvir sons (ultra-sons) que as pessoas não podem[1]". Já para Giancarlo Schiaffini “Som” é “o átomo da música[2]”, ou seja, a fonte primordial da musicalidade e a ferramenta do músico. Eddie Prevóst diz-nos que ““O som é a evidência audível de algum tipo de movimento físico”. Curiosamente, novas teorias do som, contrariam esta afirmação de Prevóst. Para Casey O’Callaghan, por exemplo,

“Os sons são objetos públicos de percepção auditiva. Quando um carro liga, ele faz um barulho; quando as mãos batem palmas, o resultado é um som. Os sons são o que ouvimos durante os episódios de audição genuína. Os sons têm propriedades como altura, timbre e intensidade. Mas isso nos diz pouco sobre que tipo de coisa é um som – a qual categoria metafísica ele pertence”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:26). 

O’Callaghan acha – tal como eu – que de pouco serve sabermos que o som tem propriedades como a altura, o timbre e a intensidade, pois isso não nos diz a que categoria metafísica o som pertence. Mas quando diz que quando batemos palmas produzimos um som, está a pressupor que alguém escuta esse som. Se não existir receptor não há som mas apenas vibração, o que sugere que o som deveria ser classificado como uma qualidade secundária, como faz Locke, que sustenta que 

“Os sons são propriedades dos corpos. Mais especificamente, ele sustentava que os sons são qualidades secundárias: qualidades sensíveis possuídas pelos corpos em virtude do <tamanho, figura, número e movimento> de suas partes, mas ainda assim distintas desses atributos primários”. (Essay, II.8)” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).

Ou seja, em vez de ver os sons como eventos, Locke vê-os como propriedade dos objectos (fonte sonora) e classifica-os como qualidades secundárias, isto é, qualidades subjectivas e dependentes da mente mas causadas por um objecto percepcionado. Para Robert Pasnau, os sons são “propriedades físicas de objetos externos comuns” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27). 

Pasnau afirma que “os sons são propriedades dos objetos, embora ele reduza o som à qualidade primária que é a base categórica do poder de Locke, isto é, a vibração ou movimento de um tipo particular”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).

Esta não é a visão da maior parte dos físicos da acústica.  Estes cientistas e físicos têm uma visão do som completamente diferente. Para estes, o som “é uma perturbação que se move através de um meio como o ar ou a água como uma onda de compressão longitudinal. Objetos vibrantes produzem sons, mas os próprios sons são ondas. Quando ouvimos sons, não ouvimos imediatamente os corpos ou as propriedades dos corpos; ouvimos o padrão de diferenças de pressão que constitui uma perturbação de onda no meio circundante” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).

Os objectos vibram produzindo ondas sonoras, mas isso não significa que nós ouçamos os objectos em si ou as suas propriedades. Segundo O´Callaghan, existem duas teorias sobre o som: a teoria do som como ondas (Aristóteles) e a teoria  do som como eventos. Para Aristóteles “o som é um movimento particular do ar” (…) “tudo o que faz um som o faz porque algo atinge outra coisa em outra coisa novamente, e este último é o ar”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:27). 

Para os pensadores da visão do som como eventos (que é a minha visão), os sons são “eventos particulares de um certo tipo. São eventos nos quais um objeto em movimento perturba um meio circundante e o coloca em movimento. As batidas e os golpes não são os sons, mas são as causas dos sons. As ondas no meio não são os próprios sons, mas são os efeitos dos sons. Os sons assim concebidos possuem as propriedades que ouvimos como possuindo: altura, timbre, intensidade, duração e, como veremos, localização espacial. Quando tudo vai bem na percepção auditiva comum, ouvimos os sons como eles são”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:28). 

Mas que tipo de coisa é o som? Nudds e O´Callaghan dizem-nos que “Os sons estão entre as coisas que ouvimos. A experiência auditiva é dirigida aos sons. Os sons, portanto, são objetos intencionais de audição”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:4).

 Na minha tese de mestrado, tentei enumerar os diferentes tipos de sons que existem: dos infra aos ultra-sons, dos sons eléctricos aos electrónicos, do silêncio ao ruído, do som acústico ao som electrónico, todos estes eventos eram som. Sendo assim, não existe nada que nós ouçamos que não seja som. 

“É plausível dizer que sempre que você ouve algo, e o que quer que você ouça, você ouve um som. É duvidoso que você possa ouvir algo sem ouvir um som”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:5).

Vários filósofos do som, impressionados pela natureza temporal do som, argumentam que “sons são eventos de um certo tipo”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:6). O´Callaghan adianta que a presença de um medium “é uma condição necessária não apenas sobre a perceptibilidade, mas sobre a existência de um som, e propõe que os sons são eventos nos quais objetos vibrantes ou corpos em interação perturbam ativamente um meio circundante”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:6). 

Após estas várias definições de som apresentadas aqui por estes filósofos da música e a minha apresentada no início deste meu sub-capítulo, podemos agora discutir onde este se localiza: na fonte, no medium ou no receptor. Este é um outro ponto de discórdia entre diversos pensadores, para além dos debates sobre se os sons são dependentes da mente ou independentes desta; se os sons são indivíduos ou propriedades; se são do tipo-objecto ou do tipo-evento. Vejamos, então, o que nos dizem Nudds e O´Callaghan sobre esta matéria: “Uma discordância principal entre os relatos de som baseados em ondas, como os de Nudds, Sorensen e O'Shaughnessy (ver também Hamilton, Capítulo 8) e os relatos baseados em fontes, como os de Pasnau, Casati e Dokic, e O' Callaghan (ver também Matthen no prelo) diz respeito às localizações dos sons. Os primeiros localizam os sons no meio e implicam que os sons se propagam e, portanto, ocupam diferentes locais ao longo do tempo ou viajam. Os últimos sustentam que os sons estão localizados em ou perto de suas fontes e não viajam através do meio – os sons viajam apenas se suas fontes o fizerem”.(Nudds & O´Callaghan, 2009:7). 

Depois avançam que “Os teóricos dos sons distais geralmente argumentam que os sons parecem estar localizados na experiência auditiva ou perto de suas fontes. Eles afirmam que os sons não parecem viajar da fonte em direção aos seus ouvidos, não parecem permear o meio em condições normais (talvez o façam em circunstâncias especiais, como em uma discoteca barulhenta) e não parecem estar próximos ou nas orelhas. Em vez disso, eles afirmam que os sons auditivos parecem estar onde as coisas e os eventos que os geram estão localizados. Se percebermos que os sons estão localizados distalmente, e se os sons estão mais ou menos onde parecem estar, então os sons não viajam pelo meio como implicam os relatos das ondas. Os teóricos distais afirmam que, a menos que percebamos erroneamente as localizações dos sons, os sons não viajam pelo meio como as ondas de pressão ou no meio e implicam que os sons se propagam e, portanto, ocupam locais diferentes ao longo do tempo, ou viajam. Os últimos sustentam que os sons estão localizados em ou perto de suas fontes e não viajam através do meio – os sons viajam apenas se suas fontes o fizerem”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:8).

 Já Hamilton,  por exemplo,  pensa de forma diferente e argumenta que “ouvimos apenas de onde vêm os sons que viajam, e não de onde eles estão”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:8). Os teóricos que pensam como Hamilton afirmam que “As ondas físicas não são os sons, e os sons não viajam com as ondas, mas as ondas fazem a mediação entre os sons e os ouvintes”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:8).

Outros autores defendem – como eu – que a localização dos sons (na altura em que os ouvimos) se encontra num estágio diferente na cadeia causal que medeia entre a fonte e o receptor: “Essa cadeia causal começa com as atividades das coisas no ambiente, leva ao movimento ondulatório em um meio, continua com a estimulação dos órgãos sensoriais auditivos e culmina nas experiências auditivas. As teorias distais localizam os sons que ouvimos em um estágio anterior na sequência causal do que as teorias proximais”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:8-9). 

Será que quando escutamos sons nos apercebemos de alguma forma do espaço onde estes agem?

“Seria difícil negar que a audição transmite informação espacial”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:9). Alguns teóricos defendem “você ouve sons localizados a certa distância em uma determinada direção e, assim, aprende sobre, e talvez até ouça, as localizações de suas fontes”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:9).

 Desse modo dizem-nos  “Sob tais condições, a experiência auditiva pode ter conteúdo espacial ou representar características espaciais”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:10). Nudds, por exemplo, argumenta  “que as fontes sonoras, em vez dos próprios sons, são experienciadas auditivamente como localizadas distalmente. Isso acomoda a evidência empírica sobre a localização auditiva sem aceitar que os próprios sons são experimentados para serem localizados”.(Nudds & O´Callaghan, 2009:10).

Alguns teóricos do som referem “localizações de fontes sonoras são fornecidas pelas localizações audíveis de sons em suas fontes”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:10).

 Por contraste com esta visão, alguns pensadores que atribuem “conteúdo espacial para experiências auditivas sustentam que a audição atribui propriedades espaciais às fontes sonoras”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:10). Quando ouvimos o som de uma bola de andebol a bater no chão de um pavilhão, ouvimos só o som da bola ou ouvimos também o som do espaço onde este se realiza? Segundo O´Callaghan “ao ouvir o som de passos, posso também ouvir o espaço fechado em que eles estão sendo levados”. (Nudds & O´Callaghan, 2009:12).   

A localização do som é um debate recente na nova teoria do som e é algo com que alguns pensadores, especialmente no âmbito da filosofia da música, têm tentado lidar. A acústica diz-nos que o som consiste em ondas que viajam da fonte sonora até aos nossos ouvidos. Actualmente há quem discorde deste ponto de vista (como vimos anteriormente) e tente dar uma nova visão à localização do som. Creio ser muito importante esta discussão e o facto de haver cada vez mais teóricos interessados nesta problemática é, certamente, um sinal dessa importância. Os sons estão por todo o lado e precisamos de saber como chegam até nós e de que forma os apreendemos e, especificamente, qual a importância da fonte sonora, do medium e do receptor nesta manifestação sónica. Esta é uma matéria que me parece pertencer mais à ontologia do som do que à acústica.

Agora que já temos uma caracterização mais aprofundada sobre o conceito de som, será importante esclarecer, a que tipo de som nos referimos, quando levantamos a questão inicial "será que o som tem aura?". E o som a que me refiro, é um som a que intitulo de "som identidade". Mais uma vez, este conceito, identidade, remete a outros, como autenticidade, estilo, génio, valor, culto[3] ou canône. O que pretendemos afirmar quando dizemos que "o som do Miles Davies é inconfundível"? O que é "o som Coltrane"? E "o som Hendrix"? O que leva as pessoas a dizerem que "o som dos Beatles é diferente do som dos Rolling Stones"? E o que é "o som Karajan"? Em que difere o som de Ravi Shankar de um outro tocador de sitar? Afinal que tipo de som é este e de que forma o podemos classificar? 

Comecemos por investigar a importância da instrumentação: de que forma é importante a escolha do instrumento ou instrumentos para obtermos este som identidade? O som do trompetista Jon Hassell é constituído por ele tocar com 50% de som do instrumento e 50% som de ar; depois usa um processador de som (Eventide) que é um harmonizador (cria várias notas a partir de uma só e estas – as notas – estão em relação harmónica umas com as outras; e, finalmente, temos a parte melódica: as escalas ou modos que ele escolhe para o seu fraseado musical.

Mas será que um outro músico, com o mesmo instrumento, com o mesmo processador e usando as mesmas escalas e modos de Hassell, soa como este? É provável que sim. Mas, especialistas irão sempre identificar o original do imitador. Da mesma forma que existem centenas ou mesmo milhares de pianistas a tentarem imitar Keith Jarrett e, mesmo assim, conseguimos distinguir o original das imitações. É como um imitador de vozes de famosos: é uma voz semelhante (tonalidade, expressão, timbre) mas não é igual. Falta-lhe autenticidade.

Podemos assim afirmar que o facto de dois músicos usarem instrumentos iguais, ou de se usarem as mesmas escalas ou modos, não faz com que soem igual, que tenham o mesmo som. No caso de um Maestro, o caso é ainda mais complexo: o Maestro não toca nenhum instrumento, os músicos são sempre diferentes e as músicas interpretadas podem estar separadas temporalmente por séculos. No entanto, mesmo assim, conseguimos distinguir se uma orquestra está a ser dirigida por este ou aquele Maestro. 

Então, se o som identidade não é caracterizado pelo som do instrumento; se não tem a ver com o músico ou os músicos envolvidos (no caso de um Maestro e de uma orquestra); e se não tem a ver sequer com a escolha das músicas ou das notas, escalas, ritmos, nelas contidas, o que é que nos faz identificar um som de um músico e diferenciá-lo do som de um outro, tal como uma mãe pinguim consegue descortinar o som da sua cria no meio de milhares de outras crias? Talvez a resposta a esta questão – que não é simples –, seja a de que o som identidade é uma mescla de todos estas variantes: instrumentação, técnicas instrumentais, musicalidade, timbre, ritmo, e toda uma série de idiossincrasias sónicas do indivíduo ou indivíduos produtores do som musical.

No que diz respeito à aura, musicalmente e do ponto de vista musicológico, ela surge associada a outros conceitos, como os de “génio[4]", "culto", "valor[5]", "canône[6]", "identidade[7]" ou "autenticidade[8]". A autenticidade, é muitas vezes invocada por Adorno, embora de forma complexa. Para Adorno, a autenticidade de uma obra de arte está localizada na consistência do seu material e na sua lógica interna. Para Benjamin "A autenticidade de uma coisa é a essência de tudo o que ela comporta de transmissível desde a sua origem, da duração material à sua qualidade de testemunho histórico" (Benjamin, Walter, 2005:3). Na Pop music, por exemplo, parece ser indiferente escutarmos um cantor ao vivo numa performance ou escutar em casa num CD com auscultadores, pois a forma como a voz do cantor é gravada, é capaz de nos transmitir uma aura de autenticidade, através de uma sensação de intimidade ou afastamento, recorrendo ao uso da reverberaçãoNo entanto, o facto de esse cantor pertencer à indústria – a chamada "música gastronómica"' como lhe chamou Umberto Eco na sua "Obra Aberta" –, pode pôr em questão a aura: "Isso fica mais evidente no papel do cantor e compositor, no qual ouvimos e sentimos uma linha direta de comunicação do compositor, por meio da performance ou da gravação, para o ouvinte. Isso é claramente definido na música de Bob Dylan, por exemplo. A intensidade bruta de a voz indica uma experiência pessoal e uma profundidade de significado que transmite uma aura de autenticidade. No entanto, o fato de a música de Dylan estar contida em uma indústria cultural e ser comercializada como uma mercadoria de consumo questiona simultaneamente essa aura”. (Beard, Gloag, 2005:14)

E quando dizemos que uma obra musical como a Nona Sinfonia de Beethoven, está envolta de uma aura, a que Nona Sinfonia nos estamos a referir? Ao manuscrito original de Beethoven, ou seja, a partitura? Ou à primeira interpretação dessa peça, que foi pessimamente mal executada, e mal recebida pela crítica na época? Ou às milhares de diferentes gravações existentes actualmente dessa obra?

Benjamin caracteriza a aura num espaço e num tempo. Muitas vezes, é com o tempo que determinada obra de arte adquire uma aura. Da mesma forma, o espaço é, segundo Benjamin, determinante para a existência de aura. Uma Missa de Gesualdo, interpretada numa Catedral, pode estar envolta numa aura, que poderia ser inexistente se esta fosse interpretada num campo de futebol. Da mesma forma, quando o violinista Joshua Bell[9], toca violino na porta de um Metro em Washington durante cerca de 47 minutos, e quase ninguém repara nele, será que se pode falar de uma perca da aura (como questionou José Bragança de Miranda[10])? Veja-se o caso da pedinte/cantora conhecida por Dona Rosa, e que um dia estando na Rua Augusta a cantar acompanhada somente por ferrinhos (triângulo), um músico e produtor austríaco ouviu-a e, tendo ficado emocionado, convidou-a a participar num concerto de world music em Marrocos, onde actuavam também as Vozes Búlgaras (com quem mais tarde viria a colaborar), e que lhe trouxe uma fama e a lançou numa série de concertos internacionais em festivais de renome, bem como a gravação de três CD's numa prestigiada editora alemã. O que é que aconteceu aqui? Como é que no caso do virtuoso e famoso Joshua Bell os transeuntes parecem ter ignorado qualquer aura existente naquele acto musical, e no caso da desconhecida e amadora Dona Rosa, num ambiente semelhante ao do excelente violinista, houve pelo menos uma pessoa, a parecer ter reconhecido na sua arte, uma aura. Só que, a Dona Rosa, ao contrário do insucesso de Joshua num território adverso, teve uma enorme receptividade pelo público e critica, nas salas de concerto por esse mundo fora. Dir-se-ia que, ao retirar-se a Dona Rosa do seu contexto original (a rua), poderia pensar-se que, a existir nela alguma aura, esta se perderia. Não foi o caso. E, provavelmente não seria o caso também no caso do metro de Washington, se em vez do violinista Joshua Bell, tivessem escolhido o saxofonista John Zorn, ou o baterista Sunny Murray, e isto porque a forma destes tocarem, e a intensidade sonora que estes dois instrumentos conseguem realizar, com maior probabilidade, não iria deixar indiferentes as pessoas que por lá passassem. Por vezes, estes testes, valem o que valem, e deles se podem retirar variegadas conclusões.   

2. Em busca da aura perdida

Walter Benjamin refere a inexistência de aura numa cópia de uma obra de artereproduzida por meios técnicos. Fica no entanto claro, durante todo o seu ensaio "A Obra de Arte na Era da sua Possibilidade de Reproducao Técnica", que ele se refere mais à fotografia e ao cinema ou à pintura, do que à música, à qual faz uma breve alusão.

"Embora tenha proposto historicizar a experiência sensorial em geral, ele pensou e escreveu principalmente em termos de fenômenos visuais. Não obstante a amplitude sugerida pelo título de "A obra de arte na era da reprodução mecânica", as principais preocupações de Benjamin eram a fotografia e o cinema, e ele fez apenas algumas referências fugazes à gravação de som ou experiência auditiva".  (Sound In The Age Of  (Sound In The Age Of Mechanical Reprodution, David Suisman and Susan Strasser, University of Pennsylvania Press, 2010:5).

Sobre a perda da aura, gostava de relatar uma experiência ocorrida comigo, mas que foi vivida de forma similar por outras pessoas que eu conheço, e que diz respeito ao músico de jazz Thelonious Monk. A sua forma peculiar e idiossincrática de tocar piano, que se pode caracterizar de forma resumida como sendo sincopada, com recorrência ao uso de intervalos de sexta e de nona; notas que nos soam a erros; bem como – e esta será a peculiaridade sua mais importante – os silêncios enormes entre as notas e acordes, em alguns dos seus solos. De referir que eu, e muitos como eu, conheciam a obra de Monk, pelos seus discos, e nunca o tinha visto tocar ao vivo ou em filme.  

Aconteceu-me então criar uma aura em volta de Monk, e da sua técnica pianística. E duas coisas sobressaíam na criação dessa aura: as tais notas "erradas", e os longos silêncios entre os sons (de referir que no período do chamado bebop, os músicos de jazz solavam recorrendo ao uso de muitas notas e com muita rapidez). "Como chegou ele aqui?", questionava-me; "a estes silêncios e estas notas erradas?". E uma aura instalou-se. 

Até que, quando assisti finalmente a um concerto do Monk (estar perante o original, em oposto ao contacto pela cópia do disco), observei que ele usava imensos anéis nas duas mãos. E à medida que vai tocando o piano, os anéis vão escorregando pelos dedos; e ele pára para ajeitar os anéis e volta a tocar; e volta de novo a parar para ajeitar os anéis. E de repente, damo-nos conta que uma explicação para os "misteriosos" silêncios e para as supostas notas "erradas", são os anéis, que parecem cumprir um papel aparentemente destabilizador, mas muito importantes para aquilo que afinal ajuda a caracterizar o estilo de Monk.

Mas que têm afinal os anéis do Monk a ver com a aura? É que a aura que eu tinha criado em volta daqueles silêncios e notas "erradas" (que sempre supus serem resultado de uma racionalização), parece ter desaparecido no contacto com o "original", com o "desapontamento" de ver, afinal, que a explicação para tal inventividade era afinal devida ao uso de anéis (de referir que eram anéis grandes), e ao "desconforto" de ter de tocar com eles. Parece-me que, ao tomar conta da realidade perante o "original" (ver tocar em vez de ouvir tocar), despoletou um sentimento idêntico a de como quando nos explicam o truque de ilusionismo que acabamos de assistir. Há uma desilusão. Como quando nos dizem que não existe Pai Natal. Em resumo: o contacto com o original, veio de certa forma perturbar a aura que eu tinha criado em volta de Monk. 

Pode-se especular se Monk usava os anéis por uma questão de moda, vaidade ou estilo, ou podemos acreditar que o uso dos anéis seria uma coisa pensada, com o intuito precisamente de provocar aquele efeito: os silêncios e notas "erradas". Mas, quer se opte por acreditar numa ou noutra hipótese, duas coisas ocorrem: por um lado existe a tal perda da aura, mas por outro lado parece que uma outra aura se instala, resultado da assimilação deste novo dado. Uma "nova" aura nasce, quando a outra "morre", numa espécie de efeito de fusão.

3. Reprodução: analógico versus digital

Durante o período de 1985 e 1989, os Telectu[11], efectuaram as suas gravações de forma analógica em suporte de cassete áudio, e posteriormente realizavam uma cópia digital para cassete vídeo. Ora, o que é interessante neste processo, era que a cópia (cassete vídeo) era mais realista (autêntica) que o original (cassete áudio). No original analógico, o som surgia filtrado (certas frequências desapareciam), e a recriação do medium onde tinha sido efectuada a gravação surgia confusa. Já na cópia digital, o som surge brilhante (frequências ocultas no original reaparecem), e repõe de forma precisa o espaço (medium) onde a gravação foi efectuada. Mas, antes de relatar o caso que me levou a invocar esta situação, talvez seja importante caracterizar o que entendo por som analógico e som digital, o que significa para mim a gravação (som gravado) e reprodução sonora (som reproduzido), bem como a importância do medium (som medium). 

Aquilo a que chamamos vulgarmente de som gravado, na realidade não é de todo um som. São apenas sulcos num vinil, relevos numa banda magnética, ou 0´s e 1´s num disco rígido. Um som qualquer que seja registado - seja de forma analógica (mecânica ou eléctrica) – ou digital, passa a existir como data. Aquilo a que chamamos de som gravado, não é mais que o registo de informação variada e complexa de vibrações num meio elástico. Mas não é som. É de novo som quando reproduzido e escutado por seres com sistema auditivo. É de referir que as plantas reagem ao som e não têm sistema auditivo. O que nos leva a imaginar uma outra forma de escutarmos ou sentirmos som. Um som gravado é como um livro à espera de ser lido. É um som em stand-by. É um som que foi som e que pode voltar de novo a ser som, e quando isso acontece deixa de ser um som gravado para passar a ser um som reproduzido. Assim, um som gravado de um violino, deixa de ser audível e passa a ser similar ao som de notas musicais escritas para violino numa partitura, ou seja, passa a ser um som fixo; uma memória de um som. Fica num estado de "não-som" até ser reproduzido. E quando é reproduzido, passa a existir de novo como som audível que outrora foi, embora nunca seja idêntico ao original (pelo menos até à actualidade isso ainda não foi conseguido por muito próximo que estejamos de o concretizar). Um som gravado pode ser reproduzido de forma analógica ou digital. Seja qual for o modo de reprodução, a escuta é sempre realizada pela emissão do som por altifalantes.

Quando dizemos que um som é analógico ou digital, a que nos estamos na realidade a referir?

Uma das possíveis respostas é que nos estamos a referir à forma como é registado ou reproduzido qualquer tipo de som (analógica ou digital); outra é a de que nos referimos a um som emitido por um instrumento analógico (e.g. sintetizador analógico), ou por um instrumento digital (e.g. o sampler). Existem duas formas de registar um som: o processo analógico: por via mecânica (e.g. o gramofone de Edison) ou por via eléctrica (microfone, transducer e um amplificador de sinal), e o processo digital: por via de gravadores como o Dat, mini-disk, mp3, ou instrumentos como o sampler que regista os sons de forma digital.

A gravação analógica regista de forma mecânica ou eléctrica (criando uma onda mecânica ou eléctrica análoga à onda do som original) qualquer som. A gravação digital regista de forma numérica (0´s e 1´s) qualquer som. Um som registado por processo analógico e o mesmo som registado por processo digital, diferem um do outro quando reproduzidos, apenas qualitativamente. E por "qualitativamente" referimo-nos ao timbre. Existem audiófilos que defendem que o som analógico é mais "quente" que o som digital e que o som digital é mais "brilhante" que o som analógico. Mas o que é um facto, é que essa diferença qualitativa é minimal. Em experiências efectuadas por dois psicólogos do som em 1997[12], com cerca de sessenta audiófilos, de forma a testar se estes se apercebiam das diferenças entre som reproduzido de forma analógica da digital, apenas quatro detectaram essa diferença. E isto, em 1997. Hoje a tecnologia avançou imenso e essa, já de si, minimal dissimilitude, é na actualidade ainda mais ínfima. Mas a existência destes dois tipos de sons é uma realidade, e por muito similares que nos pareçam aos ouvidos, são na realidade dois tipos de sons bastante diferentes.

E qual é a importância do medium (som medium)? É importante, por exemplo, na reprodução da perspectiva (espacialização). Diz-se "O som da Catedral de São Marcos é diferente do som da Catedral de Notre Dame. A que "som" nos referimos quando falamos deste tipo de sons? Referimo-nos não ao som da fonte sonora, mas sim ao som do medium. Mas podemos realmente falar de um som medium? A visão tradicional do som diz-nos que o som são ondas que viajam no medium e que o som se localiza no medium. Mas o medium em si não é a fonte sonora. Apenas processa o som. Para existir som é necessário um medium e, pelo menos inicialmente, uma fonte sonora. Como exemplo, imaginemos um órgão que é tocado na Catedral de Notre Dame: o órgão é a fonte e a Catedral é o medium onde o som do órgão se realiza. Mas, fora da Catedral, o som que escutamos é o som de um órgão que imaginamos estar dentro da Catedral, é esta que emite agora o som que escutamos. A Catedral é agora uma fonte sonora e o meio ambiente (cidade, campo, praia, deserto), é o medium desse novo som. Esse novo medium (e.g. imaginemos uma cidade), tem um som, que é constituído de biliões de sons de diferentes fontes sonoras e seu respectivo medium. Como aquelas bonecas russas que se desmultiplicam quando abrimos a maior. O primeiro medium de um instrumento como a guitarra acústica é a sua caixa de ressonância e só depois vem o segundo medium: o meio ambiente onde o som se realiza.  Durante um concerto de guitarra clássica, dizemos que estamos a escutar "guitarra"; a fonte sonora é a guitarra; o medium é a sala de concerto (de notar que a caixa de ressonância da guitarra, é, per se, já um medium em relação às cordas da guitarra que realmente são a fonte do som); mas para alguém que esteja no corredor ou no hall da entrada dessa mesma sala de concerto, o som filtrado que lhe chega aos ouvidos, já não é somente o da guitarra; é também o som ambiente da sala e do público (tosses, ruídos); assim, podemos dizer que a fonte sonora, já não é a guitarra - para esse indivíduo –, mas sim toda a sala de concerto; mas para alguém fora do edifício, no passeio cá fora, o som que lhe chega, é o do próprio edifício; o edifício é agora a fonte sonora e a rua o medium; mas para alguém fora dos limites da cidade onde se está a realizar esse concerto de guitarra clássica, o que ele escuta, é o som da cidade; ou seja: a cidade como fonte sonora e o meio ambiente fora do limite da cidade é o medium; mas um astronauta na Lua, pode registar o som do planeta Terra; ao fazer isso, o planeta Terra é agora uma fonte sonora e o espaço é o medium; assim, existe uma espécie de mise en abîme, entre a fonte sonora que está num medium, que por sua vez, se torna numa fonte sonora incluída noutro medium, que se torna este também, noutra fonte sonora; e assim sucessivamente, como aquelas bonecas russas: as matrioskas. Sob este ponto de vista, podemos falar da existência de um som medium.

Agora, definidos os conceitos de medium, gravação e reprodução, analógico e digital, retomo de novo o caso das gravações dos Telectu. Uma das gravações depois publicada em disco, foi a efectuada no auditório Lenine, em Moscovo, em 1985, e cujo concerto foi transmitido em directo para toda a U.R.S.S.. A sala de concerto era esplendorosa e o espectáculo era apresentado por uma famosa locutora russa. Quando da actuação dos Telectu, e em especial nos solos de piano preparado de Barreto, o público punha-se de pé em ovações. Foi um espectáculo memorável. Barreto parecia destruir o magnifico piano Petrov com baquetas de bateria a percutirem as cordas do piano, e isso fazia a audiência sentir-se "livre" por momentos. Isto tudo para dizer que o concerto foi todo ele envolto numa aura (musicalmente - através da apresentação de uma música nova – e politicamente – a tal liberdade que de forma empática se estabeleceu entre o "destruir" do piano), e um sentimento de liberdade que daí exaltava. Ora, na reprodução do original, essa aura perdia-se. E perdia-se, pela anteriormente referida ausência de certas frequências, mas, especialmente pela deficiente reprodução do espaço onde se realizou o concerto e a gravação. Já na reprodução da cópia digital, o som surgia com nitidez e era perfeita a recriação do espaço do concerto, com a parte musical e o som do público, em perfeita mistura de intensidade e espacialização. É assim, na cópia e não no original, que entramos em contacto com a aura. 

4. A aura da realidade

Pensemos em música. Música espiritual. Não parece haver música mais espiritual que a música indiana. Imaginemos agora um raga[13] interpretado de forma transcendental na tamboura, umas tablas hipnóticas e uma voz angelical feminina. Conseguem visualizar esta situação? Um tapete exótico no chão do palco onde actuam os músicos, candelabros com velas acesas, incenso, e um público escutando esta música em transe. Ora, argumento que, embora a audiência possa estar num transe escutando esta música, o músico ou os músicos não estão, ou podem não estar. Os músicos estão – porque o tipo de música assim o exige – completamente concentrados na sua técnica instrumental, no instrumento, e nos aspectos que constituem a obra (escalas, acordes, ritmo, timbre). Já assisti a vários concertos de música indiana ao vivo e em vídeo, e em quase todos eles, pude ver algo semelhante a esta situação: um músico ou mais, falando entre eles ou com o engenheiro de som, ou mesmo com alguém da audiência. Eles fazem isso, com o objectivo de um melhoramento do concerto, e não por uma falta de profissionalismo. Um músico fala com o engenheiro de som, no sentido de obter um som ou uma escuta melhores; eles – os músicos – falam entre si, no sentido de melhorarem algo que estão a fazer, ou que podem vir a fazer; e falam com o público para explicarem o que estão a fazer (como fazia Stockhausen[14] nos seus concertos), ou simplesmente para mandar calar alguém. Mas quando ouvimos esses concertos em CD (geralmente editados de forma a eliminar esses e outros "acidentes"), ouvimos já sem esses comentários e, mais importante, não estamos a ver nada, deixando assim que a nossa imaginação recrie no nosso cérebro a imagem que quisermos. E, quase toda a gente irá escutar essa música de forma hipnótica e imaginando o músico a tocar de forma transcendental, criando assim uma aura em relação ao músico ou músicos que escuta. Assim, a questão que se levanta, é se, ao vermos o original (onde assistimos às tais conversas referidas), não parece perdermos essa aura, ao vermos que afinal, eles – os músicos –estão conscientes e racionais e não num estado de transcendência. 

5. Concerto para Bangladesh[15]: a falácia

Existe uma história repetida vezes sem conta, de como quando antes do seu concerto, Ravi Shankar, demorou perto de 3 minutos a afinar a sua sitar, e como no final, os quinhentos mil espectadores, pensando terem assistido a uma peça musical, começaram a bater palmas. Sempre que eu lia essa noticia, ficava intrigado e espantado de como isso era possível: confundir-se o afinar de um instrumento, com uma obra musical. Mas, como essa noticia era vinculada em imensos livros, revistas e jornais, nunca questionei a sua veracidade. Até que um dia, em Nova Iorque, em 1989, assisti no Jardim de Inverno das Torres Gémeas, a um concerto de música indiana para sitar. Antes de iniciar o concerto, o sitarista esteve bastante tempo a afinar o instrumento. E enquanto ele afinava, eu lembrava-me da história do Shankar e tinha agora a certeza, que era impossível alguém – dentro daqueles quinhentos mil pessoas – confundir o acto de afinar um instrumento, com um tema musical. Só recentemente, em 2011, que ao assistir a uma palestra no YouTube do filósofo Denis Dutton[16], verifiquei que ele falava dessa história, referindo ter-se tratado de um jornalista imbecil, provavelmente dos "Cultural Studies" de Berkley, que escreveu que as pessoas tinham aplaudido por confundirem a afinação com um tema musical. Ora, salienta Dutton, nem mesmo quinhentas mil pessoas completamente "ganzadas", confundiriam o acto de afinar com o ritual de interpretar uma peça musical, e que isso, segundo Dutton, reflectia um sentido retrogrado etnográfico da época. Eles aplaudiram porque estavam divertidos, ansiosos e eram quinhentas mil pessoas. Existem, alias, registos de pessoas que assistiram ao concerto e que sabiam exactamente que Ravi Shankar estava a afinar a sitar[17]. Pode existir aura na afinação de um instrumento musical e porventura, poderá ter sido essa também uma razão para terem aplaudido esse acto, mesmo sabendo ter-se tratado somente de uma afinação.

6. Perder a aura numa questão de segundos

A história anterior serve de introdução para uma outra, que irá mostrar o exemplo de uma audiência que estava enformada de um sentido de aura antes de assistir a um concerto ao vivo do ensemble musical Cassiber, ou seja, só conheciam a música deste grupo musical, de discos (cópia), e argumento que, com o contacto com o original (o concerto ao vivo), esse público parece ter perdido a aura que por eles sentiam, quando só o conheciam em disco. O compositor Heiner Goebbels, mentor do projecto Cassiber, tinha sido homenageado no Centro Pompidou, com vários concertos dedicados à sua obra, tinham sido publicados vários CD's dele, entre os quais, os famosos, "Black & White" e a sua obra seminal "The Man In The Elevator", e vinha dar um concerto na Fundação Gulbenkian, pouco tempo depois destes acontecimentos em Paris. Isto em 1994. Existia em Portugal, especialmente entre os músicos, um sentimento de aura em relação à obra deste compositor, que tão bem dominava o teatro musical. Pois bastaram poucos segundos, para que de uma rajada, essa aura se perdesse, quando perante o próprio compositor. Toda a aura que ele tinha granjeado durante os anos que antecederam a sua vinda a Portugal, parece ter-se esvanecido perante a sua presença. E isto, porque quando Goebbels e os restantes músicos se deslocavam do camarim para o palco, o fizeram a falar alto e a rirem-se, e assim entraram em palco, com todo o público em silêncio. E quando entraram, e Goebbels viu toda a gente sentada em silêncio sepulcral, disse a rir-se: "parece um funeral"! E logo todos os músicos se voltaram a rir. Um incómodo formou-se na plateia, em especial, perante um certo tipo de músicos que pareciam, antes desse concerto, idolatrarem Goebbels. Depois, ainda foi pior (do ponto de vista desses que o idolatravam antes de o conhecerem e agora, perante ele pareciam estar a perder toda a aura que nele projectaram ao longo de um determinado tempo), pois poucos segundos depois do concerto começar, Goebbels manda parar o concerto, e gritando "Stop, Stop, Stop", virou-se para a cabine de som por trás dos espectadores e deu indicações de como melhorar o som de alguns dos instrumentos. E, só depois de resolvida a questão do som, é que ele retomou o concerto, para nunca mais o interromper. Pois este acto, foi considerado por quase todos os músicos portugueses presentes, como uma grande falta de profissionalismo, por ter interrompido o concerto, pois podia - segundo os presentes músicos - ter continuado o concerto e ir dando indicações gestuais ao engenheiro de som, de modo a ir corrigindo o som, até eventualmente este ficar bem. Ora, isto, para mim, é que seria uma grande falta de profissionalismo, pois faria com que o público, durante um grande período de tempo (muitas das vezes pode até demorar o concerto todo), assistisse a um concerto, em más condições acústicas (o que demonstraria uma falta de respeito pela audiência), em vez de, como no caso de Goebbels, resolver o problema em segundos, e depois, assistirmosao concerto inteiro, nas melhores condições acústicas (respeito pelo público). De referir, que o facto de os músicos terem entrado em palco a conversar, poderá dever-se a um acaso, mas poderá - ainda que de forma não deliberada –servir o propósito de um possível processo de relaxamento ou um meio de desritualizar a relação entre músicos e público. Assim, observo que em ambos os casos apresentados - o concerto de música indiana e este dos Cassiber, os músicos optam pela atitude correcta ao falarem, seja entre eles – músicos – ou com os engenheiros de som, de forma a alterarem aquilo que está mal ou que poderá ficar melhor, sendo que, nada fazer, é que seria, quanto a mim, a atitude errada, e que mostraria falta de profissionalismo dos músicos. Esta situação em nada retira a existência de uma aura, pelo contrário, demonstra apenas que essa aura inclui além da performance musical, aspectos sociais, económicos, políticos e mesmo pequenas coisas do dia-a-dia. Existe aura no humor. 

7. Is it Live or Is it Memorex?

Num anúncio de 1974, a companhia multinacional "Memorex", lançou uma campanha televisiva[18] para divulgar o seu novo produto: a cassete de óxido "Memorex 60". Nesta podíamos ver um teatro e no palco, a Ella Fitzgerald a cantar acompanhada de um conjunto de músicos. Na audiência estava sentado um indivíduo. Um entrevistador com um microfone aproxima-se do único assistente e diz: "Nelson Riddle[19], você é o arranjador da Ella há mais de dez anos" (nesta altura o entrevistado fica de costas para o palco, não vendo assim os músicos, e é posta a tocar uma gravação da música que a Ella estava a interpretar à instantes), "Pode-nos dizer se o que estamos a escutar é a Ella ou se é uma gravação?". E enquanto vemos o ar pensativo do Nelson Riddle, assistimos ao ar divertido dos músicos em palco, ansiosos por verem se o entrevistado irá ou não descobrir a verdade. Ao fim de uns segundos ele responde: "Não faço ideia", e os músicos dizerem em coro: "Its Memorex", como quem diz "É uma gravação", e Nelson Riddle exclama: "Soa ao vivo, para mim". 

Em 1979, no lançamento de uma nova e melhorada cassete, a "Memorex 90", noutro anúncio[20] com a cantora Ella Fitzgerald, vemos o grupo musical de Chuck Mangione, tocar em estudio um tema musical, que está a ser gravado numa cassete Memorex. Ella assiste, numa sala ao lado, à performance. Depois, vira-se de costas para não ver os músicos e é colocada a tocar a gravação efectuada. É pedido a Ella que diga se o que está a ouvir é uma gravação ou é ao vivo. Ella diz: "Não faço ideia", e os músicos divertidos dizem em coro: "Its Memorex". O que este anúncio dos finais dos anos 1970 nos quer transmitir, é que mesmo uma cantora experiente como a Ella Fitzgerald, não consegue descobrir a diferença entre a música interpretada ao vivo, e uma gravação. Ou seja, não consegue distinguir entre o original e a reprodução técnica. Ora se não se consegue fazer tal distinção, onde posicionamos a aura?  

John Mowitt diz que, "O problema hoje, na era da reprodução eletrônica da música, não é, como sugere Foucault, que não conseguimos decapitar o Rei da Memória, mas que, ao desejar fazê-lo, continuamos a localizar a memória em nossas cabeças. A continuação a politização da música passará pelo reconhecimento de que a memória que ela organiza não está mais contida nas mentes dos sujeitos autônomos e que, de fato (parafraseando Freud), podemos estar nos tornando quem seremos para onde ela está indo”. (Stern, Jonathan, 2012:357). 

De facto, numa Era onde não se é capaz de distinguir a cópia do original[21], a problemática da perda da aura da obra de arte (neste caso, musical) na sua reprodução técnica, parece perder todo o sentido. 

"Juntos, o walkman e a gravação do estúdio de gravação marcam desdobramentos que, com efeito, confirmam os diagnósticos aparentemente antagônicos de Adorno e Benjamin ao encarnar no outro a vitória daquilo que cada um opôs. Ou seja, esses desdobramentos representam simultaneamente a apropriação da música 'séria' pela tecnologia da cultura de massa temida por Adorno e a cooptação política das possibilidades sociais embutidas em nossa relação com essa tecnologia temida por Benjamin. o reconhecimento da decadência da aura – assumido por ambos os escritores – surge apenas quando essa decadência está sendo revertida”. (Stern, Jonathan, 2012:348).

O que no parágrafo anterior nos diz John Mowitt, pode ser sintetizado nesta sua frase, “Há uma última característica da apresentação do comercial da estrutura da escuta que requer elaboração: a subordinação conspícua da escuta ao olhar que coincide com a subjugação da percepção pelo Rei da Memória. A Memorex Corporation precisa encontrar uma maneira de administrar o seguinte problema: se o Memorex é tão bom quanto se diz, então de que serve o original? O original torna-se necessário e, portanto, valioso apenas como meio de autenticar a cópia. No entanto, se a escuta não pode ser confiável para diferenciar entre o original e a cópia, como podemos perceber a validade da autenticação do original da cópia, uma vez que o original auditivo pode sempre ser a cópia da qual não pode mais ser diferenciado auditivamente?”. (Stern, Jonathan, 2012:345). 

Será que na actualidade, o problema da aura, só se coloca em termos visuais e não sonoros? Mowitt relembra que, “Durante a década de 1970, a Sony Corporation lançou o toca-fitas Walkman. trilhas para rotinas de saúde. Com efeito, tudo o que Benjamin havia definido como características revolucionárias da arte reproduzida mecanicamente é, se não contrariado, pelo menos neutralizado pelo Walkman”. (Stern, Jonathan, 2012:348).

walkman como prótese, capaz de reconstituir hiper-realidades, mais reais que a própria realidade. E é de salientar, que tanto a tecnologia das cassetes dos anos 1970, como a tecnologia envolvida no desenvolvimento do walkman nos anos 1980, em nada se assemelha com a qualidade de gravação e reprodução digital[22] do som da actualidade.

8. Aura 3D

Esta análise à obra de Benjamin, é realizada numa Era de reprodução electrónica. Hoje, introduzimos uns óculos 3D e entramos num mundo virtual que pode parecer mais real do que a própria realidade. A caverna de Platão. Estamos perante o dilema da pílula vermelha e da pílula azul do filme Matrix. Mas, independentemente da cor que escolhamos, nesta nova Era digital, a aura parece poder existir nas duas vertentes: original e cópia[23], uma vez que, pelo menos no campo sónico, não nos é mais possível, por vezes, distinguir uma da outra.  

 

 

Bibliografia  

Beard, David, Gloag, Kenneth, Musicology: The Key Concepts, Routledge, New York, 2005.

Benjamin, Walter, A Obra de Arte Na Época da Sua Reprodutibilidade Técnica, volume III, A modernidadeObras Escolhidas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005. 

Nudds, Matthew, O´Callaghan, Casey, Sounds & Perception, Oxford University Press, Oxford, 2009. 

Powell, John, Como Funciona a Música, Bizâncio, Lisboa, 2012.

Rua, Vítor, Acusticologia ou Pensamentos Filosófico-analíticos sobre Música e Som, Tese de Mestrado, FCSH, 2011. 

Scruton, Roger, Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes, Guerra & Paz, Lisboa, 1996.

Stern, Jonathan, The Sound Studies Reader, Music In The Age Of mechanical Reprodution Routledge, London and New York, 2012.

Suisman, David, Strasser, Susan, Sound In The Age Of mechanical Reprodution, University of Pennsylvania Press, 2010.

Entrevistas por e-mail 

Prevóst, Eddie, entrevista por e-mail, 2010.

Schiaffini, Giancarlo, entrevista por e-mail, 2010.

Tilbury, John, entrevista por e-mail, 2010.

 Sites

Concerto para BangladeshDutton, DenisBoatman, HowardPublicidade Memorex 1974Publicidade Memorex 1979Riddle, Nelson


[1] Em entrevista efectuada por e-mail em 2010.

[2] Em entrevista efectuada por e-mail em 2010.

[3] "O valor de culto como tal parece tender hoje em dia precisamente para manter a obra de arte escondida: certas estátuas de deuses só podem ser vistas pelo sacerdote na sua cela, certas pinturas de madonnas ficam cobertas quase todo o ano, certas esculturas de catedrais medievais não são visíveis para o observador ao nível do solo" (Benjamin, Walter, 2005: 217).

[4] "Génio", é um termo que invoca certas qualidades musicais, implicando grandiosidade e um pesado sentido de valor, que se relacionam com o mais alargado conceito do canône. O termo foi inicialmente concebido durante o Iluminismo, e surge nos dicionários que caracterizaram essa época. Sulzer define génio como alguém que possui extraordinária habilidade e uma sensibilidade espiritual, maiores do que a de outros que também as executam. Actualmente, tendo em conta a noção de que a música está intimamente ligada aos aspectos sociais, culturais e económicos, de determinada cultura, é-nos mais difícil aceitar este conceito.

[5] A musicologia opera nos seus próprios sistemas de valores. A decisão que comporta que compositores, quais períodos históricos, obras e contextos devem ser estudados e analisados, reflectem preferências pessoais ou posições ideológicas. Podem reflectir também mecanismos de valor como definidos pelo status e o legado do canône. Questões de valor também emergem através do contexto da estética.

[6] O termo "canône" é usado para descrever um conjunto de obras e compositores, creditados de um enorme valor e grandiosidade. É na música, e não noutros diversos contextos culturais, que o canône, encontra maior relevância. Crê-se que terá surgido com o romanticismo do século XIX, um interesse pela música do passado, Haydn, Mozart, Beethoven, mas também pelo revivalismo da música de Bach. No entanto, como nos diz Weber, "Há muitas outras formações canónicas anteriores ao Romantismo" (Weber, 1999). Webber sugere três tipos de canon: escolar (musicologia e historografia), pedagógica (ensino musical), e a performance (a formação de repertórios e o pensamento que está por trás dos programas dos concertos, ou as gravações). Para Weber, este é dos mais importantes, pois ao contrário dos outros dois, este comporta a parte da cara do público em relação à música.

[7] "Identidade" tem a sua origem na filosofia, psicologia e nos estudos culturais, e todos a definiram como uma resposta a algo por trás do indivíduo; algo outro. Durkheim desenvolve a ideia de que o indivíduo é um produto da sociedade. Um indivíduo constrói-se através da sua interacção com os outros. Foucault criou importantes teorias que diziam respeito à forma como um indivíduo se constrói através da sua posição em relação a um conjunto de discursos sociais ou narrativas. Embora existam artistas como Bob Dylan ou Madonna, que inventam novas e várias identidades, existem géneros e estilos musicais, que enformam uma só identidade, como é o caso do retrato típico do agressivo macho do fã de heavy metal.

[8] Autenticidade, embora tendo variegados sentidos em música e musicologia, refere-se vulgarmente a um sentimento de verdade e sinceridade. No que diz respeito à performance na música erudita ocidental, debate-se entre a chamada performance "autêntica" e a "moderna", sendo esta última um longo resultado de um sentimento romântico do século XX, e a primeira uma visão mais recente, de além de tentar repor com fidelidade o que seria uma performance dessa música na época onde foi criada, através do uso de instrumentos da época, um número instrumental adequado ao que seria normal encontrar-se numa performance da altura do compositor, e outros aspectos relativos a parâmetros musicais (intensidade, ritmo, timbre, etc.), trás também - segundo Taruskin -, uma "contemporaneidade", e que tal é de louvar. Na "popular Music", discute-se mais a autenticidade no caso dos chamados "songwriters" ou no caso de certo rock (hard rock, por exemplo), onde são citados nomes como Bob Dylan (que será mais autêntico do que um seu imitador), ou os Led Zepplin, se serão mais autênticos do que os seus precedentes do Rhythm & Blues. Na música ocidental, começou-se a falar de autenticidade, no século XIX, o que coincide também com o facto de  como Beethoven, começarem a fazer música pela música, sem ser para encomendas de Reis ou do Clero, e a quererem deixar a sua marca e estilo - autenticidade - na obra de arte, para uma posteridade.

[9] “Na sexta-feira, 12 de janeiro de 2007, às 7h51, um homem vestido com jeans, camiseta e boné de beisebol começou a tocar violino ao lado de uma lata de lixo do lado de fora da estação de metrô L' Enfant Plaza em Washington, D.C. ... Enquanto ele tocava por quarenta e três minutos, cerca de 1.100 pessoas passaram. Este não era apenas um artista de rua comum, no entanto; ele era Joshua Bell, um virtuoso aclamado que se apresentou com quase todas as principais orquestras do mundo. A humilde performance de Bell de peças de seu repertório de classe mundial foi uma experiência encenada pelo Washington Post para ver como seus passageiros reagiriam. Acontece que seis minutos se passaram antes que uma única pessoa parasse para ouvir, e apenas sete pessoas pararam por mais de um minuto durante todo o tempo em que ele tocou. Vinte e sete deram dinheiro, a maioria na hora”. (Sound In The Age Of Mechanical Reprodution, David Suisman and Susan Strasser, University of Pennsylvania Press, 2010:1).

[10] Num power point apresentado no seminário "Corpo e Espaço", FCSH, 2013.

[11] Duo de música improvisada constituído por Jorge Lima Barreto e Vítor Rua

[12] O cientista John Powell no seu livro (Como Funciona a Música, 2012:274).

[13] Estilo de música indiana.

[14] Karlheinz Stockhausen, compositor alemão.

[17] "George Harrison apresenta Ravi Shankar e seus colegas músicos para nós na platéia. Ambos estão explicando a música clássica indiana que estamos prestes a ouvir. Estávamos tão prontos. Aplaudimos quando eles terminaram de afinar sua cítara e tabla. Eles tocaram quinze comoventes minutos mais raga evocando tanto a beleza quanto o sofrimento em sua terra natal”. (Boatman, Howard, http://voices.yahoo.com/concert-bangladesh-beginning-raising-awareness-399192.html?cat=33).

[20] Jonh Mowitt descreve este anúncio: "Uma recente campanha publicitária para um grande produtor de fitas cassete ressalta os principais desenvolvimentos sócio-históricos que moldaram a recepção musical contemporânea. Estou pensando no conhecido comercial de televisão da Memorex Corporation, com Chuck Mangione e Ella Fitzgerald, centrado na frase interrogativa, “É ao vivo ou é Memorex?” Uma breve reconstrução da narrativa do comercial e mise en scène me permitirá desvendar os principais pontos da minha ilustração. A cena é um estúdio de gravação. O público da televisão chega à cena no momento em que o cadência final dos fades de 'hit' de Mangione. Dois espaços acústicos se unem: o espaço da gravação e o espaço do comercial. Uma estrutura de identificação fomentada cinematicamente nos situa na sala de controle do estúdio junto com Fitzgerald que está assistindo e ouvindo para a sessão. A junção de espaços acústicos significa que tanto Fitzgerald quanto o público da televisão estão ouvindo a música de Mangione parte através dos monitores de reprodução na sala de controle. Um narrador em off nos dá os detalhes de um teste que será realizado para determinar a qualidade do produto Memorex. Fitzgerald deve virar as costas para a janela da sala de controle e, simplesmente ouvindo mais uma vez os monitores, determinar se a música que está ouvindo é ‘ao vivo’ ou Memorex, ou seja, reproduzida eletronicamente. Pela nossa proximidade com ela no espaço narrativo, estamos sendo efetivamente convidados a nos submeter também ao teste e suas conclusões. O 'gancho' melódico da peça de Mangione retorna na faixa de áudio, Fitzgerald indica incerteza, e Mangione e seu grupo resolvem seu dilema gritando para ela de dentro do estúdio: 'É Memorex!' repetição do nome do produto embutido na frase memorável: 'É ao vivo ou é Memorex?’”. (Stern, Jonathan, 2012)

[21] "Por mais perfeita que seja a reprodução, uma coisa lhe falta: o aqui e agora da obra de arte - a sua existência única no lugar onde se encontra" (Benjamin, Walter, 2005:3).

[22] Benjamin parecia antever o digital, ao afirmar: "De dia para dia se torna mais irrefutável a necessidade de nos apoderarmos de forma muito directa do objecto, através da imagem, ou, melhor dizendo, da cópia e da reprodução" (Benjamin, Walter, 2005:4).

[23] Foi criada na Suécia uma nova religião chamada Igreja do Kopimism, que considera a cópia "sagrada", e que para se ser membro "basta sentir um chamamento para adorar o mais sagrado de tudo o que é sagrado - a informação e a cópia" (http://www.publico.pt/tecnologia/noticia/ha-uma-nova-religiao-na-suecia-e-os-direitos-de-autor-nao-vao-gostar-1527736).

Agenda

30 Março

Johannes Gammelgaard

Café Dias - Lisboa

30 Março

Pedro Branco e João Sousa “Old Mountain”

Miradouro de Baixo - Carpintarias de São Lázaro - Lisboa

30 Março

Marmota

Casa Cheia - Lisboa

30 Março

Filipe Raposo e Uriel Herman “Dois pianos, um universo”

Centro Cultural de Belém - Lisboa

30 Março

Inês Camacho

Cossoul - Lisboa

30 Março

Abyss Mirrors Unit

ZDB - Lisboa

30 Março

Daniel Levin, Hernâni Faustino e Rodrigo Pinheiro

Biblioteca Municipal do Barreiro - Barreiro

31 Março

Blind Dates

Porta-Jazz - Porto

01 Abril

Elas e o Jazz

Auditório Municipal de Alcácer do Sal - Alcácer do Sal

01 Abril

Ill Considered

Musicbox - Lisboa

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