John Lennon
“Eu não acredito nos Beatles!”
Vitor Rua (músico & etnomusicólogo) reflete sobre o papel de John Lennon a partir do tema “God”, do disco “John Lennon/Plastic Ono Band” de 1970, uma das mais importantes letras autobiográficas da música pop. Para Rua, Lennon é um dos maiores compositores do século XX, ao lado de Stockhausen, Shankar ou Dylan, de quem saem as melhores músicas dos The Beatles. A partir desta música, pensa-se na importância do músico numa perspetiva mais global.
O John Lennon era um génio!
Um dos maiores compositores do século XX, ao lado de Stockhausen, Shankar, ou Dylan. Da sua verve — quanto a mim —, nasceram as melhores músicas dos The Beatles e não da parceria com McCartney. A solo, estava a realizar uma carreira notável, antes de ser brutalmente assassinado por um psicopata religioso que quis ficar na história, cometendo um crime cultural gigantesco.
Mas vou contar-vos o segredo de porque escrevo este pequeno ensaio sobre uma canção do primeiro disco a solo de Lennon, depois da extinção dos The Beatles. O meu amigo Gonçalo Falcão, enviou-me este tema, questionando-me se eu o conhecia. Eu respondi-lhe que sim e até recordei uma estória curiosa em que a então namorada do meu irmão e agora esposa há décadas, lhe escreveu uma carta em que citava esta letra de Lennon, em modo de arrufo. Posto isto, resolvi voltar a escutar a canção, da qual tinha uma memória longínqua. E qual é o meu espanto quando me apercebo estar na presença de uma obra-prima e talvez uma das mais importantes letras auto-biográficas da música pop e arredores, como se costuma dizer em vox populi.
Instrumentalmente, esta canção é constituída unicamente por uma guitarra baixo e bateria que formam uma base rítmica, e como instrumento harmónico recorre ao piano de cauda.
Vive de um ostinato, ou seja, de uma frase musical que se repete ao longo da composição ou lied (música cantada).
Posso estar enganado mas tenho a certeza absoluta que foram gravados dois pianos: um que apenas dá os acordes e que está colocado mais ao fundo espacialmente, e um outro mais presente que faz uns harpejos e sublinha alguns dos acordes. Sendo que isto é apenas uma curiosidade mas importante, pois a ser verdade, faz com que tenham sido realizados dois takes de piano por parte do Billy Preston.
A bateria é um verdadeiro metrónomo, a que nos habituou Ringo Starr e o baixo de Klaus Voormann é minimalista, e sublinha com precisão a mão esquerda do piano.
Mas vamos ao que é realmente importante neste tema: a letra!
Que coisa mais incrível e corajosa! Que maravilha!
Lennon abre-se ao mundo numa auto-análise em que nos mostra o que lhe ia na alma, no coração e na mente criadora — antes de a compor, submeteu-se a uma “primal therapy”, uma psicoterapia criada por Arthur Janov com base no trauma da dor reprimida na infância.
De uma forma crua, mas lírica e em tom quase confessional, e num grito lancinante de desespero, Lennon surge-nos nu e despido de ego nesta sua composição.
Inicia com um fundamento: “God is a concept”, “Deus é um conceito”. Ou seja, logo na primeira frase, direcciona o foco da narrativa da sua canção: será sobre conceitos mas sobretudo a partir de modelos e de referências, culturais, políticas, religiosas, filosóficas. Não tanto sobre juízos de valor, opiniões ou apreciações manifestas mas sobre estereótipos que estavam em voga na época em que escreveu esta obra paradigmática.
Lennon usa aqui o termo “conceito” como caracterização de uma representação mental e linguística de um objecto concreto e abstracto, “significando para a mente o próprio objeto no processo de identificação, classificação e descrição do mesmo” (Deleuze).
A frase inicial em que ele identifica Deus como “um conceito pelo qual medimos a nossa dor”, remete também para um estado de alma em que só se pensa em Deus quando se está em sofrimento ou quando se deseja algum milagre para uma ajuda em algo concreto, como sair de um estado de “dor”. É ainda a dor como meio para chegar a um conhecimento que só pode ser obtido pelo sofrimento, como dizia Gurdjieff.
Na segunda parte do seu poema, ele faz uma lista de personalidades, metodologias, filosofias e modelos religiosos ou esotéricos em que ele “não acredita” e que passo a citar:
_”Mágica”: inicialmente Deus surge na vida humana através de fenómenos da Natureza — terramotos, chuva, trovoadas, eclipses —, que eram atribuídos a uma “magia” e — quanto a mim — é a esta “mágica” proto-religiosa que Lennon se quer referir.
_”I Ching”: aqui não deixa de ser curioso que sendo a sua Yoko Ono, uma amiga pessoal do compositor John Cage — e a quem este dedicou uma obra —, Lennon ponha em causa o método oracular de composição do grande Cage, cantando estas palavras ao lado da sua companheira, numa demonstração de um certo arrojo, como vai ser apanágio nas restantes alusões ao longo desta opípara letra.
_”Bíblia”: o texto mais importante para os seguidores da cristandade e o livro mais imprimido desde a invenção da imprensa de Gutenberg.
_”Tarot”: uma forma oracular de tentar prever o futuro, muito em voga naquele tempo e com algumas ramificações ainda na actualidade.
_”Hitler”: uma forma de se demarcar de uma das mais sinistras figuras do século XX, que deixou — infelizmente — seguidores até aos dias de hoje.
_”Jesus”: não deixa de ser demonstrativo de uma enorme ousadia, que tendo Lennon posto em perigo a fama da sua banda ao afirmar numa entrevista ainda enquanto Beatle “nós somos mais conhecidos que Jesus”, afirmação que lhes fez perder imensos fãs e teve reacções de repúdio em todas as partes do globo — tendo até sido queimados discos dos Beatles —, regresse ao tema de forma ainda mais “perigosa” com a afirmação “não acredito em Jesus”!
Algumas opiniões sugerem que esta parte da letra poderá ter sido a causa do seu assassinato!
_”Kennedy”: aqui vai buscar um político que teve fama de ser um defensor da Liberdade, reconhecido por americanos e por muita gente fora daquele país, e não hesita colocá-lo em dúvida e afirmá-lo nesta música.
_”Buda”, “Mantra”, “Gita” e “Ioga”: aqui a audácia de proferir “não acreditar” nestas referências, remete para a sua vida com uma companheira oriental que provavelmente as teria, pelo menos, como “familiares”, e que eram tendências importadas do Oriente que predominavam em parte da sociedade que ele frequentava — e que ele faz questão de recusar terminantemente, sem olhar a consequências.
_”Reis”: sublinha a ironia de ser ele um inglês que nasceu e viveu numa monarquia, e que aqui deixa o seu testemunho do que pensa disso, mesmo tendo recebido honras da Rainha pelos serviços prestados ao seu país.
_”Elvis”, “Zimmerman”: de uma só assentada elimina dois ídolos americanos, o intitulado — erradamente, quanto a mim - “Rei do Rock” e o actual prémio Nobel, Bob Dylan. É preciso ter lata!
_”Beatles”: e finalmente o “exorcismo” final, ou dizendo de outra forma, o divórcio final, a última machadada na coisa mais importante do seu passado musical, os The Beatles! “Não acredito nos Beatles” diz ele, quando a música pára subitamente, para realçar aquele momento clímax da canção!
E entramos na última parte da sua letra: em quem acredita afinal o Lennon?… Em si! E na sua companheira Yoko, a quem grande parte dos fãs dos The Beatles acusavam de ter sido a causadora da separação do grupo. Não é preciso ter uns grandes colhões?
Ainda aproveita para umas referências a letras anteriores dos The Beatles, como “Yesterday”, ontem era, mas já não é mais um “sonhador”, “Dreamer”, ou uma morsa, “Walrus”.
E por fim, para que ficasse bem esclarecida qualquer hipótese sobre a possibilidade alimentada por muitos fãs de um regresso e reconciliação dos The Beatles, ele afirma categoricamente “The dream is over”, “o sonho terminou”, pondo um ponto final nesse parágrafo.
Esta extraordinária música foi produzida pelo fantástico Phil Spector, pela Yoko Ono e pelo próprio Lennon.
Eu apenas acredito em Lennon!