Melhores do ano, 29 de Dezembro de 2022

Melhores do ano

Melhores de 2022: Concertos

António Branco, Eray Aytimur, Gonçalo Falcão, Nuno Catarino e Rui Tentúgal

Aqui está a lista dos melhores concertos de 2022. Esta lista resulta de uma votação coletiva e participaram os críticos António Branco, Eray Aytimur, Gonçalo Falcão e Nuno Catarino e o convidado Rui Tentúgal (jornalista, Expresso).

 

AMBROSE AKINMUSIRE QUARTET (Jazz ao Centro, Coimbra)

O Teatro Académico Gil Vicente acolheu aquele que era um dos espetáculos mais aguardados do programa do festival Jazz ao Centro: depois de ter atuado no Seixaljazz na noite anterior, Coimbra acolheu o Ambrose Akinmusire Quartet. Sem esgotar (tal aconteceu no Seixal), a sala coimbrã estava bem composta, com algumas figuras conhecidas entre o público, nomeadamente o Ministro da Cultura e o presidente da Câmara Municipal de Coimbra. Akinmusire atuou pela primeira vez em Portugal há dez anos, em maio 2012, no Estoril Jazz; foi um dia triste, foi quando ficámos a saber da morte de Bernardo Sassetti, e para o público presente essa atuação ficou naturalmente assombrada pela notícia; neste regresso, o mundo mudou muito e também o trompetista, numa evolução que tem sido refletida na sua discografia. Em 2019 Akinmusire levou ao Jazz em Agosto o seu “Origami Harvest”, onde se aproxima do hip-hop; no mais recente “On the Tender Spot of Every Calloused Moment” (de 2020), o trompetista e compositor já trazia uma música mais despida, contida e concentrada. Ao vivo, o grupo não segue os típicos tema/solo/tema, a música flui, o trompete vai entrando e saindo, e o grupo faz a música navegar, tranquila. Ambrose parece confirmar que “less is more”, com intervenções focadas, sem pirotecnia, apostando na concentração e expressividade do seu som. O grupo mantém-se o mesmo que tocou no Estoril, apenas o contrabaixista foi substituído nestes concertos; na bateria, Justin Brown esteve particularmente notável, pujante e preciso, a dar resposta à intensidade a cada momento; o contrabaixo de Joe Sanders (no lugar no habitual Harish Raghavan) esteve discreto, mas atento a contribuir para o fervor rítmico; e, no piano, Sam Harris mostrava-se sempre presente, embora nunca direto, sempre a preferir linhas oblíquas. Entre cada intervenção do trompete, o restante trio deambulava à volta de cada composição, fazendo-as crescer progressivamente. Depois de uma atuação notável, e de um aplauso reconhecido da audiência, o quarteto regressou para um encore, com mais dois temas: primeiro uma balada (“Roy”, dedicada a Hargrove) belíssima e concentrada, reforçada pelo calor do trompete; depois um bebop acelerado, naquela que foi a maior aproximação à tradição. O público, que já estava rendido, ficou ainda mais entusiasmado.
(Nuno Catarino)

 

JOHN ZORN NEW MASADA QUARTET (Jazz em Agosto, Lisboa)

O Jazz em Agosto tem construído uma relação ao longo de vários anos com o nova-iorquino que o faz ser um assíduo do palco de Fundação Calouste Gulbenkian e que Portugal seja um dos poucos destinos europeus do músico. Começou em 1990 quando Rui Neves trouxe os Naked City ao Fórum Picoas e desde então o atual programador do festival tem tentado dar a ouvir os sucessivos trabalhos do músico em Portugal. Zorn tem uma legião de fãs que adoram a sua música e a sua atitude. Para eles, esta relação é uma benesse dada, que não é fácil ouvi-lo ao vivo na Europa. Para além da Gulbenkian, John Zorn esteve em julho em Molde, Noruega, e em março na Alemanha. Até ao final de 2022 não se conhecem por enquanto mais datas do saxofonista na Europa. A sua música não está nas plataformas de streaming, não fala com jornalistas, não dá entrevistas, não envia discos promocionais para os órgãos de comunicação social, não explica a sua música ou as suas ideias, não gosta de fotógrafos, a sua editora – Tzadik – tem um website primitivo. Mas há um público adepto deste S/M jazzístico e vem avidamente esgotar este permanente “fuck you” a tudo e todos “e assim sucessivamente”. Não tem sido fácil encontrar grandes novidade na música de John Zorn desde 1996, quando saiem os segundo e terceiro volume dos “Masada”. Até então o músico habituou-nos a grandes ideias novas a um ritmo inumano. Foi um excelente improvisador que inventou/introduziu não só novas formas de tocar saxofone no jazz (o flatterzunge cuspido, os guinchos só com o bocal, as subidas graves/agudas à velocidade da luz, a modelação do volume usando o joelho como surdina). Também trouxe novos processos de improvisação (“Cobra”), novas formas de tocar hard-bop (“News for Lulu”) ou free (“Spy vs. Spy” ou “Song X”), novas ideias na escrita (“Naked City”), experiências sonoras radicais (“Painkiller”), música contemporânea escrita interessante (“Elegy”). Tem uma prolífera atividade editorial, difícil de acompanhar e até de separar a novidade da revisão/versão. Neste New Masada Quartet, com Julian Lage na guitarra elétrica, Trevor Dunn no contrabaixo e Kenny Wollesen na bateria, ouvimos uma mistura curiosa de vários dos processos anteriores. A improvisação dirigida com os sinais do “Cobra” (mas só com Zorn a dirigir sem permitir que os outros músicos também interfiram na direção da música, como a peça original prevê), a música dos Naked City com os seus elementos mais típicos, a compressão, aceleração, zapping e on/offs e por fim as melodias do “Masada”. Foi em si próprio que encontrou o modo de refrescar a fórmula do Masada, que se tornou entediante por tão insistentemente repetida. Até hoje, o modo que Zorn usou para disfarçar o “cheiro esquisito” da repetição dos 800 Masadas (“jazz is not dead, it just smells funny”, escreveu Zappa) era a instrumentação. Grupos diferentes, com instrumentações e personalidades musicais diferentes, atenuavam a sensação de “déjà vu”. Com esta nova abordagem as músicas ficavam realmente diferentes porque os processos a que são submetidas (de corte, cola, acelera, comprime, liga/desliga, repete, improvisa) são muito mais renovadores. Assim, no final, foi mais um bom concerto de John Zorn, com ele a tocar e a relembrar os tempos idos de 1990 quando os Naked City abriram novas portas para esta música de que gostamos, cuja dimensão histórica só será possível avaliar daqui a alguns anos.
(Gonçalo Falcão)

 

أحمد [AHMED] (Jazz em Agosto, Lisboa)

O quarteto Ahmed relê a obra do contrabaixista Ahmed Abdul-Malik (1927-1993). Mas não é uma “recuperação” literal do hard-bop criado pelo contrabaixista de Brooklyn. Só a bateria e o contrabaixo mimetizam frequentemente a secção rítmica de “African Bossa-Nova”, mas em esteróides, a uma passada infernal. Sem recorrer ao Gnawa ou às percussões marroquinas, como fez Ahmed Abdul-Malik, o grupo repensou a música de forma muito interessante, apostando na ideia de ciclos repetitivos e de procura de proximidades e afastamentos dentro desses ciclos de poucas notas, num jogo hipnótico, que foi deslumbrante de seguir. São frases pequenas, de poucos segundos, repetidas à exaustão; insistentemente reiteradas vão criando pequenas variações em cada um dos instrumentos do quarteto num diálogo rápido que vai gerando proximidades e afastamentos, como se o quarteto estivesse dentro de um elástico gigante em que, para uns se aproximarem os outros têm que se afastar. Esta fórmula de repetição obsessiva foi a encontrada para responder ao espírito da música do homenageado que procurou trazer para o jazz a música do norte de África. O piano martelava frases melódicas, quase infantis, que pareciam próprias para um jogo a 8 bits. O saxofone, incansável, também em frases curtas, paralelas, insistia também na repetição de melodias pequenas e simples que se vão progressivamente alterando e modelando. A bateria e o contrabaixo, muito rápidos, pareciam estar a tocar outra música. Aqui sim, ouvíamos uma referência clara a “African Bossa-Nova” um tema emblemático de Ahmed Abdul-Malik, editado no disco de referência do contrabaixista “Sounds of Africa”. Uma ideia cáustica e surpreendente que foi excelente de ouvir. Uma versão “Terry Riley do jazz” onde a repetição obsessiva, com pequenas alterações progressivas, vai construindo um mantra hipnótico e ao mesmo tempo intenso porque sempre diferente. A proposta radical surpreendeu por ser totalmente nova e encantou com a sua estranheza. Muito racional e simultaneamente muito natural. O quarteto tem Pat Thomas no piano, Joel Grip no contrabaixo, Antonin Gerbal na bateria e Seymor Wright no alto. A música dos Ahmed começou a construir um jogo conceptual interessante no festival: entre o projeto de Ahmed Abdul-Malik, na recuperação da música do Norte de África (que também foi usada por Peter Brötzmann, por exemplo, quando toca com Mahmoud Guinia) e, uns dias depois, o projeto zorniano de recuperação da tradição klezmer através do jazz. O jazz é uma música integradora e de diálogos e o Jazz em Agosto soube construí-los. 
(Gonçalo Falcão)

 

NATE WOOLEY’S SEVEN STOREY MOUNTAIN VI (Jazz em Agosto, Lisboa)

Um concerto em mil. Quando nos sentámos na plateia do grande auditório estávamos prestes a entrar num concerto muito especial, dos que eleva a alma. São muito raros. Seven Storey Mountain é uma ideia musical com 16 anos, criada em 2007. É parte de um ciclo chamado Merton Book que foi inspirado pela autobiografia do monge e escritor Thomas Merton. O monge trapista foi um visionário que advogou o diálogo inter-religioso e a procura de forma de espiritualidade mais transversais. A peça que veio à Gulbenkian é a sexta parte deste ciclo. Apesar de Thomas Merton ter ouvido e gostado muito de jazz na infância (e a esta música ter voltado nos seus últimos dias, depois de um período em que procurou música mais meditativa), a sua presença nesta peça de Nate Wooley tem menos que ver com os seus interesses musicais pessoais e mais com o modo como ele entendeu e abraçou sua própria falibilidade e a falibilidade dos outros, expressa na sua autobiografia. O modo como o pensador percebeu a grande confusão que é estar vivo é lindíssimo, e esta sexta parte é sobre isso. E é de facto uma peça confusa, belíssima e enlevada, sem qualquer tipo de agenda religiosa. Foi escrita para a experiência extática dos músicos e da plateia. «Eu quero mudar o ar da sala de algum modo, quero que vibre de uma forma diferente e que o público sinta uma mudança entre o momento em que entrou no auditório e o que saiu depois da música.» E se a ambição não é pequena, posso garantir que foi totalmente conseguida. Saí da sala outro. «Se as pessoas equivalem essa sensação a um sentimento religioso, fico feliz que elas o sintam, mas não é essa a minha intenção, a de promover um sentimento religioso ou abertamente espiritual. Eu só quero que as pessoas sintam algo diferente.» A peça começa com uma banda sonora. Todas as versões da peça usam uma banda sonora de suporte. É uma gravação do ar condicionado de casa do trompetista com uma edição básica. A cada versão, algumas partes desta banda sonora são apagadas e outras são adicionadas para dar uma sensação de evolução ao longo do tempo (algumas coisas morrem, outras nascem). A forma da peça é projetada na esperança de alcançar um estado de arrebatamento: no início o mundo musical é bastante estático, o que faz o ouvinte relaxar ou então cria alguma impaciência. As três baterias (Chris Corsano, Teun Verbruggen e Ryan Sawyer) começam com escovas e encaixam o seu som no da gravação. Depois a densidade vai crescendo. Surgem as baquetas. Por cima das baterias aparecem os dois Fender Rhodes (Håvard Wiik e Rodrigo Pinheiro que tinha acabado o duo com Carneiro e teve que rapidamente mudar o seu mindset para as pautas de Wooley e fê-lo brilhantemente), depois os dois violinos (Samara Lubelski e C. Spencer Yeh); de seguida entra Susan Alcorn (em pedal steel guitar) com um som flutuante a que se somou Julien Desprez (em guitarra elétrica) que toma conta da situação na sua forma de solar furibunda. Ava Mendoza, a terceira guitarrista soma-se ao grupo na mesma lógica de Alcorn. Enquanto isto o trompete, sem bocal, grita umas frases impercetíveis, mas que soam a palavras. A densidade sonora é imensa, o volume cresce e permanece por muito tempo numa babel musical. Estamos numa fábrica metalúrgica do século XXI. É uma confusão violenta a que está instalada na sala (noutras versões da peça foi usado um octeto com pedaços de latão percutidos). Se estavam ouvintes da Smooth FM e do EDP Cool Jazz ainda resistentes, foi aqui que desistiram. Aquele mundo jazzístico não estava para alunos do preparatório. A permanência da densidade sonora maximiza a intensidade emocional; na plateia perguntamo-nos: como é que se para esta avalanche? Findo um período longo neste mundo agreste, os instrumentos começam a sair pela ordem que entraram. Ficámos com a sensação que já percebemos a estrutura de peça. Que é uma montanha. Mas enganámo-nos. Os Estados Unidos vivem um período particularmente intolerante em várias questões cívicas e sociais e em particular nos direitos das mulheres. No final da peça, quando os instrumentos começam a desaparecer e a tempestade sonora começa a amainar, Nate Wooley dá voz às mulheres. Somos surpreendidos por um coro feminino (Coro Gulbenkian), na parte de trás do auditório, que canta em monodia (só no final da peça usam a polifonia, a maior parte do tempo cantam juntas e a uma só voz, como numa manifestação ou protesto) um hino de Peggy Seeger (“Reclaim the Night”, um texto sobre o abuso sexual das mulheres – «And some men place us lower still / By using us against our will»). Quase celestiais, as vozes que cantam por cima de nós. A peça de Peggy Seeger é interrompida com uma frase: «You can’t scare me / You can’t scare me». A monodia deu lugar à polifonia. E assim termina a peça. Precisamos de um respiro. Toda a energia e intensidade – até raiva – do meio da peça é direcionada para este sentimento muito específico de esperança e coragem: “You can’t scare me”. Ouvida a peça ficamos com a sensação de ter participado numa espécie de liturgia musical. Saímos elevados. Não dá para falar ou comentar. É preciso um folego, um tempo de distanciamento emocional. Levámos um murro no estômago e logo a seguir uma dose enorme de esperança no futuro da humanidade. E com a esperança que a sétima parte do ciclo venha a ser escrita e que a possamos ouvir. 
(Gonçalo Falcão)

 

SAMARA JOY (Angrajazz, Angra do Heroísmo)

Do alto dos seus 22 anos de idade, Samara Joy não deixou pedra sobre pedra com os seus impressionantes predicados vocais. Joy – raras vezes um apelido soou tão adequado – insere-se numa longa tradição de cantoras de jazz, que avisadamente não mimetiza, antes interpela e expande, com fluidez e graça, tornando todo esse legado também seu. Trouxe na bagagem os seus dois discos – a estreia homónima, de 2021, e “Linger Awhile”, já deste ano, na Verve, selo de tantos inescapáveis discos de jazz vocal. Veio acompanhada por três músicos de inatacável competência técnica (com destaque para o pianista Vincent Bourgeyx, a que se juntaram o contrabaixista Mathias Alamane e o baterista Malte Arndal), que deixaram os holofotes para quem verdadeiramente os merece. Exibindo (na aceção positiva) uma voz tão naturalmente potente como maleável e dona de uma afinação prodigiosa, arrancou com “This Is The Moment” e logo ao segundo tema começou a prestar tributo a algumas das cantoras que mais a influenciaram ao longo do seu (ainda curto) percurso: Sarah Vaughan (“Can’t Get Out of This Mood”), a enorme Betty Carter (na reinvenção de “Tight”), Carmen McRae (“If You’d Stay The Way I Dream”) e Abbey Lincoln (que escreveu a letra para “Retribution”). Mas nem só de mulheres se fizeram as homenagens: Thelonious Monk foi revisitado num medley que incluiu a obscura “San Francisco Holiday” (aqui com letra de Joy, transformada e rebatizada “Don’t Worry Now”) e uma apropriação aventurosa de “‘Round Midnight”; à herança do trompetista Fats Navarro foi respigar uma versão especial de “Nostalgia (The Day I Knew)”. Do disco novo escutaram-se ainda a peça que lhe dá título e a sumptuosa balada “Guess Who I Saw Today”. Esteve magnífica em “Sweet Pumpkin” (do pianista Ronnell Bright, gravada inicialmente por Bill Henderson em 1959) e com um blues fez as delícias do público, convocado a acompanhá-la. A encerrar, deu-nos uma sentida leitura de “Stardust”, clássico de Hoagy Carmichael quase a completar um século. Com uma abordagem de certa forma menos “intelectualizada” do que a de uma Cécile McLorin Salvant (com quem, contudo, se poderão estabelecer algumas similitudes), Samara Joy é uma verdadeira força da natureza e dela vamos ouvir falar (muito) no futuro.
(António Branco)

 

PEDRO MOREIRA SAX ENSEMBLE (Angrajazz, Angra do Heroísmo)

A segunda noite do Angrajazz arrancou com o Pedro Moreira Sax Ensemble, decateto que nos ofereceu um disco fabuloso em 2021, “Two Maybe More”. A música que a formação apresentou resultou de um processo de reescrita, adaptação e expansão para este inusitado xadrez instrumental (oito saxofones mais contrabaixo e bateria) da música original que Moreira escreveu para o espetáculo de dança contemporânea de Sofia Dias, Vítor Roriz e Marco Martins – uma encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian – que subiu ao palco do Teatro Maria Matos em 2014. O saxofonista e compositor, em palavras introdutórias, aludiu à natureza “geométrica” desta música, que radica, desde logo, na disposição, em espelho, dos dez músicos em palco, com um representante dos quatro membros da família do saxofone de cada lado do palco (Bernardo Tinoco no soprano, Ricardo Toscano no alto, Pedro Moreira no tenor e Francisco Andrade no barítono, do lado esquerdo; Tomás Marques, Daniel Sousa, Mateja Dolsak e João Capinha, pela mesma ordem instrumental, do lado direito), e a secção rítmica ao centro – Mário Franco (contrabaixo) e Luís Candeias (bateria). Moreira prossegue um modus operandi de cariz ellingtoniano, tirando partido das características particulares de cada músico e desafiando barreiras estilísticas – em que alguns perseveram –, equilibrando uma componente escrita muito rigorosa com as manobras exploratórias características da improvisação. A função iniciou-se com o rufar quase impercetível de bateria que lança “Stairway to the Stars”, peça de densidade crescente que contou com um bom solo de Daniel Sousa no saxofone alto. Seguiu-se a belíssima construção sonora que é “Lado”, introduzida pelas ruminações extraordinárias do saxofone barítono de Francisco Andrade, que encontraram eco na intervenção de João Capinha, primeiro a solo e depois num diálogo entre ambos. Do arranjo vívido de “Giggly Giggling” brotaram um solo de Tomás Marques e uma declaração senhorial do líder, acolitado apenas por Franco e Candeias. (De assinalar a forma como se articulam e complementam a sobriedade “clássica” do contrabaixista com a relojoaria rítmica hiperdetalhada do baterista.) A atmosfera sombria de “In Verso” e a melodia ampla de “Giggly” (com Dolsak na linha da frente) fixaram memórias, mas o melhor ainda estava para chegar; primeiro na monumental peça que é “Como a Poesia”, com um solo soberbo de Toscano, e “Oh Cat”, onde Franco esteve portentoso a alimentar o groove e Tinoco e Candeias a brilharem nas respetivas intervenções. Um concerto para recordar.
(António Branco)

 

HENRY THREADGILL ZOOID (Chicago Jazz Festival, EUA)

A música era a grande motivação para estar ali e o Zooid, de Henry Threadgill, o grande objetivo. Threadgill nasceu em Chicago, mas mudou-se para Nova Iorque nos anos 70, onde se estabeleceu. Nunca esqueceu a sua hometown, onde começou a tocar, e foi recebido como um hometown hero nas palavras do apresentador do concerto, depois de ter ganho o Pulitzer de música para a composição “In For A Penny, In For A Pound”. A música do altista é um caso sério de inovação. Depois do “Air”, o “Zoid” é o seu principal veículo musical e com quem explora as suas complexas ideias há 20 anos. O quinteto atualmente integra o guitarrista Liberty Ellman, na tuba e trombone Jose Davila, o violoncelista Christopher Hoffman e o baterista Elliot Humberto Kavee. No palco Pritzker, o Pulitzer tocou uma seleção de partes da peça “Pathways”, de 2019, que escreveu inspirado na revitalização e limpeza do lago que banha a cidade de Chicago, o Erie. Para quem ouve, esta música é um mistério. São pontos, aparentemente dispersos, mas que, todos juntos fazem um movimento. Um pouco como um bando de andorinhas onde uma série de pintas passeriformes desenham movimentos abstratos, unidos com elasticidade. Os pontos musicais de Threadgill são transparentes e elásticos, parecendo terem propriedades magnéticas, desenhando movimentos estranhos. Como se cada instrumento nos desse algumas partes e omitisse outras num alinhavo difuso, mas ao mesmo tempo compreensível. Ficamos com a sensação que o concerto era sobre som e movimento. A escrita que dá estrutura a esta música uma investigação sobre serialização (Schoenberg , Messiaen, Boulez) de intervalos harmónicos (em vez de notas [escalas/acordes] e ritmos).  Ouvida é única, belíssimo, muito sofisticada e poética.
(Gonçalo Falcão)

 

CÉCILE McLORIN SALVANT (Funchal Jazz, Funchal)

Cantora, compositora e artista visual, Cécile McLorin Salvant é senhora de vincada personalidade artística, cuja abordagem pluridimensional felizmente não se deixa policiar. Escutei-a pela primeira vez ao vivo vai quase para uma década, quando foi a grande surpresa, para estes ouvidos, da edição de 2013 do Angrajazz. Salvant olha para trás e para a frente, para o erudito e o popular, o reverenciado e o esquecido, fazendo convergir elementos do jazz mais avançado, blues, teatro musical, cancioneiros tradicionais, para construir, com inteligência e sensibilidade, uma “visão” artística pessoal e de inatacável coerência. Os músicos superlativos que a acompanharam são também decisivos para tudo o que acontece: o grande Sullivan Fortner (piano), Marvin Sewell (guitarra), Paul Sikivie (contrabaixo) e Keita Ogawa (percussão) – com este último a aportar o contributo que acabou por se revelar o menos interessante. O repertório que Salvant trouxe ao Funchal espelha essa visão ampla e não balizada do jazz e suas ligações a outros universos sonoros. Desde logo na forma como interpelou “Mista”, emblema de Dianne Reeves, com uma voz tão maleável quão potente, ou na leitura emocionante de “Over the Rainbow”, acolitada pelo piano de Fortner (o homem de lata, onde estiver, sorriu, feliz). Ao recente álbum “Ghost Song” – a sua estreia na Nonesuch – foi buscar “Optimistic Voices/No Love Dying”, com intervenções de alto nível de Sewell e Sikivie, “Obligation” e a peça-título (devoto de Kate Bush, confesso que senti a falta de “Wuthering Heights”). Resgatou do olvido uma trovadora do século XIX e recordou “Fog”, do álbum “For One to Love” (2015), que começa impressionista e logo adquire um balanço irresistível. Do assombroso blues sofrido de “Saint Louis Gal” (Sewell de novo brilhante) passou ao registo operático de “Pirate Jenny” e “The World Is Mean”, de “A Ópera dos Três Vinténs”, de Kurt Weill. Releu “Wild is Love”, canção popularizada por Nat King Cole no princípio dos anos sessenta. Numa atuação inesquecível, Salvant, impermeável a facilitismos (embora admita que possa ter amenizado a sua prestação para ir ao encontro do público; em disco assume uma postura mais combativa, ativista, se quiserem), tornou cada interpretação um desafio para si e para quem a escuta. E assim, brilhando a grande altura, ofereceu-nos o momento maior do festival Funchal Jazz.
(António Branco)

 

TIGRAN HAMASYAN (Centro Cultural de Belém, Lisboa)

Edições na Verve e na ECM, entre outras, cimentam um talvez tranquilo, mas ainda assim sólido, percurso que o pianista arménio Tigran Hamasyan tem vindo a trilhar desde 2009. O seu trabalho mais recente, “The Call Within”, porém, é já o seu quarto registo na prestigiada Nonesuch, segundo em trio depois de “Mockroot” (2015), com os restantes a serem exercícios solo plenos da exuberância técnica que já levaram Herbie Hancock a, humildemente, declarar-se seu discípulo. Tigran Hamasyan, ressalve-se já agora, tem apenas 35 anos e provavelmente ainda nem falava quando o veterano pianista lançou “Perfect Machine”, em 1988. Elogiado pela imprensa internacional — foi artista do ano para a associação de imprensa musical alemã e a BBC Music Magazine escreveu que se deveria «arquivar este artista na letra F de Fantástico, em ambos os sentidos da palavra» —, Hamasyan vem agora a Portugal com o seu trio em que pontuam o incrível baterista Arthur Hnatek e o baixista elétrico Marc Karapetian: três músicos tecnicamente deslumbrantes e artisticamente capazes de nos surpreender em cada momento. 
(Texto da organização)

 

TURQUOISE DREAM (Jazz em Agosto, Lisboa) 

O quarteto paritário Turquoise Dream, formado em 2019, junta Carlos “Zíngaro” (violino), Marta Warelis (piano), Helena Espvall (violoncelo) e Marcelo dos Reis (guitarra acústica), mú[email protected] com personalidades musicais muito próprias e vincadas e enquadramentos musicais distintos. É precisamente desta riqueza que se nutre o som da formação, que não se deixa balizar. Do registo homónimo do quarteto, gravado durante a edição de 2019 dos Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra, no Museu Nacional Machado de Castro, e também desta sua apresentação na Gulbenkian, fica patente o recorte camerístico muito peculiar e desafiante de dogmas – venham eles de que domínio musical vierem –, com “Zíngaro”, figura maior da improvisação (nacional, europeia, mundial, do sistema solar), no centro de tudo o que acontece, pilar central em torno do qual gravitam os demais instrumentos, sejam o piano de filigrana de Warelis, as texturas urdidas por Espvall ou a guitarra sempre interventiva de dos Reis. Foi aliás notória uma cumplicidade especial entre violinista e guitarrista. A música do quarteto – completamente improvisada – é noturna, enigmática, rica em detalhes, convocando elementos de múltipla origem (como o perfume balcânico que o violinista por vezes propõe ou as frases de um lirismo comovente), logo transformados e integrados no jogo coletivo, numa aritmética em que o cômputo é maior do que a soma das partes. 
(António Branco)

 

Agenda

30 Maio

Hugo Ferreira e Miguel Meirinhos

Maus Hábitos - Porto

01 Junho

André Santos e Alexandre Frazão

Café Dias - Lisboa

01 Junho

Beatriz Nunes, André Silva e André Rosinha

Brown’s Avenue Hotel - Lisboa

01 Junho

Ernesto Rodrigues, José Lencastre, Jonathan Aardestrup e João Sousa

Cossoul - Lisboa

01 Junho

Tracapangã

Miradouro de Baixo - Carpintarias de São Lázaro - Lisboa

01 Junho

Jam session

Sala 6 - Barreiro

01 Junho

Jam Session com Manuel Oliveira, Alexandre Frazão, Rodrigo Correia e Luís Cunha

Fábrica Braço de Prata - Lisboa

01 Junho

Mano a Mano

Távola Bar - Lisboa

02 Junho

Rafael Alves Quartet

Nisa’s Lounge - Algés

02 Junho

João Mortágua Axes

Teatro Municipal da Covilhã - Covilhã

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