Melhores do ano
Melhores de 2022: Discos Internacionais
Chegou aquela altura do ano: aqui estão as nossas seleções dos favoritos de 2022. Estas listas resultam de uma votação coletiva e este ano participaram nas votações os críticos António Branco, Eray Aytimur, Gonçalo Falcão e Nuno Catarino e ainda dois convidados: Inês Laginha (pianista, diretora artística da Casa Bernardo Sassetti) e Rui Tentúgal (jornalista, Expresso). Começamos pela lista dos melhores discos internacionais de 2022.
CÉCILE McLORIN SALVANT: “Ghost Song” (Nonesuch)
A cantora, compositora e artista visual norte-americana Cécile McLorin Salvant, nascida e criada em Miami, Florida, filha de mãe francesa e pai haitiano, foi descrita pela grande Jessye Norman como «uma voz única sustentada por uma inteligência e musicalidade plenas, que ilumina cada nota que canta». Influenciada por Sarah Vaughan, Billie Holiday, Bessie Smith e Betty Carter, tem vindo a desenvolver uma abordagem única que combina ecos de vaudeville, blues, das tradições folk de várias latitudes, teatro, jazz e música barroca. Merecedor de menção especial é o seu trabalho de curadoria, reabilitando repertório virtualmente esquecido, canções com narrativas fortes, dinâmicas poderosas, cambiantes inesperadas e, não raras vezes, uma boa dose de humor. Em “Ghost Song”, o seu notabilíssimo álbum de 2022, continua a empurrar a sua abordagem para além do jazz de veia mais mainstream que lhe tantos elogios lhe rendeu. Ouçamo-la, por exemplo, a interpretar as magníficas leituras de “Wuthering Heights”, de Kate Bush, ou “No Love Dying”, de Gregory Porter, ou imersa no arranjo especial de “The World is Mean”, da “Ópera dos Três Vinténs”, de Kurt Weill e Bertolt Brecht, para além dos seus próprios originais. Testemunhámos a força da sua arte no soberbo concerto com que nos presentou na mais recente edição do Funchal Jazz. Cantará no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a 17 de março.
(António Branco)
EVE RISSER RED DESERT ORCHESTRA: “Eurythmia” (Clean Feed)
Há discos que se inserem, sem qualquer dúvida, num género musical. Contudo, e ainda bem, há obras artísticas que fogem a este raciocínio lógico - são híbridas, escorregadias, inconclusivas, apesar de conterem em si uma estrutura definida. Uma miscelânea com diferentes origens que cria uma solidez que faz todo o sentido. E da pluralidade nasce a beleza. “Eurythmia”, o novo trabalho de Eve Risser com a Red Desert Orchestra, é esse mundo vivo, com genes musicais de lugares remotos do globo que se encontraram neste novo disco. (...) As melodias dos sopros, os ritmos da percussão africana, a bateria do jazz, a eletrónica, relacionam a história da música e fazem-nos entender que não há muros nem fronteiras para a criação artística – a geografia da Terra é e foi sempre feita de migrações. “Eurythmia” representa esse mundo vivo, da empatia e do encontro.
(Sofia Rajado)
BRAD MEHLDAU: “Jacob's Ladder” (Nonesuch)
Pianista absolutamente consagrado que já não deve nada a ninguém, Brad Mehldau surpreendeu com este novo disco. Sendo inspirado na sua procura espiritual, musicalmente este álbum vai beber diretamente, e sem qualquer pingo de vergonha, ao prog rock (música que o pianista ouvia na adolescência) e o resultado é uma música muito particular. O disco conta com o contributo de um leque alargado de músicos, onde se incluem Mark Guiliana (bateria), Joel Frahm (saxofones) e as cantoras Becca Stevens e Cécile McLorin Salvant – que assina o nosso disco internacional do ano –, entre muitos outros (e diferentes músicos vão participando em diferentes temas). Sem covers de Radiohead ou Elliott Smith, este é um verdadeiro OVNI numa discografia impoluta, uma original aproximação ao prog rock que até surpreendeu os fãs de longa data.
(Nuno Catarino)
MARY HALVORSON: “Amaryllis” / “Belladonna” (Nonesuch)
Conceituada guitarrista norte-americana, Mary Halvorson lançou dois discos de uma assentada: “Amaryllis” e “Belladonna”, pela editora Nonesuch Records. Embora estando muito associada ao jazz, o seu percurso tem cruzado a música clássica, o rock, a música improvisada, experimental e eletrónica. Podemos afirmar que Mary Halvorson é uma artista visionária, uma vanguardista no mundo da arte, que interliga as suas várias influências para criar uma linguagem muito própria. Dois álbuns que contam com a participação do quarteto de cordas Mivos Quartet, sendo que em “Amaryllis” a guitarra de Mary Halvorson se faz acompanhar ainda por cinco outros músicos - Patricia Brennan no vibrafone, Nick Dunston no contrabaixo, Tomas Fujiwara na bateria, Jacob Garchik no trombone e Adam O’ Farrill no trompete. Se por um lado “Belladonna” é mais melódico, no sentido clássico, por outro “Amaryllis” tem uma presença mais rítmica e exploratória, embora se encontrem estes dois elementos em ambos. Em duplo ato, Halvorson confirma a sua enorme qualidade enquanto instrumentista e compositora.
(Sofia Rajado)
IMMANUEL WILKINS: “The 7th Hand” (Blue Note)
Volvidos dois anos do lançamento de “Omega”, o jovem saxofonista norte-americano Immanuel Wilkins regressa aos discos com “The 7th Hand”, um trabalho de fino calibre que nada fica a dever ao seu aclamado antecessor, superando-o, aliás, no domínio das ideias e sentido. Compreende-se a preferência de Wilkins de não continuar com letras do alfabeto grego, não fosse este um álbum plenamente desconfinado, aberto e expansivo. “The 7th Hand” assume-se, acima de tudo, como um ato de progressiva transcendência, de procura sequencial e não-linear de materialização musical daquilo que é precisamente trans-humano, divino, e que surge da ideia de se ser «a conduit for the music as a higher power that actually influences what we’re playing», como o próprio Wilkins declara em notas de apresentação. (...) Um álbum de escuta essencial que indubitavelmente reitera o génio musical de Immanuel Wilkins.
(João Morado)
KEITH JARRETT: “Bordeaux Concert” (ECM)
Keith Jarrett só sabe fazer discos muito bons, excelentes ou – uma ou outra vez – sublimes. É a escala dele. A maior parte dos músicos vai de zero a dez. Ele vai de 8 a Keith Jarrett. “Bordeaux Concert” foi gravado em 2016 e é um resumo de vários Jarretts: o intérprete de Shostakovich, o dos os blues de Colónia, da escuridão de “Dark Mountains”, das melodias wagnerianas de “Facing You” e do boogie-woogie abstrato que teima em aparecer em todo o lado, como uma espécie de bóia de salvação. Mudou o processo: já não são os longos improvisos de 20 minutos. Nesta fase final da sua carreira preocupa-se em instalar, resolver e fechar uma canção curta. Continua a ser um dos músicos mais extraordinários de sempre, pianista de jazz e muito mais. Continuamos a ouvir cada disco como um legado musical ao planeta.
(Gonçalo Falcão)
JULIAN LAGE: “View with a Room” (Blue Note)
Um dos mais interessantes guitarristas da atualidade, Julian Lage apresentou este ano o novo disco “View with a Room”, o seu segundo registo pela Blue Note após o aplaudido “Squint”. Ao lado de Lage estão Jorge Roeder (contrabaixo) e Dave King (bateria), além do também guitarrista Bill Frisell (em sete temas), músico brilhante que a cada ano vai sedimentado o seu nome na galeria das estrelas jazz globais. O grupo vai construindo música que soa a novidade, com Lage a mostrar a beleza do som da sua guitarra, além de se articular com Frisell. Além de bandleader, Lage tem ainda participado como sideman em alguns dos projetos mais relevantes deste ano, como o trio de Charles Lloyd (no disco “Sacred Thread”) e o New Masada Quartet de John Zorn (que brilhou no Jazz em Agosto).
(Nuno Catarino)
AVRAM FEFER QUARTET: “Juba Lee” (Clean Feed)
Avram Fefer não edita à toa: tem uma discografia curta, mas sólida. Tem também um quarteto estável, antigo e coeso que toca a sua música de olhos fechados: Marc Ribot na guitarra, Eric Revis no contrabaixo e Chad Taylor na bateria são uma mistura nova-iorquina perfeita: agressiva, forte, com a dose certa de desorganização e fuck you. O saxofonista, ativo na cena jazzística nova-iorquina há 25 anos, é como o Bruce Springsteen: sabe fazer canções. Temas fortes, em ritmo acelerado, sinuosos como quem anda estugado por Manhattan. Marc Ribot é um elemento pivotal neste grupo porque dobra o saxofone e reforça a secção rítmica. Fá-lo à sua maneira, pouco rigorosa, forte e positiva. Liga o som da bateria e do contrabaixo e faz com que guitarra e saxofone soem no seu melhor em nove canções atraentes de jazz temperado especiarias do médio oriente e picante africano.
(Gonçalo Falcão)
CHARLES LLOYD TRIOS: “Chapel” (Blue Note)
Ao longo de uma trajetória de mais de seis décadas, Charles Lloyd sempre foi um visionário e um espírito livre. E assim permanece, aos 84 anos, prolífico e indispensável. O seu engenho ofereceu-nos em 2022 a série “Trios”, três discos nesta configuração que tanto acomoda intimidade como liberdade de movimentos. O primeiro álbum desta série foi precisamente “Chapel”, no qual o veterano saxofonista se faz acompanhar pelo guitarrista Bill Frisell e pelo contrabaixista Thomas Morgan. Ficamos devedores à Coates Chapel, no campus da Southwest School of Arts de San Antonio, no Texas, onde o grupo se apresentou pela primeira vez em dezembro de 2018. Frisell já havia consolidado a sua relação com Lloyd como membro fundador dos Marvels, quando foi convidado para este concerto. Familiarizado com as características acústicas do local, e sabendo da ligação de Morgan ao guitarrista, sugeriu que o contrabaixista completasse a formação. Lloyd sopra delicadamente – escute-se a versão sublime de "Blood Count", de Billy Strayhorn; Frisell é brilhantemente sucinto e Morgan aporta o seu som sólido e imaginativo.
(António Branco)
MARGAUX OSWALD: “Dysphotic Zone” (Clean Feed)
Um disco escuro e pesado, feito de extremos: de violência e de fragilidade; de intensidade e de contração. Uma tempestade num piano. Margaux Oswald faz-nos um sintetizo da escuridão no piano: da “BWV 795” de Bach a “Two Lonely People” de Bill Evans. Leva o instrumento para locais onde raramente o encontramos, fazendo-o vibrar em graves, usando contrastes e uma abordagem intensa e brutalista, indo de um extremo ao outro do teclado e gerindo com mestria a relação entre tensão e libertação. “Zona Disfótica” designa a camada aquática do oceano onde a fotossíntese não é possível, o que transpõe com exatidão em palavras, a música do disco: a referência ao desânimo da luz perante a densidade da escuridão explica este solo de piano e o processo a que Margaux Oswald se entregou: foi para a escuridão para encontrar beleza e equilíbrio.
(Gonçalo Falcão)
MATTHEW SHIPP TRIO: “World Construct” (ESP-Disk)
“World Construct” junta o pianista Matthew Shipp ao contrabaixista Michael Bisio e ao baterista Newman Taylor Baker. A verdade surge logo no título: Shipp, ao longo do seu percurso de mais de três décadas, tem vindo a construir um mundo musical muito pessoal. Sempre que é acrescentado um novo tijolo a este edifício, compreendemos melhor a profundidade e o alcance do seu trabalho. Bebendo no legado das luminárias, com Thelonious Monk e Cecil Taylor acima das demais, Matthew Shipp tem sabido fazer a ponte para a contemporaneidade e lançar pistas para o futuro. Em “World Construct”, gravado durante a pandemia, a sua música volta a ser ao mesmo tempo angulosa e bela, em que a traços “clássicos” se juntam outros que reiteram a ousadia e a intrepidez. Shipp volta a exibir a sua arte de criar peças a partir do nada que parecem resultar de um complexo processo de composição prévia. Como alguém disse certeiramente, a música que faz parece provir de «um reino onde a matemática e a magia colidem». Se necessário fosse, “World Construct” sublinha o lugar de Matthew Shipp no Olimpo dos pianistas de jazz.
(António Branco)
SAMARA JOY: “Linger Awhile” (Verve)
Cantora ainda muito jovem, a norte-americana Samara Joy tem conquistado rapidamente o mundo. Depois da auspiciosa estreia com um registo discográfico homónimo (2021), o novo “Linger Awhile”, confirma definitivamente uma voz excecional, com enorme amplitude, além do excelente domínio técnico. Samara Joy mostra saber interpretar temas com reverência à tradição e não se esconde de mostrar alma e emoção em cada canção. Quem tenha tido oportunidade de a ver ao vivo (e neste ano de 2022 atuou em Portugal por duas vezes, no Seixal e em Angra do Heroísmo), pôde confirmar a qualidade da sua voz, apoiada pela enorme segurança e simpatia em palco. Este segundo disco consagra definitivamente a voz Samara Joy no panorama internacional.
(Nuno Catarino)
TAMER TEMEL / ERCÜMENT ORKUT / CEM AKSEL FEAT. HEZARFEN ENSEMBLE: “Töz II” (A.K. Müzik)
Oriundo da Turquia, o trio Töz junta três músicos de grande nível: Tamer Temel (saxofones tenor e soprano), Ercüment Orkut (piano) e Cem Aksel (percussão). O trio revelou-se ao mundo em 2018, com o álbum de estreia homónimo (“Töz”), onde apresentava a sua música original. “Töz II” é uma continuação do trabalho anterior, mas vai mais além: aos elementos base (saxofone, piano e percussão), acrescenta-se agora a participação do Hezarfen Ensemble. Em cima da excelente dinâmica de comunicação que já conhecíamos do trio, junta-se agora a vasta amplitude gama de cores do ensemble (cordas, sopros e percussão), que vai expandindo a música do grupo, combinando elementos do jazz com a clássica, numa mescla curiosa e desafiante.
(Nuno Catarino)
COLUMBIA ICEFIELD: “Ancient Songs of Burlap Heroes” (Pyroclastic)
Se há coisa que o Jazz em Agosto 2022 veio provar é que Nate Wooley não faz música banal. “Seven Storey Mountain VI” (Pyroclastic, 2020), a peça que veio tocar a Lisboa, foi dos momentos mais intensos que vivemos ao vivo este ano e a música do trompetista americano dá-nos razões para pensar. O disco de 2022, “Ancient Songs of Burlap Heroes” (Pyroclastic), é, de certa forma, uma continuação de “Seven Storey Mountain” num registo diferente: uma história sonora e argumentos para reflexão. Neste disco, o quarteto – com Mary Halvorson e Susan Alcorn nas guitarras e Ryan Sawyer na bateria (a que se acrescenta pontualmente o violino Mat Maneri e o baixo de Trevor Dunn) – reflete sobre a grandeza majestosa dos glaciares e a forma como, lentamente, desaparecem por causa do aquecimento global. A desolação gelada, lenta, solitária, longínqua e por isso quase invisível ouve-se numa música sombria, mas com uma beleza esperançosa.
(Gonçalo Falcão)
JOHN ESCREET: “Seismic Shift” (Whirlwind)
“Seismic Shift” é o nono álbum na condição de líder e o primeiro em trio do pianista britânico John Escreet, com Eric Revis no contrabaixo e Damion Reid na bateria e chancela da londrina Whirlwind Recordings. Para a música do trio confluem elementos que vão de harmonias pós-bop, a traços camerísticos e a terrenos mais avançados marcados por indagações harmónicas, melódicas e rítmicas, adentrando-se amiúde na atonalidade. A praxis pianística de Escreet tem sido sempre marcada pelas pontes que sabe estabelecer entre um requinte desafiador na esteira de históricos como McCoy Tyner ou Herbie Hancock, com ruturas tectónicas continuadoras dos reptos lançados por Thelonious Monk, Cecil Taylor ou Alexander von Schlippenbach. Gravado no seu novo reduto californiano (Granada Hills, zona de alta sismicidade), “Seismic Shift” revela o modo como os predicados de Escreet são exponenciados, sendo a presença de Revis e Reid determinante para tal, numa lógica de desafio e complementaridade. Este álbum de John Escreet é um verdadeiro abalo, cujas consequências atingem elevado grau na escala das emoções.
(António Branco)
DAVE SOLDIER & WILLIAM HOOKER: “LeWitt Etudes” (Mahakala)
No final dos anos sessenta, Sol Lewitt criou uma série de regras para os seus desenhos e que se materializaram na série “Wall Drawings”. Inspirados no processo do minimalista geométrico americano, o violinista Dave Soldier e o baterista William Hooker criaram uma série de pautas/textos para guiar as improvisações. Arquitetaram um noneto quase simétrico de dois metais (trompete e saxofone), dois violinos, dois contrabaixistas, guitarra e piano. As músicas partem das regras, que são textos, para serem interpretadas, com um princípio dominante explicado por Soldier: «The major rule is, it has to be music that you want to listen to. You don't want to just play any nonsense.» O resultado é surpreendentemente melódico, com alguns grooves e blues em que os músicos agarram ideias no ar para criarem coletivamente melodia, tensão e contraste. Uma surpresa.
(Gonçalo Falcão)
ANDREW CYRILLE, WILLIAM PARKER & ENRICO RAVA: "2 Blues for Cecil" (TUM)
Três músicos veteranos, oriundos de diferentes universos, estão aqui reunidos num disco que é uma homenagem a uma das figuras maiores (e mais controversas) da história do jazz, o pianista Cecil Taylor – com quem os três músicos tocaram. Se o percussionista Andrew Cyrille e o contrabaixista William Parker têm um percurso próximo do jazz mais livre, nos últimos anos o percurso do trompetista Enrico Rava tem estado sobretudo ligado ao jazz cristalino da ECM, mas o italiano tem também raízes fundadas no free aceso. Ao longo do disco, o trio vai-se servindo de diferentes estratégias: por vezes alinhados em improvisações livres, outras vezes usam como base composições da autoria de cada um dos intervenientes; e, para fechar o disco, até há um standard intemporal: “My Funny Valentine”. Não há aqui tentativa de imitar o homenageado: os músicos simplesmente contribuem com as suas personalidades musicais num encontro rico.
(Nuno Catarino)
PARKS / BREWER / HARLAND: “Volume Two” (Ahem)
Depois de dois anos de isolamento e palcos vazios, os músicos estavam ávidos para tocar. Em agosto de 2021, Aaron Parks, Matt Brewer e Eric Harland reuniram-se para uma sessão de gravação improvisada. Não ensaiaram, conversaram muito, não ouviram: depois de um período tão longo de isolamento pandémico, o que era preciso era tocar. Tocar em tempo real, sem Zoom, sem qualquer agenda, na mesma sala. Numa sala própria. Amigos há mais de vinte anos, com uma história dentro e fora do trio, precisavam de proximidade e de música para reativarem o que construíram e tinham em “cache”. E a música soa a isso mesmo: “Volume Two” é a continuação do primeiro tomo e, tal como o inaugural, é lúdico, imperfeito, alegre, cru e feliz. E isso ouve-se. A felicidade de estar com amigos, principalmente.
(Gonçalo Falcão)
ENRICO RAVA & FRED HERSCH: “The Song is You” (ECM)
Num ano de duetos – Kaja Draksler com Susana Santos Silva, Barre Philips com György Kurtág Jr., Gunter “Baby” Sommer com Raymond MacDonald, Lori Freedman com Scott Thomson, Lucas Niggli com Matthias Loibner – calhou a Enrico Rava e Fred Hersch serem destacados nesta lista. Mestres da melodia, o trompetista e o pianista exploram a tradição numa suite muito tranquila e serena. “Misterioso” e “'Round Midnight” de Thelonious Monk, “The Song Is You” de Jerome Kern, “Retrato em Branco e Preto” de Tom Jobim e “I’m Getting Sentimental Over You” de George Bassman ocupam a maior parte do disco, com três temas do duo a fazer o resto. Se ainda há “cool jazz”, não passa por Cascais. Mas passa certamente por aqui.
(Gonçalo Falcão)
ALEXANDER HAWKINS MIRROR CANON: “Break a Vase” (Intakt)
Depois do aclamado “Togetherness Music”, de 2021, o pianista e compositor britânico Alexander Hawkins apresenta-se noutro contexto, em que o trio com o contrabaixista Neil Charles e o baterista Stephen Davis se alarga para sexteto, com o saxofonista e clarinetista Shabaka Hutchings, o guitarrista Otto Fischer e o percussionista Richard Olátúndé Baker. Quem conhece o trabalho de Hawkins saberá que desde que surgiu no panorama da música improvisada britânica, em meados da primeira década do século XXI, este é um grupo novo, porém com músicos com quem Hawkins tocou em diferentes contextos. As peças de “Break a Vase” (título que radica no discurso de Derek Walcott quando recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1992 – «Parte um vaso e o amor que reúne os fragmentos é mais forte do que aquele amor que deu por certa a sua simetria quando estava inteiro»), sendo produto da mente fervilhante de Hawkins, captam o impulso energético dos músicos que o rodeiam. Este é um álbum de atmosferas e timbres contrastantes, que equilibra a componente composicional, elegante e detalhada, com a prática da improvisação comum a todos os músicos.
(António Branco)