Lua Cheia #6
A mulher maravilha da vida real
Nesta colaboração mensal com a jazz.pt, o paulista Rodrigo Brandão faz uma ponte com a música brasileira e as suas referências pessoais do jazz. Para a sexta edição da série “Lua Cheia”, Rodrigo Brandão conversa com a cantora Juçara Marçal, um fenómeno da música brasileira da atualidade.
Pergunte a quem conhece, e ouvirá que ela é a rainha da porra toda. Sua voz, presença, proceder, seu poder... tudo isso é evidente a qualquer alma com um pingo de sensibilidade que seja. Uma vez, entrou num teatro lotado, subiu no palco para cantar uma única canção, e botou a casa abaixo num grau que, quando acabou, estava todo mundo chorando um rio de lágrimas de emoção na plateia. Era uma quinta-feira, eu estava lá. O baterista queria parar o show ali mesmo, e ele tinha razão. Nada superaria aquele momento. Com vocês, Juçara Marçal.
Quando soube que o título do seu álbum mais recente é “Delta Estácio Blues”, na hora me peguei pensando na sua relação com esse género musical. Você ouve / ouviu muito blues?
O blues das antigas me comove muito, Bill Withers, o blues que está em Ray Charles, em Jimi Hendrix, em James Brown... mas eu creio que é mais um ethos blueseiro que me fascina, é um jeito de olhar o mundo, de sentir o mundo... que está no samba, no maracatu, num brega funk, na poesia de Mano Brown, nas letras do Gil, no canto do Milton...
O que te inspira atualmente?
Os minimalismos... de Kiko Dinucci em “Rastilho”, de Rosalía em “Motomami”, do pagode baiano, do funk mineiro... acho impressionante essa capacidade de criar todo um universo sonoro, com poucos elementos e esses caras fazem isso com muita propriedade, muito suingue.
Depois do “Delta Estácio Blues” você já lançou um EP e agora o segundo álbum do projeto Sambas do Absurdo. Me guia, por favor, através desses lançamentos: do que se trata cada um deles, quem participa?
"Delta Estácio Blues" foi esse disco feito num processo longo e cheio de participações. Além das onze músicas que entraram no disco, quatro ficaram de fora, porque senti que eram músicas que, embora tivessem seguido o mesmo processo, de alguma forma já contavam uma outra história. Assim deixei essas quatro para o EP: “Um choro”, de Jadsa, “Odumbiodé”, parceria com Rodrigo Campos e que conta com a participação esplendorosa de Paulinho Santos na percussão, “Não reparem”, parceria com clima que tem Gui Held e Marcelo Cabral de participações, e “Plantei um pé de ipê", parceria com Alzira E.
E o santo, Ju? Você se importa de comentar um pouco a relação com a fé nos Orixás nessa fase da sua vida?
Sou filha de Oxóssi. Não frequento atualmente nenhum terreiro. Fiquei meio órfã desde que a mãe Sandra Epega se encantou. Sigo fazendo oferendas ao meu orixá, atenta aos sinais da natureza, buscando o sagrado nas coisas do meu dia-a-dia. Sandra Epega me deu um presente, né?! Que foi esse nome: Odumbiodé (que acabou virando uma canção do “EPDEB”): um dia eu estava no terreiro, ela (na verdade, o xangô dela) me chamou pra sentar ao lado dele. Ele me perguntou: “você não fala muito não, né?!”... Respondi que ele estava certo. E ele: “e que você sabe o peso que a sua palavra tem... pode machucar, por isso usa com cuidado”... E seguiu: «você é de Odumbiodé, um ancestral bem bem distante de Oxóssi, ele é preto preto preto retinto e é o orixá que mata fera grande». Então é isso: muito prazer, Odumbiodé é meu nome!
O que é importante falar e ninguém te pergunta?
É importante falar que eu dei aula por muito tempo. de português, de canto... só parei de dar aulas em 2015 porque viver só de música no Brasil é muito difícil. e participo de tantos projetos, pela inquietude que trago comigo, claro!, mas também porque se tivesse uma só fonte de remuneração em música eu tava bem ferrada. Essa é a real. Sem romantizações. E ainda sobre romantizações, o fato de eu ter conseguido o reconhecimento que tenho hoje não é mágica, não é dádiva, se deve a um trabalho conjunto, muita gente me ajudou, desde lá atrás, meus pais, apoiando, mesmo sem entender direito, onde ia dar a minha vocação, mestres que tive, amizades sinceras... é muita gente!... uma turba, que vai ao meu “mil avô”, como diz Adélia Prado. Sozinha não teria conseguido nem metade. e segue assim: Ubuntu.
Entendo que você tem uma relação com a cultura portuguesa, para além de se apresentar diversas vezes no país. Você pode comentar um pouquinho sobre isso?
Acho que é aquela relação do colonizado que chega na colónia e percebe que herdou um monte de coisas sem nem ter se dado conta (risos). Lembro que a primeira vez que toquei em Lisboa foi com o grupo A Barca. A gente preparou um repertório maioritariamente de músicas de herança africana: bois, catimbós, sambas, congados, cocos... o fato é que chegando em Portugal, a gente percebeu que tudo que a gente cantava tinha uma presença enorme lusa: nos perfis melódicos, nos assuntos, nos instrumentos... foi um choque (risos). Depois voltei para shows com Metá Metá, "Rastilho” (com Kiko Dinucci) e agora com “Delta Estácio Blues”... sinto sempre maior o apreço que os portugueses demonstram por todos esses projetos. Mesmo o “Delta...”, que nem chegou já tem recebido muita atenção do pessoal... Tem sempre alguém de Portugal comentando os posts que faço nas redes sociais, já tem uma equipe de vídeo interessada em fazer um registo do show. Acho que vai ser massa.