“Remembrance: The Poetry of Emily Brontë”
“Remembrance”: uma (po)ética do crepúsculo
O contrabaixista e compositor Nélson Cascais gravou o disco “Remembrance” inspirado na poesia de Emily Brontë. Lançámos o convite a Cláudia Coimbra – professora, tradutora e investigadora de cultura e literatura na área dos estudos anglo-americanos, amante incondicional de poesia romântica – a ouvir o disco e refletir sobre a música. Aqui ficam as suas palavras.
“The night is darkening round me.”
Versos repetidos como prece, ventos acolhidos como amantes vagabundos, mais imaginários do que concretos. E uma sede primitiva, austera, condenada a fracassos e impossibilidade. “I cannot go”. Que razão para um coração intempestivo que desafia o mundo? Que harmonia ou ritmo para um espírito em manso desequilíbrio? Que natureza viva (ou morta?) como lírica matéria, efusão quase metafísica? E que Emily Brontë para os nossos tempos? A academia não nos dá todas as respostas; e ainda bem. Mas é verdade que a geografia é aquela, a das colinas do Yorkshire, amadas com paixão absoluta, desespero e abandono quase místico. Esta não é uma leitura de “Wuthering Heights”, embora pudesse sê-lo. Difícil separar a Brontë romancista da Brontë poeta: ambas abalam o convencional status quo vitoriano – redoma bafienta – e guardam um segredo de si que nunca saberemos decifrar.
Pelo universo de Emily perpassa uma intensidade emocional ao alcance de quase ninguém. Nas suas veias a solidão fala mais alto do que qualquer outra voz. No seu olhar julgamos espelhadas as sombras de uma realidade desolada, violenta, onde há caminhos (dilemas morais?) que de tão vastos não têm saída. Por um lado, a paisagem física que tudo devora, com seus montes e charnecas a perder de vista; por outro, um corpo que tudo deseja e uma alma que tudo sublima. Como quem não foge, ou não quer fugir, a destino algum. A imaginação – chave para entender por que motivo Emily é quem/como é – é também a pedra de toque do álbum “Remembrance: The Poetry of Emily Brontë”. Unir o legado poético de uma autora tardo-romântica ao jazz é já em si um movimento na direcção do transgressivo, mas um que se acolhe sem qualquer estranheza. A leitura é de dupla provocação: para os músicos e, mais tarde, para o seu público. Tal leitura passa igualmente por uma escolha prévia: a dos fragmentos que se pretende dar a ouvir, proporcionando sonhos e visões que, não sendo os que Emily fez nascer no momento exacto do acto de criação, são os que mais poderão aproximar-se de uma atmosfera oblíqua, crepuscular, por ela evocada.
Nélson Cascais e o seu sexteto despem tais fragmentos de demasiados conceitos e ideias feitas, não abandonando, porém, as deambulações oníricas sem as quais não reconheceríamos Emily, mesmo sendo ela enigma. Ouvimos o contrabaixo em compasso cirúrgico, preciso, ora antecipando desenlaces funestos, ora servindo de rede a saltos (quase) mortais. Vemos ao longe, recortada no escuro, uma janela de Haworth iluminada por tímida vela definhando noite dentro. Emily escreve enquanto outros, privos de grandeza, dormem. Folhas manchadas com os borrões da sua pena, pontas dos dedos sujas de tinta. Mente em prodigioso delírio. Por vezes o pensamento flui, com o saxofone a destilar interrogações ou a apaziguar a força trágica das coisas. Outras vezes, medimos a nossa própria vivência com a de quem nos interpela assim, acarinhando pequenos desastres de um passado que não esquecemos, ou gestos que ficaram pelo caminho. E somos, tal como o sujeito lírico feito som e fúria, “the spirit that remembers/other desires and other hopes”. Chamemos-lhe a lancinante dor da memória. E deixemo-nos contaminar pela melancolia que desse exercício remanesça. “Intimations of mortality”, em diálogo com uma ode de Wordsworth.
Não há optimismo que nos salve. Mas mesmo na veneração de um sentimento de decadência e de perda (“fall, leaves, fall”) surge a maior concretização: o poder perene de uma natureza que tudo ensombra; que dita por onde e como cada um de nós a acolherá em si. Ou lhe pertencerá. Sentimo-la tanto nas palavras (escritas e proferidas) como na melodia que as acompanha. Vemos árvores em silhueta disforme vergarem-se perante a força de tempestades (“the giant trees are bending / the storm is fast descending”) – imagem, aliás, reproduzida na capa deste trabalho. Mas mais do que isso: passada a intempérie, ousamos (re)descobrir o silêncio. “All hushed and still within the house”. Não sendo certo que Emily Brontë possa ser do nosso tempo, ou pertencer a este mundo que hoje habitamos (a não ser talvez como espectro benigno), recebemos do álbum, na delicadeza dos últimos minutos, um sinal de que a poderemos compreender. E ainda que a sonoridade etérea do vibrafone final aponte para as estrelas, sabemos que a iremos descobrir mais verdadeira, mais real, quiçá mais palpável, em outro lugar. Emily fica-se por uma liberdade cadente, fulgurante, não plenamente ascética; condenada a ser mais da terra do que dos astros. “Remembrance” lembra-nos isso.
Sobre a autora:
Cláudia Coimbra é professora, tradutora e investigadora de cultura e literatura na área dos estudos anglo-americanos (Faculdade de Letras, Universidade do Porto). Amante incondicional de poesia romântica. Ouvinte ocasional de jazz.