(des)encontros com o jazz (e música improvisada) em Portugal #02
Paulo Gil (1937-2022): «o jazz é uma força criativa e sonora a não ignorar»
No segundo texto da sua rubrica “(des)encontros com o jazz (e música improvisada) em Portugal”, o investigador Pedro Cravinho recorda Paulo Gil, que nos deixou há poucas semanas, sobretudo enquanto baterista e pontual cantor de scat...
O mês de Maio de 2022 viu partir Paulo dos Santos Gil após uma vida dedicada ao jazz. Notícia que apanhou de surpresa [email protected] [email protected] e [email protected] [email protected] ao meio jazzístico nacional, rapidamente circulou nos principais media e redes sociais dando relevo a importantes marcos da sua carreira enquanto músico, promotor, crítico e director artístico. Decidi dedicar o segundo texto desta rubrica aos (des)encontros de Paulo Gil com o jazz (e música improvisada) em Portugal, celebrando alguns fragmentos da sua carreira enquanto baterista – mais tarde, viria a explorar o scat singing –, tendo consciência da limitação do formato desta rubrica para tanto jazz.
Foram muitas décadas de jazz. Nascido em Lisboa, no dia 8 de Novembro de 1937, frequentou a Academia de Amadores de Música, e desde cedo, por influência de seu pai, começou a escutar jazz na telefonia através dos programas da Voice of America. Posteriormente, estudou bateria com Luiz Sangareau. Sobre a sua chegada ao Hot Clube de Portugal, referiu «foi através da minha mãe que conheci o Luís Villas-Boas e soube da existência do Hot Clube, naquela altura na Avenida Duque de Loulé. Ainda era menor quando o conheci. Ele foi para mim um segundo pai, no sentido de me ensinar a ouvir jazz. Cresci na companhia do Luís Villas-Boas.»
Pode dizer-se que Paulo Gil chegou ao Hot, antes do Hot ter chegado à Praça da Alegria. Ingressou no clube em meados da década de 1950, interessado em explorar a bateria. Integrou os órgãos sociais do Hot Clube de Portugal. Em Dezembro de 1957, ainda estudante, fez parte do Conselho Directivo como 3.º Suplente. Ao longo da(s) década(s) seguinte(s), de acordo com as listas pelo clube enviadas ao Governo Civil de Lisboa, continuou a pertencer aos seus órgãos sociais. Após Abril de 1974, integrou a Direcção. Trabalhou como crítico de jazz para diversas publicações periódicas, produziu um programa de televisão na década de 1980, e continuou a dedicar a sua vida à promoção do jazz (e música improvisada) em Portugal.
Enquanto baterista teve um percurso de constante exploração. Depois duma primeira fase em torno dos clássicos, em Dezembro de 1967, juntamente com o pianista brasileiro Marcos Resende, na época residente em Lisboa, formou o Bossa Jazz 3, com quem gravou o EP “Divulgação” (Decca, 1968). No ano seguinte, em 27 de Abril, com o grupo Quarteto Bossa Jazz, participou no 2.º Festival Internacional de Jazz de Coimbra, com Marcos Resende (piano), Rão Kyao (saxofone tenor) e Bernardo Moreira (contrabaixo). Grupo que, para além dos palcos, também passou pelos écrans a preto e branco da televisão da época. A título de exemplo: no dia 17 de Janeiro de 1970, às 22h30, o trio Bossa Jazz 3 participou no programa da RTP “Estúdio C” com o cançonetista Carlos Mendes. Outros tempos, em que o serviço público televisão em Portugal, apesar dos limitados recursos tecnológicos da época e o número bastante limitado de músicos que tocavam jazz em Portugal, (man)tinha programas de jazz “ao vivo”.
Ao longo da Primavera marcelista, Paulo Gil manteve-se activamente ligado ao jazz (e música improvisada). Desse período destaco o ano de 1971 (mas não exclusivamente), não só pelo simbolismo que representa para o jazz em Portugal: a realização da primeira edição do Festival Internacional de Jazz de Cascais que juntou mais de 10.000 pessoas no pavilhão do Dramático de Cascais em Novembro desse ano; e consequente prisão do contrabaixista norte-americano Charlie Haden pelos agentes da PIDE/DGS no aeroporto de Lisboa no dia seguinte à sua participação no festival por ter dedicado a sua composição “Song For Che” aos Movimentos de Libertação das antigas colónias portuguesas em África durante a actuação do quarteto de Ornette Coleman. Mas porque Paulo Gil teve um ano intenso, musicalmente.
Como resultado da sua ligação ao movimento de jazz e poesia em Portugal da época, participou na gravação do EP de Manuela Machado, “Poesia e Música de Jazz” (Movieplay, 1971), com Rui Cardoso (flauta), Vasco Henriques (piano) e Jean Sarbib (contrabaixo). Fora do estúdio, nesse ano, concretamente a 8 de Abril de 1971, participou no 1.º Festival de Jazz do Porto, organizado pela Delegação do Porto da Juventude Musical Portuguesa, realizado no Liceu Garcia da Orta, que juntou várias formações com músicos portugueses e alguns estrangeiros residentes em Portugal na época: Quarteto do Hot Clube de Portugal, Quarteto de Kevin Hoidale, Anar Jazz Group e o grupo Contacto, com Paulo Gil na bateria. Duas semana depois, novamente na cidade Invicta, e como baterista do grupo Contacto, participou no Festival de Jazz da Queima das Fitas do Porto, com Rui Cardoso (flauta e saxofone tenor), Marcos Resende (piano), e Nuno Gonçalves (contrabaixo). Esse importante evento jazzístico realizado no Coliseu do Porto durante a Primavera marcelista teve como cabeça de cartaz o quarteto do saxofonista tenor norte-americano Stan Getz, acompanhado pelos franceses Eddy Louiss (Hammond) e Bernand Lubat (bateria) e o belga, René Thomas (guitarra eléctrica). Ainda no ano de 1971, Paulo Gil, produziu e gravou (bateria) a banda sonora do filme “A Passagem” (Zip Zip, 1971), com composições da sua autoria e arranjos de Rui Cardoso, e contou com a participação em estúdio de Vitor Santos (flauta e saxofone tenor), Pedro Osório (piano) e Nuno Gonçalves (contrabaixo). Nessa área, trabalhou com o saxofonista Rui Cardoso em música para filmes.
Em Março de 1972, o crítico de jazz português José Carlos Monteiro Costa [por muitos (talvez) já esquecido, e para muitos outros, (talvez) um desconhecido], dava conta na secção “Noticiário” do primeiro número do boletim do Hot Clube de Portugal da realização de uma jam session que teve lugar «no curto espaço da cave do Clube» onde se podia escutar jazz ao vivo a qual contou com a presença de José Luís Tinoco (piano), irmãos Pinto Barbosa (contrabaixo e piano), Vasco Henriques (flauta), Pedro Osório (piano), Ramos Jorge [conhecido pelo nome artístico, Rão Kyao] (saxofones tenor e soprano), Marcos Resende (piano), Luís Duarte (guitarra-baixo), Paulo Gil (bateria) e Décio Lemke (percussão). Monteiro Costa, acrescentava «o baterista Paulo Gil demonstrou um cuidado pela criação colectiva e uma “sobriedade” a que não nos habituara.» Ainda em Novembro desse ano, como baterista do grupo de jazz-rock Português Status, participou na segunda edição do Festival Internacional de Jazz de Cascais.
No ano seguinte, Manuel Jorge Veloso na revista Cinéfilo informava os seus leitores que «acabadas as obras de Santa Engrácia» o Hot Clube de Portugal ia reabrir novamente, com um novo “estrado para os músicos... consideravelmente alargado (acabou-se a confusão de amplificadores, micros e fios...).» Para a reabertura a Direcção do Hot organizou duas jam sessions, que contaram com a participação de um novo grupo de jazz Português, o New Blues Jazz Quartet, com Rui Cardoso (saxofones alto e soprano e flauta), Marcos Resende (piano eléctrico), Nuno Gonçalves (contrabaixo), e Paulo Gil (bateria). Em 1973, como baterista integrou o grupo Second Bridge, com Kevin Hoidale (piano eléctrico), Rui Cardoso sax-alto/soprano e José Eduardo Conceição e Silva no baixo. Ainda nesse ano, juntamente com Marcos Resende ao piano, acompanhou na bateria, os músicos afro-americanos, Steve Potts (saxofone) e Ken Carter (contrabaixo) na cave do Hot. Jorge Veloso, posteriormente, escreveria o seguinte sobre o baterista e esse concerto: «Paulo Gil foi, durante muitos anos, o primeiro e único baterista de jazz português... basta pensarmos nas memoráveis noites do Steve Potts no Hot Clube para recordarmos as suas excelentes actuações, o retorno à confiança e a sua radical transformação como músico original e influente.» Em Maio de 1974, ainda no rescaldo da Revolução dos Cravos, participou num concerto no Teatro Gil Vicente em Coimbra como baterista integrando o Trio OM, com Ramos Jorge (Rão) em sax alto e tenor, Zé Nabo no baixo... Entrada (quase...) gratuita. No ano seguinte, como baterista do grupo Plexus, que integrava »desde Abril de 1974» (suas palavras), participou no primeiro Festival de Jazz da Figueira da Foz.
Foram inúmeros os grupos e palcos. Mas a ligação Paulo Gil ao jazz estendeu-se muito para além do uso das baquetas. Embora tenha decidido dedicar esta rúbrica apenas a Paulo Gil baterista, termino com mais uma das suas muitas pequenas grandes contribuições para o jazz (e música improvisada) em Portugal ao longo da década de 1970. Para além do grupo Plexus, esteve ligado à Valentim de Carvalho, onde teve um papel determinante na decisão da gravação do LP de Rão Kyao, “Malpertius” (Parlophone, 1976). Encerro agora esta rúbrica após ter dado destaque apenas alguns fragmentos da longa actividade de Paulo Gil enquanto baterista de jazz (e música improvisada) em Portugal, com algumas das suas palavras (em tom de recado) redigidas há meio século sobre a música à qual dedicou grande parte da sua vida: «a importância do jazz... não [é] só no plano estritamente musical, mas também social e político.» «O jazz ... é uma força criativa e sonora a não ignorar.»
O autor segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
Sobre o autor:
Pedro Cravinho é cofundador e membro da Direção da Rede Portuguesa de Jazz – área da investigação. Diretor dos Arquivos da Faculty of Arts, Design and Media da Birmingham City University (BCU). Investigador Sénior em Estudos de Jazz no Birmingham Centre for Media and Cultural Research (BCMCR), co-líder do BCMCR Jazz Studies e History, Heritage & Archives Research Clusters. Investigador do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (Portugal) da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Membro das direções do National Jazz Archive (Inglaterra), Scottish Jazz Archive (Escócia), da Duke Ellington Society (Reino Unido) e membro do West Midlands Archives (Inglaterra). Cofundador das conferências internacionais ‘Documenting Jazz’ e autor de diversos textos sobre jazz em Portugal. O último, acabado de ser publicado, “Encounters with Jazz on Television in Cold War Era Portugal: 1954 – 1974” (Routledge, 2022), é dedicado a Manuel Jorge Veloso.