João Espadinha
Do jazz às canções
Jovem guitarrista ligado ao jazz, João Espadinha apresenta agora um disco de canções, onde o jazz continua presente. O disco “Em terra alheia sei onde ficar” revela uma música original e será apresentado ao vivo nos dias 27 e 28 de maio no Hot Clube de Portugal, em Lisboa. Estivemos à conversa com o guitarrista sobre este seu novo trabalho.
Natural de Cascais, João Espadinha é um jovem guitarrista com formação académica ligada ao jazz. Começou a tocar guitarra aos doze anos, passou pela Escola de Jazz Luiz Villas-Boas do Hot Clube (estudou com guitarristas como Afonso Pais, André Fernandes e Bruno Santos) e frequentou o Conservatório de Amesterdão, onde concluiu a licenciatura em guitarra jazz. Espadinha estreou-se nas lides discográficas em 2017 com o álbum “Kill the Boy” (edição Sintoma Records), onde revelou as suas primeiras ideias. Nesta sua estreia, Espadinha chefiou um sexteto onde a sua guitarra elétrica tinha a companhia de Bruno Calvo (trompete), Nicolo Ricci (saxofone tenor), João Pedro Coelho (piano), Giuseppe Romagnoli (contrabaixo) e Andreu Pitarch (bateria); e duas cantoras convidadas, Mariana Nunes e Joana Espadinha (sua irmã). O título desse primeiro disco era uma citação do livro “A Feast For Crows” de George R. R. Martin, para Espadinha o título representava uma metáfora para «a entrada na vida adulta e remete para a transição difícil de sair da escola e de entrar no mercado de trabalho, no mundo real». Nesse disco inaugural distinguia-se, mais do que qualquer exibicionismo técnico, um sólido trabalho de composição e arranjos originais.
Agora, João Espadinha prepara-se para publicar o seu segundo disco como líder, “Em terra alheia sei onde ficar” (que contou com apoio da Fundação GDA). Se o primeiro, “Kill the Boy”, era um disco claramente jazz, este novo trabalho é um surpreendente disco de canções. Ficámos curiosos sobre esta evolução e qual o papel do jazz neste novo trabalho. Espadinha conta: «A evolução foi acontecendo num contínuo. No meu disco anterior já existiam dois temas vocais, para os quais também escrevi música e letra, e neste período da minha vida este acabou por ser um lado que gostei de explorar, não apenas através tipo de música que escrevi, mas também e especialmente através da música que ouvi e pela forma como voltei a ouvir muitas das canções que já conhecia, quer fossem inspirações minhas de sempre, quer fossem muitos dos standards que tinha aprendido ao longo do meu percurso e com os quais estreitei a minha relação neste período.»
Acrescenta o guitarrista: «Eu considero que o jazz em si era e é uma música de canções (o Miguel Zenón define-o numa entrevista como “folk music of the United States”). Não quero com isto defender que enquanto estilo o jazz se esgota nessa vertente - muito pelo contrário, com o passar dos anos o universo musical que representa já se expandiu bastante e hoje em dia (e ainda bem que assim o é) engloba algo muito maior. No caso do meu disco, procurei por um lado explorar por esse lado da canção, que é comum ao jazz e à música com a qual cresci, e por outro que a improvisação e os músicos que nele participam trouxessem um fator de imprevisibilidade que contrastasse com o lado escrito da música.»
O guitarrista fala-nos sobre o processo de composição de cada tema e a escrita das letras: «Em geral, as composições iam crescendo em paralelo umas às outras; a maior parte dos temas teve um espectro temporal grande entre o momento em que surgiu a primeira ideia e o momento em que imprimi os papéis para os levar para o ensaio. Muitas das vezes tinha uma ideia da qual gostava e que desenvolvia até certo ponto, até estancar porque sentia que não estava a dar uma conclusão ao tema que me soasse tão inspirada tanto quanto me tinha inspirado a ideia inicial. Isso levou a um processo de escrita bastante heterogéneo.»
Espadinha aproveita para explicar cada tema: «O tema “Tempos Curtos” começou a ser escrito um mês antes de irmos gravar o “Kill the Boy”, em junho de 2017, e só ficou 100% concluído quando foi ensaiado para um concerto no Hot Clube, em setembro de 2019. Não porque eu tenha passado dois anos de volta desse tema, mas porque muitas das vezes deixava-o estar no ponto em que estava e voltava a pegar nele meses depois. O tema “Ciclo Vicioso” também teve um processo semelhante, assim como a faixa de abre o disco – “Intro”. “A Revolta” começou por ser um tema que fiz informalmente a propósito do aniversário do João Pereira (como fiz para muitos outros amigos, em jeito de exercício criativo), com uma letra diferente. A minha irmã Joana ouvia estes temas que eu escrevia e disse-me que não devia desperdiçar este tipo de coisas. Um ano depois senti vontade de pegar na canção e escrevi uma letra nova de raiz.»
Continua o guitarrista: «O “Falso profeta” teve uma primeira versão que não ia entrar no disco porque tinha problemas estruturais que não iam ser resolvidos a tempo. Os planos para gravar tiveram de ser adiados por um caso de covid na banda e no espaço temporal entre as datas reescrevi a maior parte do tema e fico muito contente que tal tenha acontecido. O “Disabled” foi o tema concluído há mais tempo, a propósito do concerto de apresentação do meu primeiro disco, numa fase em que estava a acordar às 5h30 para ir trabalhar numa multinacional. O “Outro” resgata intencionalmente a harmonia de “Intro”, e foi escrito numa secretária do gabinete da Fundação Calouste Gulbenkian, onde estagiava no verão de 2020, numa fase em que os projetos em que estava envolvido se encontravam suspensos por causa da pandemia e o meu tempo sem ocupação até à hora de saída abundava. “Point of no return” foi o único dos temas vocais que não foi pensado à partida com uma letra, que por sua vez surgiu quase um ano depois de ter escrito a música. De resto, as letras seguiram o mesmo processo que a música - eram processos a acontecer em contínuo e cuja conclusão nunca quis apressar.»
Este disco conta com muitos músicos convidados - Primeira Dama, João Firmino (Cassete Pirata), Marta Garrett, Mariana Dionísio - e um ensemble que junta Luís Cunha (trompete), Bernardo Tinoco (saxofone), João Pedro Coelho (piano), João Pereira (bateria), Ricardo Marques (contrabaixo) e Francisco Brito (contrabaixo). João Espadinha explica a contribuição de cada um dos músicos: «Começando pelos intérpretes, o Manuel Lourenço (Primeira Dama) era um cantor que já tinha ouvido ao vivo em alguns concertos (ouvi-o pela primeira vez num concerto do Flak no Teatro Ibérico) e a quem tinha ficado rendido. Quando falámos pela primeira vez confessou-me que tinha ouvido o meu disco anterior e gostava bastante, pelo que depois disso foi só uma questão de tempo até trabalharmos juntos. Não vem do meio do jazz mas é apaixonado por este estilo e pelas canções. Sinto que era a voz ideal para as músicas em questão e que encaixou na perfeição. O João Firmino é um dos meus amigos mais próximos e acompanhou o meu percurso no jazz desde o início (da mesma forma que eu já ouvia o que ele estava a fazer quando era mais novo). Para além da interpretação que faz no tema em que participa, deu também um feedback crucial no processo de composição do mesmo, uma vez que é também ele um escritor de canções. A Mariana Dionísio transitou do disco anterior para este e gosto sempre de trabalhar com ela porque tem um aparelho vocal excecional, que lhe permite não só utilizá-lo ao serviço da improvisação livre como também para dar interpretações inspiradas às canções. No tema em que canta sempre foi intenção minha que a faixa terminasse com um momento de improvisação vocal, pelo que não foi coincidência que esse tema fosse para ela. Por fim, a Marta Garrett é também uma colega de longa data, com quem pude contar não apenas para a interpretação, mas para as back vocals gravadas nesse tema e na faixa que encerra o disco - fê-lo remotamente e tornou possível acrescentar uma dimensão nova a esses dois temas.»
O guitarrista explica a sua ligação com os músicos do ensemble: «Começando pelos sopros: o Luís Cunha foi dos primeiros músicos a juntar-se à banda assim que regressei a Portugal e comecei a tocar com músicos de cá. Enquanto improvisador é dos que mais me inspiram no nosso meio e foi uma das pessoas que mais rapidamente entendeu o que eu procurava na minha música. O Bernardo Tinoco, por sua vez, foi uma adição de última hora mas era uma pessoa com quem já tinha tocado e com quem já tinha tido longas conversas sobre música. É uma pessoa com uma cultura musical vastíssima e isso ajudou à sua integração no grupo e na música que estávamos a tocar. O João Pedro Coelho integra os meus projetos desde que comecei a escrever música, ainda em Amesterdão. Para além da relação especial que tem com o seu instrumento, partilha a minha paixão pelas canções, independentemente do universo musical de onde venham. O Ricardo Marques foi das pessoas que mais se envolveu neste processo, desde a fase dos ensaios até ao último momento antes do disco seguir para a fábrica. A energia que trouxe à música e ao grupo foram essenciais no desenrolar do processo. O Francisco Brito, por sua vez, é, além de um contrabaixista que admiro bastante, uma pessoa com uma serenidade e sensibilidade elevadas num contexto de ensaio, pelo que fiquei muito contente que tenha feito parte do processo. Resta, por último, o João Pereira, que considero ser crucial na sonoridade deste disco - é dos músicos mais criativos que conheço e que nos agarram desde o princípio ao fim de uma faixa para ouvirmos o que vai fazer a seguir. Acredito que o contraste entre a sua imprevisibilidade enquanto baterista e as composições que por si só já tinham muito conteúdo escrito é uma das marcas características deste disco.»
«O resultado final combina elétrico e acústico, escrito e improvisado, cantado e instrumental. É um universo musical onde cada um tem o seu lugar, mesmo em terra alheia.» As palavras são do autor, guitarrista e compositor, mas estamos inclinados a concordar.