Lua Cheia #1
Carta de amor a Naná Vasconcelos
Oriundo de São Paulo, Rodrigo Brandão é escritor, artista, performer de spoken word, está ligado à música desde sempre. Nesta nova colaboração com a jazz.pt, Rodrigo Brandão faz uma ponte com a música brasileira e outras referências pessoais do jazz. Aqui está a primeira crónica da série “Lua Cheia”.
Me recordo do dia em que Naná Vasconcelos nasceu na minha história. Papo de milênio passado, ano nove cinco. Caminhava a esmo por Pinheiros (São Paulo), quando vi o sobrenome cereja de certo trompetista, que sabia ser grande, numa capa de disco com textura de madeira, jogado à beira da banca de jornal.
Junto, constava a alcunha desse instrumentista brasileiro de quem já tinha ouvido falar, em algum lugar, assim soava familiar, mas nada além. Eram dias doces, antes da gentrificação, que desfigurou de cabo a rabo a região, sequer mostrar suas garras, e comprar vinil ‘velho’ por quase nada era lei. Fiquei curioso a ponto de espremer as moedas do bolso, e saí dali carregando o tal “Codona”.
Quando, de volta à morada, a gira girou, fogos de artifício explodiram em minh’alma: era jazz, do melhor, e muita África! Índia também, na cítara tocada pelo outro integrante do grupo, o novaiorquino Collin Walcott. E, por causa de Naná, muito Brasil.
Senti uma identificação nunca dantes acessada, na hora. A força daquela música. A sensação instintiva de que aquilo era meu, de algum modo. A troca, de igual pra igual, do pernambucano com um totem do porte de Don Cherry, a contribuição tão significativa no resultado final do som em si... tudo isso causou um impacto e tanto, até hoje causa.
Cortesia de seu estilo gigante por natureza, um ritmista único em todos os aspectos, desde a abordagem, a multiplicidade de instrumentos, à habilidade, além de extrema liberdade; que ao mesmo Tempo carrega consigo toda uma ampla gama de tradição cultural, um conjunto de costumes, de toques e pontos, a ponto de ser o Brasil. Todo ele. Um Brasil maravilhoso e atemporal, que até então nem sonhava que existia, ainda mais manifestado lá no Olimpo do Jazz.
Devaneios à parte, porém, devo esclarecer que a memória mencionada não veio à mente sem motivo. Trata-se do trio de tópicos que tem, ultimamente, me feito entrar em órbita ostensiva na nave de Naná.
O primeiro deles é de fato muito feliz: falo da sua presença, proeminente e radiante, no livro Organic Music Societies, que retrata a lendária parceria amorosa, artística e ideológica de Don e Moki Cherry, cujo núcleo familiar se completava com o casal de filhos, ambos futuros cantores, Neneh e Eagle-Eye. O lançamento do volume, no meio do ano passado, ainda trouxe à tona uma performance até então inédita, no álbum “Organic Music Theatre: Festival de jazz de Chateauvallon 1972”, que também tem Naná na linha de frente. Para de fato testemunhar essa amizade e sua múltipla sonoridade em ação, sugiro o documentário, disponível na net, “It Is Not My Music”, feito por uma TV sueca em 78.
O segundo é um tanto triste. A casa em que passou a fase final de sua frutífera vida teve que ser desmontada, pois a viúva Patrícia se viu obrigada a alugar o imóvel, depois de seis anos à espera da ajuda financeira necessária para transformar o espaço em um centro cultural. Infelizmente, nenhuma instituição assumiu essa responsabilidade. “Nunca entenderam a obra de Naná. Não tem dimensão nem cultura pra isso”, desabafou a amada do mestre.
De fato, o descabido descaso com tão notável trabalho na terra natal do artista é crônico e cruel. Vale ecoar a opinião do escritor Mário Prata, que decretou, em 2016, quando da partida do percussionista, aos 71 anos, vítima de cancro no pulmão, que caso “fosse americano, o Brasil ia estar de luto”. Me faz questionar quando é que seu batuque sagrado será devidamente valorizado.
O terceiro é curioso e, pra mim, particularmente sinergético. Apesar de atento às andanças e danças do berimbau mais rápido do Oeste a coisa de um quarto de século, foi só depois de já estar em terras lusitanas por um punhado de pôr-do-sol, que soube de uma pouco propagada passagem por Portugal na vida de NV: em 1967, antes de ser o místico músico que o mundo amou, ele cá esteve como baterista do Yansã Quarteto, que acabou servindo de banda de apoio para o crooner Agostinho Dos Santos, da fama do filme “Orfeu Negro”.
O encontro inesperado acabou entrando pra eternidade, através de uma série de gravações feitas em Lisboa, lançadas numa trinca de compactos pelo selo Tecla. Um deles, intitulado "África", estabelece paralelo direto com "Africadeus", a estréia individual de Juvenal, seu nome de batismo, gravada seis anos depois em outra parte da mesma Europa. Esse material todo foi compilado num LP lançado em solo brazuca pela extinta gravadora Rozenblit, no Recife onde Naná nasceu e cresceu. Nada disso é coincidência, se me perguntar.
Assim como também sei não ser por acaso que, depois de uma década, pude aprender na prática com o próprio, como um pequeno pupilo espiritual, em uma ou outra ocasião, no palco, na estrada e no estúdio. Tenho toda fé que sintonia dessa seara tá escrita nas estrelas, sinceramente. E alegro ao lembrar de passear com ele pelas mesmas ruas onde tudo começou. Daquele instante em diante fui fisgado, e assim sempre serei. Apaixonado pela arte e a magia do vasto Vasconcelos.