Internacional
A pandemia jazz em Nova Iorque
A capital do jazz não escapou à pandemia. Convidámos Filipe Freitas - crítico de jazz e autor do site JazzTrail, residente em Nova Iorque há largos anos - a contar-nos como se têm vivido os últimos tempos na "Big Apple".
O jazz sofreu com a pandemia, e muito! Mas não morreu. A disseminação viral e subsequentes limitações impostas para a suprimir provocaram sintomas graves e aflição neste meio musical, mas os artistas, curadores, proprietários de clubes, organizações dedicadas ao género e audiência entusiasta nunca desistiram de acreditar, improvisar e recriar para que o jazz se mantivesse de pé. A realidade de Nova Iorque foi dura em vários aspectos. Como cidade com elevado custo de vida (principalmente habitação), muitos músicos de jazz tiveram de recorrer a subsídios de apoio e ajudas governamentais visto que a sua principal fonte de rendimento - as atuações ao vivo - ficou sem efeito.
No entanto, e apesar do cancelamento de concertos no interior, houve sempre jazz na rua e a oportunidade de assistir a grandes concertos em segurança. Como exemplo temos as sessões da organização Giant Steps Art - fundada pelo fotógrafo Jimmy Katz - no Central Park em Manhattan, onde actuaram nomes como Mark Turner, Chris Potter, Marquis Hill, Joel Ross, Melissa Aldana, James Brandon Lewis, Nasheet Waits, Donny McCaslin e Johnathan Blake, entre muitos outros. Aconteceram também varias iniciativas relacionadas com o avant-garde jazz, muito característico de Lower East Side e promovidas pelo Arts For Art, onde participaram aventureiros como William Parker, Joe Fonda, Avram Fefer, Kirk Knuffke e Mat Maneri. Em Washington Square Park, a Zurcher Gallery promoveu concertos com Marty Ehrlich, Ned Rothenberg, Ron Horton, Daniel Carter e Satoshi Takeishi. Outros criativos ainda levaram a sua musica a locais mais inesperados, como foi o caso do saxofonista Tony Malaby que começou a tocar com alguma regularidade debaixo de uma ponte rodoviária em New Jersey com os companheiros John Hébert no baixo e Billy Mintz na bateria. Muitos mais se juntaram a estas sessões, as quais ficaram conhecidas como "Turnpike Sessions". Outro caso interessante foi o que juntou o saxofonista/clarinetista Chet Doxas, o baterista Vinnie Sperrazza e o baixista Michael Formanek no quintal deste ultimo em Brooklyn. Daí nasceu o Drome Trio, cujo excelente disco de estreia será lançado a 18 de Março.
Além dos concertos no exterior, muitos optaram por performances online com mais ou menos sucesso. O importante, segundo os artistas, era manterem-se activos. Outros houve que nunca pararam a sua actividade habitual como o saxofonista Brasileiro a viver em Nova Iorque Ivo Perelman, o qual continuou a lançar discos e a gravar compulsivamente em estúdio com inúmeros colaboradores. Importantes festivais como o inigualável Winter JazzFest foram forçados a realizar as suas famosas maratonas de jazz virtualmente. Já o Vision Festival suspendeu todas as performances de 2020 e realizou a maioria das de 2021 no exterior, ora nas ruas de Brooklyn ora no pátio aberto do espaço cultural The Clemente em Manhattan. Discos criados e/ou projectados durante os meses mais complicados da pandemia são inúmeros e em todas as frentes. No jazz tivemos mesmo uma predominância de álbuns a solo (Jon Irabagon, JD Allen, Ben Goldberg, Brad Mehldau, Chris Potter) mas também os 60 episódios caseiros Stir Crazy criados pela dupla Ingrid Laubrock/Tom Rainey ou os discos Liberation Time do guitarrista de fusão John McLaughlin e Force Majeure da harpista Brandee Younger com o baixista Dezron Douglas. O confinamento forçado criou um desejo inabalável de compor e criar, e o jazz ganhou com isso.
No entanto, também houve perdas… nomes como Lee Konitz, Wallace Roney, Ellis Marsalis, Jimmy Heath e Bucky Pizzarelli deixaram-nos à conta do COVID-19. Em relação a espaços dedicados ao jazz, a situação também não foi animadora com o fecho do Jazz Standard, um dos meus clubes preferidos onde sempre nos receberam tão bem, e a ameaça que paira sobre clubes e bares icónicos Nova Iorquinos como o Iridium, o Birdland e o 55 Bar.
Na nossa realidade pessoal, eu como crítico e a Clara Pereira como fotógrafa do JazzTrail, resolvemos cessar a cobertura de concertos em Nova Iorque desde o inicio da pandemia. Por motivos maiores, ainda não voltámos a essa actividade que tanto nos apraz, mas esperamos regressar em breve. No entanto, durante os meses de confinamento, consegui organizar e gravar a minha música pessoal, guardada durante anos na gaveta, e lançá-la em formato vídeo no YouTube.
O jazz já respira melhor, com a certeza de que melhores dias virão. Ninguém por cá o deixa morrer e o calendário pós-inverno ja se encontra a abarrotar de concertos para todos os gostos, tanto dentro como fora de portas.