A participação da Mulher no jazz português
José Dias e Beatriz Nunes publicam estudo sobre a participação da Mulher no jazz português
Para quem se interessa por jazz e sua evolução em Portugal, não só numa perspectiva musical e estética, mas também pelas interações e relações sociais entre os seus vários intervenientes, valorizando o tema da discriminação de género, é imperativo ler o artigo intitulado Festa do Jazz: A case study on gender (im) balance in Portuguese jazz, da autoria de José Dias e Beatriz Nunes, publicado no Jazz Research Journal.
O artigo Festa do Jazz: A case study on gender (im) balance in Portuguese jazz, da autoria de José Dias e Beatriz Nunes, publicado no Jazz Research Journal, abre espaço a uma reflexão importante, muito pertinente, e que necessita ser profunda. Trata-se do primeiro texto a abordar esta temática – o estudo da participação de mulheres no seio do jazz português no início do séc. XXI. Por este e outros motivos, é de louvar a iniciativa deste estudo.
A discriminação de género como forma de opressão pode encontrar-se em vários contextos. No caso da música, por exemplo, observa-se na visibilidade constante de determinados artistas, nomeadamente homens brancos, visibilidade essa subordinada a diversos factores patriarcais, em detrimento de outros artistas enquanto pessoas oprimidas por machismo, racismo, lgbtfobia, etc. As escolas, as editoras e os programadores têm aqui um papel importante.
O artigo de José Dias e Beatriz Nunes é uma investigação que parte da premissa de que a Festa do Jazz pode representar uma radiografia ou amostra do que se vive na comunidade do jazz a nível nacional, espelhando assim a representação de mulheres no interior dessa comunidade. Partindo dessa ideia, os autores focaram-se na análise da Festa do Jazz e sua evolução entre os anos de 2003 e 2018. Realizaram entrevistas, recolheram e observaram dados quantitativos relativos à representação de género na Festa nas várias vertentes (presença de mulheres cantoras, instrumentistas, compositoras, líderes de bandas/formações, programadoras), e fizeram uma análise comparativa entre os vários anos, para chegarem à conclusão de algo que é visível e gritante: por um lado, a sub-representação de mulheres neste género musical e, por outro, a existência de uma ideia preconcebida, talvez até por vezes inconsciente na comunidade, de que o papel/lugar da mulher é o de cantora e não o de compositora, instrumentista ou líder de banda. Há ainda a reconhecer que também os programadores de festivais ou os críticos de música são homens.
Os parâmetros em análise foram: percentagem da participação de mulheres na Festa, de uma forma geral, percentagem da participação de mulheres como líderes de banda ou co-líderes, percentagem de mulheres instrumentistas e percentagem de mulheres estudantes a competir como vocalistas ou instrumentistas, fazendo distinção entre ensino médio e superior.
Da análise dos dados destacam-se os seguintes pontos:
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participação de mulheres como músico é muito baixa - a percentagem média ao longo dos anos referidos é de 7%, sendo que essa participação não manifesta um crescimento gradual, pois em 2004 a percentagem de participação foi de 0%, em 2012 de 18% para, em 2017 (mantendo em 2018) decair para 4%;
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em 1198 participantes, apenas 74 eram mulheres, sendo que as bandas exclusivamente masculinas continuam a ser o formato dominante;
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percentagem de participação de mulheres como artistas principais varia de 0% (2003, 2004,2010) a 33% (2012), com média de 17% - o que confirma a informação prestada pelos autores de que a programação parecer ter aqui um papel mais progressivo, pois contrata directamente essas artistas principais, ao contrário de quando surgem como membro de uma banda, ai sendo contratada pelos seus pares;
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geralmente, os líderes de banda mulheres ou homens, não incluem mulheres nas suas bandas - as mulheres quando surgem são em grande maioria cantoras e muito raramente instrumentistas - entre 2003 e 2018, apenas três bandas incluíram mulheres instrumentistas;
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nos anos de 2017 e 2018 não houve mulheres instrumentistas no programa; segundo os autores do estudo «a participação de instrumentistas femininas foi devido à marcação directa pela equipa do festival»;
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a percentagem de média de instrumentistas mulheres a tocar em Big Bands na Festa, de 2003 a 2018 é de 5%;
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a percentagem de estudantes mulheres de nível médio aumentou de 5% em 2006 para 25% em 2009; contudo, decresceu de 22% em 2017 para 18% em 2018.
A Festa do Jazz é um festival que ocorre desde 2003 e que procura reunir o que melhor de jazz se faz no país, com participação de escolas, entrega de prémios, realização de debates - é um encontro de toda a comunidade e das suas diferentes gerações. É organizada pela Associação Sons da Lusofonia, que é uma associação que procura promover a igualdade e a integração.
No artigo é reconhecida a preocupação da Sons da Lusofonia na organização da Festa relativamente a estes temas, e o seu esforço para minorar esta desigualdade. Contudo, e como refere o texto, são passos ainda tímidos afectados por um contexto onde as bandas exclusivamente masculinas continuam a ser um formato dominante, existindo um desequilibrio de representação de alunas no ensino de jazz, particularmente instrumentistas mulheres. Aqui, parece haver um acordo entre o Director da Festa, Carlos Martins, e os autores do artigo: a ideia de que há um problema a montante, associado ao facto de Portugal ser um país com uma democracia muito jovem, que viveu 48 anos de ditadura em que as mulheres não tinham direitos e que por isso ainda se verificam muitos resquícios desse período, nomeadamente nas questões da educação e no papel das mulheres na sociedade.
Talvez este artigo possa ser a pedra no charco necessária à abertura de um debate que se quer urgente em toda a comunidade do jazz. Talvez traga às escolas, à indústria da música, editoras, programadores de Festivais, uma maior abertura de mentes no sentido de uma verdadeira inclusão. É um alerta para a mudança. Talvez possa ainda servir para que um músico deixe de olhar a sua parceira artística como alguém menos capaz, para a encarar como alguém igual na sua capacidade e diferente na criatividade.
«Temos que falar sobre libertar mentes tanto quanto sobre libertar a sociedade.» Angela Davis