A soma das partes II
Uma ligação transatlântica
Depois de dizer como foi no swing, a nossa história dos arranjos no jazz (e à volta dele) dá um salto até ao Velho Continente e daí volta ao outro lado do Atlântico para lembrar dois importantes arranjadores europeus que perseguiram o “sonho americano”: Castelnuovo-Tedesco e Kostelanetz.
Chegados ao início da era do swing no artigo anterior, é agora altura de suspender a sequência cronológica desta série de artigos para conhecer um músico europeu que foi um dos pioneiros do arranjo e da composição orquestral, enquanto emigrante nos Estados Unidos. Assim, antes de abordarmos as disputas entre as bandas de dança que se digladiavam nas salas de baile “siamesas” – com dois palcos a ladear a pista –, recuamos no espaço e no tempo, em direcção à cidade de Florença.
A capital toscana berço do Renascimento e de grandes famílias ligadas à banca como os Medici foi uma das primeiras paisagens urbanas regularizadas pela mão da “nova” arquitectura europeia, de finais do século XVI. Um exemplo das construções desse tempo é o Palazzo degli Uffizi, em cujo pátio interior a concepção de Vasari enfatizou a perspectiva, culminando numa tripla arcada com vista sobre a cidade e com a luz que se reflectia sobre o rio Arno, como se se tratasse de uma grande boca de cena sobre o mundo.
Foi neste contexto cultural, onde ainda hoje reverberam as conversas entre Da Vinci e Michelangelo sobre o Belo e o gosto, no interior do Uffizi, que nasceu o compositor sefardita Mario Castelnuovo-Tedesco, filho de uma dinastia de banqueiros.
Contra todas as expectativas, e logo nos anos formativos do jovem – que estudava na altura no Conservatório de Florença –, o içar da tela no Odeon Cinehall proporcionou-lhe o visionamento de novos horizontes mundanos, plasmados em duas dimensões sobre o celulóide da película cinematográfica.
Se o cinema italiano começou por volta de 1903, já em 1911 a vanguarda Futurista tinha-se apoderado desta forma artística, lançando o seu “Manifesto de Cinematografia Futurista” em 1916, assinado por criadores como Filippo Marinetti e Giacomo Balla, entre outros. Não que o jovem Mario fosse um Futurista ou um adepto de emergentes movimentos vanguardistas como o Expressionismo. O certo é que era este o ambiente que rodeava o compositor / arranjador.
Aos 44 anos de idade, e já com nome nos meios da música clássica, a ameaça fascista levou-o a olhar para o outro lado do Atlântico. Foram circunstâncias políticas e históricas que o tornaram num dos pioneiros das longas-metragens da Metro-Goldwyn-Mayer, tendo contribuído para a sensação de profundidade e tridimensionalidade de cerca de 200 filmes através das suas elaboradas e épicas bandas sonoras originais.
Música narrativa
Para salientar o impacto que as mesmas tiveram sobre a cultura norte-americana, basta referir que, na linha directa da sua descendência musical, encontram-se nomes consagrados como os de Henry Mancini, Nelson Riddle, Herman Stein e André Previn, entre outros. Assim, através do cinema, Tedesco deixou a sua marca indelével na forma de ouvirmos a música feita com finalidade narrativa, mas também comercial.
Antes de deixar uma parte de si no cinema de Hollywood, Castelnuovo-Tedesco destacou-se como compositor de peças para a guitarra de Andrés Segovia, não sendo por acaso que a sua trilha sonora para o filme “The Loves of Carmen” (1948), com Rita Hayworth como sedutora cigana, colocasse ênfase nas sonoridades ibéricas, incluindo nela, entre outros elementos, o próprio flamenco (que Segovia tendia a menosprezar).
Atrevo-me a especular que, umas décadas mais tarde, essa banda sonora chegou aos ouvidos de Gil Evans e que este se inspirou nela para pegar noutra composição de cariz espanhol, o “Concierto de Aranjuez” de Joaquin Rodrigo, transpondo magistralmente as melodias da guitarra espanhola para a sonoridade do trompete de Miles Davis.
Mas se queremos consubstanciar os antecedentes de “Sketches of Spain” devemos recuar três anos, até à estreia de um musical da Broadway intitulado “Carmen Jones”. Igualmente baseado na ópera de Georges Bizet, e também no conto alargado do escritor e arqueólogo francês Prosper Mérimée, à maneira ianque o libreto de Oscar Hammerstein II transformou a fábrica de tabaco andaluza numa de pára-quedas, situada temporalmente em plena Segunda Guerra Mundial.
Lembremo-nos como em “The Son of Dracula” (1943), a sequela do filme “Dracula” (1931), de Tod Browning, a acção passou da tradicional Transilvânia para Nova Orleães. Tem tudo a ver!
O que mais nos interessa aqui é o facto de a ópera “Carmen Jones” ter sido arranjada por Robert Russell Bennett, um destacado arranjador de Kansas City que, embora se mantivesse fiel ao original, adaptou a sonoridade de Bizet ao timbre de cantores exclusivamente afro-americanos. Esse efeito estético, embora arrojado para a época por motivos sociopolíticos, não era de todo inédito.
Agruras da vida
Na década anterior, foi essa a inovação de George Gershwin em “Porgy and Bess”, estreada em 1935, onde se esboçavam as agruras da vida dos negros na Carolina do Sul com a voz própria da sua população.
As melodias emblemáticas desta “opus magnum” foram harmonizadas e potenciadas pela caneta e pelos ouvidos de dois dos grandes nomes do arranjo na América do Norte, já que, para além da parceria entre Russell Bennett e Gershwin, que trabalharam em estreita colaboração no primeiro arranjo da peça, Gil Evans e Miles Davis seguiram no seu trilho anos mais tarde.
Para além da adaptação da ópera para a Broadway, em 1942, Russell Bennett arranjou “Porgy and Bess: A Symphonic Picture”, um “medley” dos temas mais populares da obra, orquestrados com uma nova ordem. Com um vasto repertório, no qual se incluem paralelamente colaborações com Jerome Kern (“Show Boat”, 1951) e Richard Rogers (“Oklahoma!”, 1943), Bennett explicou: «A primeira coisa a estudar para se ser um arranjador famoso é aprender a não dormir… A segunda é aprender a viver sem comida normal.»
Se “Show Boat” e “Oklahoma!” recriavam o folclore anglo-saxónico dos Estados Unidos (lembremo-nos de “Old Man River” e “The Surrey with the Fringe on Top”, apropriados pelo jazz de Bix Beiderbecke e Ahmad Jamal), em “Porgy and Bess” os blues estavam no âmago de uma acção claramente de cariz e tom Afro.
Para os cépticos bastará ouvir as rendições de “My Man’s Gone Now” cantadas por Ella Fitzgerald, Lena Horne, Nina Simone, Sarah Vaughan ou Shirley Horn. Mesmo na interpretação do violinista clássico Jascha Heifetz, um dos mais influentes do século XX (patrocinador de Castelnuovo-Tedesco em Hollywood), o tema vibra com a melancolia própria dos blues do Sul. Neste sentido, “Porgy and Bess” está para os EUA como o “Concierto de Aranjuez” está para a Península Ibérica: é um retrato rural, inundado pelo calor bucólico de uma tarde Verão.
Outra obra de Russell Bennett de proporções épicas foi a orquestração de “Victory at Sea” (1952-3), de Richard Rodgers, trabalho em que Russell Bennett teve rédea solta e a quem é atribuída a maioria das 11 horas e meia de música concebida para a série televisiva dedicada às conquistas navais americanas.
Não se trata de jazz, mas serve para demonstrar a amplitude do trabalho de Russell Bennett e do clima criativo que, nos Estados Unidos, existia nas décadas que antecederam e se seguiram à Segunda Guerra Mundial.
Em Janeiro de 1950 a American Society of Music Arrangers podia gabar-se de ter 160 membros inscritos em Los Angeles e 193 em Nova Iorque, e escritórios em ambas as cidades. Na altura, numa América ainda a recompor-se da guerra, a sua revista, The Score, era comprada e lida por cerca de 3500 assinantes.
Fundada em 1938, o seu primeiro presidente foi Robert Russell Bennett. Em 1987, a associação passou a denominar-se The American Society of Music Arrangers and Composers, tomando em conta o facto de muitos dos seus membros também serem compositores. Claro que os membros da AMSMAC trabalhavam, sobretudo, para a indústria cinematográfica, escrevendo arranjos “stock” para serem interpretados por anónimos músicos de estúdio e não por intérpretes de jazz específicos.
No entanto, o “know-how” adquirido pela música na indústria cinematográfica e da televisão interligou-se de forma indissociável com o jazz da rua.
Kostelanetz apresenta…
Outro europeu que estabeleceu a ponte entre a música orquestral e a dita ligeira foi o russo Andre Kostelanetz, cujo trabalho abarcou o período entre 1940 e 1980. Trabalhando como arranjador, maestro e animador cultural, Kostelanetz escapou à revolução soviética, estabelecendo-se nos Estados Unidos na década de 1920.
Tal como o seu antecessor, Vicente Lopez (ver artigo anterior), o russo começou na rádio, apresentando música semanalmente na estação da CBS, com o programa “André Kostelanetz Presents”. Além dos 50 milhões de cópias de discos que vendeu, as suas rendições de clássicos do repertório jazzístico como “I Got Rhythm”, “So Wonderful” ou “Embraceable You” pouco tinham a ver com o jazz propriamente dito.
Simplesmente, a sonoridade da sua orquestra antecedeu de forma visionária os grande êxitos de música “easy listening” tocados pelas orquestras de Ray Conniff e Herp Albert, o que resultou em grandes êxitos e grandes lucros.
Vale, no entanto, a pena ouvir o arranjo de “Introduction and Jazzbo Brown” (em “The Essential George Gershwin”) interpretado pela orquestra de Kostelanetz: é uma pequena jóia do jazz com vestígios da Tin Pan Alley. Os primeiros compassos, antes da entrada dos acordes de piano, causam umaasensação de verdadeiro delírio, com as cordas e a marimba a tecerem uma textura densa, em acelerado prestíssimo, enquanto os metais entoam a melodia em contrastado, e mais pausado, staccato.
Dedicado a Jazbo Brown, músico itinerante e figura lendária do percurso que vai entre o estuário do Mississíppi e Chicago, o tema (o arranjo) demonstra a excelência da orquestra de Kostelanetz. Não é de estranhar, dado por ela terem passado nomes de arranjadores do calibre de Teo Macero, Eddie Sauter e Claus Ogerman, entre outros. Mas isso já é outra história, que ficará para a próxima oportunidade…
Para saber mais
www.asmac.org/clientimages/39902/newslettersarchive/asmacscore4001.pdf